Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 10 de agosto de 2023

A política por outros meios: Álvaro Dias e os usos abusivos da história

postado por Carta Potiguar

Diego José Fernandes Freire (professor de história)

Não é de hoje que a história, enquanto narração de acontecimentos do passado, interessa aos homens de poder. Deodoro da Sicília – sábio romano que viveu no século I A.C – já alertava que, “em relação aos governantes, a história os inclina a façanhas admiráveis”.  Do mundo antigo aos dias atuais, é possível multiplicar casos em que os donos do poder lançaram mão da narrativa histórica para justificar seus domínios, ideias, anseios e valores. No Rio Grande do Norte (RN), a situação não é diferente.

Por aqui, foi bastante comum a escrita da história por parte de chefes políticos, vide os nomes de Augusto Tavares de Lyra (governador entre 1904-1906), José Augusto Bezerra de Medeiros (governador entre 1924-1927) e Manoel Dantas (prefeito de Natal no ano de 1924), para ficar apenas em nomes relacionados ao executivo. Todos eles, além de terem textos historiográficos, ocuparam postos na instituição local legitimadora da história potiguar: o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN).  

Nos últimos dias, o prefeito de Natal Álvaro Dias (Partido Republicanos) reforçou ainda mais este enlaço entre história e poder, porém com algumas singularidades. Ao contrário de Silvio Pedroza, prefeito da cidade que em 1947 encomendou ao ilustre historiador Câmara Cascudo o livro “História da cidade de Natal”, o chefe político atual da capital natalense foi lá e escreveu, ele mesmo, uma obra histórica. O conteúdo desta diz respeito não somente ao Rio Grande do Norte e aos potiguares, como toca o Brasil e os brasileiros, com destaque, inclusive, para aqueles que foram os ditos primeiros exemplos da nacionalidade: os povos indígenas.

A pretensão (ou a arrogância?) do político-historiador foi além do objeto de estudo. Em “A guerra dos Tamois e a história não contada do Brasil”, Álvaro Dias empenhou-se ao longo de quase 300 páginas a “contar neste livro um pouco da verdadeira trajetória de bravura, lutas e resistência desses povos que aqui estavam e não tiveram voz, não puderam falar ou expor sua versão”.

Denunciando e combatendo este proclamado esquecimento, o prefeito não hesitou em colocar as vestes de historiador, ou melhor dizendo, as máscaras, pois foi até aos arquivos, quando teria se deparado com “livros muito antigos, diversos deles escritos por padres jesuítas, contando acerca da colonização do país e da utilização em larga escala de mão de obra escrava nativa”. Para não restar dúvidas sobre a identidade historiadora do prefeito, montou-se no último dia 30 uma cerimônia de lançamento do livro, seguido de uma palestra, no IHGRN, instituição da qual é sócio benemérito deste 2022. Poderia haver uma entrada mais triunfal no círculo dos historiadores locais?

Contudo, chama atenção sua alegada motivação para a escrita do livro, como se estivesse descobrindo verdades inauditas: “a História que nos ensinam nas escolas passa pela escravidão indígena muito superficialmente, mas a verdade é que foi algo muito maior do que a maioria de nós consegue conceber”. A mensagem é clara: a história não contada só poderá ser vista através do livro ora publicado, jamais ensinada na Escola, tampouco por meio dos professores e demais historiadores.

Arauto da verdade histórica, conhecedor dos segredos do passado, o prefeito (perfeito?) historiador faz questão de demonstrar sua solidariedade aos povos originários: “eu pretendia contar neste livro um pouco da verdadeira trajetória de bravura, lutas e resistência desses povos que aqui estavam e não tiveram voz, não puderam falar ou expor sua versão”. Da solidariedade para o civismo, o passo é curto: “as pessoas acham que os portugueses chegaram aqui e ocuparam as terras sem reação. É necessário ressaltar que os índios ofereceram forte resistência”. As pretendidas qualidades seguem até mesmo para um patamar reflexivo: “é o que sempre acontece no mundo: são os vencedores que contam sua versão”.

Ao encarnar a figura do historiador, tal qual tantos outros mandatários da política no RN fizeram há pelo menos dois séculos, Álvaro Dias realizou um uso político da história. Tal uso, longe de glorificar feitos da nação ou celebrar a identidade estadual, como era comum entre os membros do IHGRN do século passado, dirigiu-se para o próprio sujeito da história, isto é, o historiador, o prefeito, o político, o cidadão Álvaro Dias, homem que, por meio do seu livro, foi recoberto de virtudes intelectuais, cívicas e humanas. 

O livro propagandeia menos os feitos dos grandes homens do que o seu autor, o escritor “Álvaro da Costa Dias, leitor dedicado que tem especial predileção pela História da América Latina, sobretudo do Brasil”.  A passagem de político para intelectual não deve causar espanto nenhum, na medida em que “tornar-se escritor foi um caminho natural para ele que ora lança o seu segundo livro”.

Com isso, além de marcar seu lugar no hall dos políticos do RN, Álvaro Dias garante igualmente seu nome na história intelectual local. Não se pode esquecer que o sujeito em questão traz consigo o familismo típico da política potiguar. Perpetuar o nome de sua família – os “Dias” do Seridó –  na história política e intelectual do estado tem nos livros e na escrita da história meios indispensáveis.

Como lembra Antoon de Beats com sua teoria do abuso histórico, a vinculação entre escrita da história e governança costuma trazer embaraços. Os governos são com muita frequência causadores de formas mais graves de abuso da história, como atestam as deturpações históricas feitas por líderes como Hitler, Stalin, Mussolini, Vargas e muitos outros.

Assim, arrogando-se historiador, Álvaro Dias não foi menos político, de modo que não se despiu desta figura para encenar aquela. Antes, uma veio para servir a outra, tanto quanto uma esteve contida na outra. A política não se apartou da história, daí porque a nota de repúdio do Centro Acadêmico do curso de História da UFRN acertou em cheio ao questionar não só intelectualmente o autor de “A guerra dos Tamois e a história não contada do Brasil”. Parafraseando a famosa frase de Clausewitz, pode-se dizer que o prefeito de Natal fez a história ser a continuação da política por outros meios.

Fontes:

https://hilnethcorreia.com.br/2023/03/28/prefeito-alvaro-dias-lanca-livro-sobre-historia-do-brasil/ Acessado em 08/08/2023.

https://natal.rn.gov.br/news/post2/38574 Acessado em 08/08/2023.

https://www.youtube.com/watch?v=Rhn8BUn73qA Acessado em 08/08/2023.

https://blogdobarreto.com.br/wp-content/uploads/2023/08/NOTA.-A-que-Historia-o-IHGRN-pretende-prestar-contas-3-1.pdf Acessado em 08/08/2023.

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