Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 11 de agosto de 2021

Entre o farfalhar das falhas, uma lágrima

postado por Joao Paulo Rodrigues

Entre o farfalhar das folhas, que bailavam com o balanço dos ventos, e um Sol que trazia o dia, Seu André, diante da brisa que o refrescava, se deliciava com a paisagem quase bucólica que a arte da jardinagem lhe proporcionava.

Se não fossem as hastes de concreto que estruturavam a residência, quase ninguém se daria conta de que a arquitetura revelava um asilo, que mais se assemelhava a um exílio!

Lucas, um dos jardineiros da casa, rotineiramente sentava-se junto a Seu André para trocar um dedo de prosa, entre uma poda e outra, entre uma fertilização e outra.

— Nos conhecemos há tanto tempo, Seu André. Todos os dias conversamos. Mas o senhor nunca me falou como findou nesse lugar lindo.

— Lucas, meu filho, apesar da diferença de idade, o tenho como um amigo. Me seja franco e complete a frase. Sei que em seu íntimo você quis perguntar: “por que o senhor foi abandonado nesse lugar que, apesar de ser tão lindo, esconde a tristeza da solidão?”.

— Quer é isso, Seu André, jamais… Não tinha pensado isso, juro.

— Tudo bem, não precisa ficar constrangido. Envelheci, mas continuo são, meu filho. Meus filhos me têm como um fardo.

—  Eu realmente não quis ser indelicado, Seu André.

— Bobagem, meu filho. Apesar de eu ainda ter sentimentos, não sou tolo. A idade me ajudou a ser forte e não trepidar diante da realidade, que insiste em nos contradizer.

— O senhor fala tão bonito.

— É que eu sou um poeta frustrado, Lucas. Ambos riem ligeira e agradavelmente.

Não obstante a leveza com a qual se conduziu a conversa entre Lucas e Seu André, não era possível disfarçar a melancolia do conteúdo que compunha a conversa. Após segundos em silêncio, Seu André se põe a falar sobre seu enredo.

— Cheguei aqui porque não acreditei na Lei do Retorno. Se ao menos eu tivesse sido ateu pela metade! Nunca deveria ter desprezado os meus. Amei tão pouco, tão pouco fui amado.

—  Mas Seu André – me permita –, entendo que possa não ter sido um pai presente. Sei que fala sobre isso. Eu tenho mais de 40 anos. Apesar de seu trato comigo, não sou tão jovem assim. Eu sei que cometemos erros. Aliás, um dos maiores erros que os pais cometem é amar pouco seus filhos e quando amam muito, não sabem comunicar esse amor. Mas, mas nada me parece justificar a separação dos filhos…. Quero dizer, todos os filhos deferiam cuidar de seus pais, assim como os pais cuidaram deles.

— Não seja cuidadoso comigo, “menino”. Ambos riem. — Meus filhos me abandonaram porque eu fui o que os jovens chamam: “um pai otário”. Eu poderia ter, como diz a música, amado mais… mas o acaso não me protegeu! De certa forma, há qualquer coisa de medíocre no pai que espera que o filho cuide dele na velhice. Por outro lado, é algo que no fundo, no fundo todos nós esperamos.

— Justamente.

— Sabe, Lucas, o que realmente me intriga é que eu me deixei chegar até aqui. Por entre folhas, se me permite poesia, uma lágrima escorre. Não sei se em razão da solidão, não sei se motivado pela paralisação. Só sei que sua bela arte me diverte, Lucas, mas não me distrai da realidade em que me encontro.

— Entendo… Entendo o que o senhor fala. Mas, ainda assim, não acho justo que os filhos deixem os pais largados em casas que, embora sejam bem estruturadas, têm a aura de quartos de despejos… almoxarifados. Não sou bom com as palavras como o senhor, mas sei que todos querem voltar para sua terra, assim como o poeta. Pois, as aves que por aqui gorjeiam jamais gorjearão lá, mundo a fora.

— Realmente, Gonçalves Dias é uma ótima referência, Lucas. Talvez seja isso: no fundo, no fundo… bem lá no fundo, eu sinto saudade de estar junto aos meus; eu segrego, ou segredava, que sinto falta de estar junto aos meus filhos e netos, irmãos e primos, noras e genros. Porém, não tenho tempo de chororô… gosto da comida daqui… e ai de quem reclamar…

— Gosto de seu bom humor, Seu André.

— Bom humor? Você já viu a belezura dessas árvores? Você está cada vez melhor em seus desenhos. Você é um artista, Lucas.

— Bondade sua, Seu André.

— Pode tirar o “Seu”. A partir de hoje me chame somente de André.

— Está bem, André.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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