Rio Grande do Norte, sexta-feira, 03 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 5 de agosto de 2021

Eu e minhas invejinhas pretas

postado por Joao Paulo Rodrigues

Outro dia, senti saudade de um querido amigo. Apressei-me para falar-lhe, via mensagem eletrônica. Sem muita demora, recebi uma mensagem de volta. Ele me dizia que tinha saído do Brasil “para colocar a cabeça no lugar” e que essa decisão tinha feito-o se sentir melhor.

Eu fiquei muito contente com a mensagem que recebi. Confesso que achei chique alguém dizer que saiu do país para arejar as ideias. À uma fiquei contente e senti inveja do meu amigo. Mas não foi uma “inveja branca” – ranço linguístico do racismo, impregnado culturalmente no seio social! –, foi uma “invejinha preta”; talvez fosse melhor dizer: senti inveja de preto – agora sem aspas.

Sair do país, nas atuais circunstâncias, é o sonho de toda pessoa minimamente sensata; sair do país, efetivamente, é a realidade de poucos que têm condições financeiras para tanto. “Por acaso” meu amigo é um sujeito branco, cujas condições materiais lhes permitem fugir do caos instalado na “República”. Não por acaso, eu sou filho de uma empregada doméstica, que, embora aposentada, ainda trabalha na mesma profissão, e de um auxiliar de serviços gerais – em qualquer área! Desnecessário dizer que sou preto.

Antes que perguntem, nossos destinos só se cruzaram, muito provavelmente, porque ambos somos academicistas – pouquíssimas foram as vezes em que encontrei um jovem tão ávido por conhecimento.

Quando falo em invejinhas pretas, não é para me contrapor, no âmbito do letramento racial, a expressões flagrantemente racistas. Refiro-me mesmo a “invejinhas” – as aspas aqui servem para indicar que se tratam de “invejonas”! – que nós pretos temos dos brancos, que vão desde poder andar pelas ruas sem sermos constrangidos pela polícia ou por seguranças de mercados – sob suspeita de sermos ladrões –, até a poder tirar fotos e gravar vídeos sem sermos importunados por uma frase racista de um transeunte, que não tem outro objetivo, senão, machucar, gratuitamente, terceiros.

Todavia, você pode dizer que o sentimento de invídia é muito feio e que expressa uma condição psicológica nada interessante – e, geralmente, preocupante. Nada poderia dizer contra a constatação, e até me sentiria alvejado, se às pessoas me referisse. Isso porque, a invídia a que me refiro não diz respeito a aquisições materiais ou essências espirituais humanas. A inveja a que me reporto – tenho certeza de que você me entendeu, desde o início! – é a que deseja os mesmos direitos, não privilégios, que os outros humanos (brancos) têm.

Todo preto tem uma invejinha dos direitos dos brancos. E sim, queremos ter exatamente todos os mesmos direitos. Inclusive, acho até que não sentimos inveja o suficiente, pois se é verdade que esse sentimento traz rancor às pessoas, por não terem êxitos no desejo de possuir o que o outro tem, é preciso mais invídia, a fim de que haja mais ações. Caso contrário, pessoas não brancas (pretos, indígenas, pardos, chineses, angolanos, japoneses etc.) sempre terão de estar em completo estado de alerta, a cada passo dado fora de casa, bem como terão de se manter atentos, para que não invadam suas casas.

Eu tenho inveja de quem sai do país, para além da cor da pele que veste. O Brasil se tornou um lugar tóxico até para as mentes mais sãs – estas, as mais adaptáveis.

Vivemos em uma completa falta de sentido. O país está em uma escalada de morticínio relativo ao covid-19, que não faz o menor sentido, desde o início, haja vista que vimos, de longe, o problema se aproximar e nada fizemos – a fábula esopiana do “grilo e a formiga” não nos causou impacto algum!

Os casos de racismo e injúria racial (contra negros, asiáticos, indígenas etc.), gordofobia e lgbtfobia, bem como assassinatos e chacinas de pessoas de pele escura ultrapassaram todos os limites permissíveis. Isso mesmo que você leu, no Brasil existem limites permissíveis – sem aspas mesmo! – para o cometimento de crime relativos à discriminação e assassinatos de pobres pretos – quase um pleonasmo; com certeza, uma redundância!

Sim, sou um invejoso. Me julguem.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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