Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 21 de março de 2023

AS FACÇÕES CRIMINOSAS NÃO PODEM PROMETER A PAZ

postado por Loa Antunes

“A sociedade” não será recompensada com paz quando as cadeias tiverem ou não bloqueador de celular, contarem ou não com isso e aquilo. Ao contrário, não “a sociedade”, mas as periferias, acima de tudo, nunca terão sossego enquanto existirem facções criminosas e aqueles que se tornaram seus intelectuais orgânicos.

Tenho lido muitos textos prometendo, sub-repticiamente, paz para “toda a sociedade” caso as exigências atuais “dos apenados” sejam cumpridas. Eles afirmam que os atentados terroristas em curso têm uma base material claríssima: a opressão no sistema carcerário potiguar. A violência aqui fora seria reflexo direto da violência lá dentro. Retaliação. Pelo que se deduz que, se a cadeia estiver em paz, a sociedade também estará. É preciso atender essas exigências de hoje para que a sociedade descanse alguns dias a mais. Mas essa é uma promessa falsa. As coisas não mudarão caso as cadeias se tornem a imagem e a semelhança do desejo das facções que organizam, de lá, o crime aqui fora.

Facções não podem prometer um dia de paz às cidades e ao campo, pois elas já nascem agenciando chacinas, promovendo assaltos e furtos. Elas surgem através do latrocínio e da exposição pública da ultraviolência. Se inauguram como empresas cuja publicização do horror gore, a exposição de vísceras, cabeças degoladas, a dominação masculina e o banho de sangue são formas legitimadas de acumulação de capitais, status e reconhecimento. Essa é a forma mesma da acumulação capitalista da empresa faccionada. Uma condição sine qua non (indispensável) para sua perpetuação no tempo e no espaço.

Os lastros de terror que esses organismos deixam para trás não são excepcionalidades que ocorrem de dois em dois anos, mas todos os dias. Todas as noites, manhãs e tardes eles espalham vídeos e fotos de sua crueldade, de seu horror gore, em grupos de Whatsapp, como fazem os reis medievais daqueles filmes para com as cabeças dos inimigos, espetadas em pontas de lanças e dispostas bem na frente da entrada da cidade. A tecnologia muda, mas o propósito é o mesmo: mostrar ao forasteiro e ao cidadão quem é o Soberano e o que acontece com os que tentam derrubá-lo. Aqui não estamos diante de um confronto legítimo de uma classe oprimida contra o Estado, mas diante de uma Soberania disputando o monopólio territorial da força com o Estado oficial.

Criminosos incendeiam van escolar no Bairro de Felipe Camarão. Natal, 21/03/2023.

Como afirmou o filósofo Carl Schmitt, “soberano é aquele que decide sobre o Estado de Exceção”. E bem, as facções decidem sobre a exceção atualmente. Mas essa excepcionalidade não o é: a exceção já se tornou a norma nas periferias, transformadas em campos de concentração permanentes pelas organizações criminosas que ali operam, em muitos sentidos, soberanas. Em disputa, metro a metro, com as forças de segurança do Estado oficial. Concordando com Thomas Hobbes, o governo e o direito (que é força e coerção) se garantem pelo fio da espada, e é assim que a dominação e o direito privado das facções se perpetua nas regiões mais pobres das cidades do RN, às vezes, pelos relatos que escuto de interlocutores, em cidades inteiras.

As facções e seus membros, dentro e fora das cadeias, não podem prometer pacificação a ninguém, porque são estruturalmente narcoterroristas. Porque são a antítese da paz. Seu crescimento demanda o roubo, exige a morte, conduz à instrumentalização do corpo e do trabalho do Outro para obtenção de prazer pelo consumo hedonista, para a acumulação de capitais, status, reconhecimento e pertencimento.

A dominação geopolítica das facções, que se evidencia nos ataques recentes e na concentração espacial de homicídios, demanda, para existir, a expropriação de casas, a destruição de vizinhanças, a pauperização de bairros, o domínio dos corpos periféricos e pobres, a taxação ilegal, o alastramento do vício e do consumo de drogas de abuso, etc. O crescimento das facções veio acompanhado do abuso de drogas no interior do Estado e de uma onda de violências conhecida ali apenas pela televisão.

Cidades pequenas em que nunca ou muito, muito raramente se falavam de assaltos, hoje não conseguem dormir em paz, parcialmente dominadas, que estão, por homens (e em geral são homens, esse não é um dado menor), jovens, usuários de drogas, que são capazes de atropelar a vida de qualquer um para praticar seu consumo hedonista de corpos, drogas e bens materiais. Não foram poucas as vezes em que eu ou policiais militares conhecidos, após dias ou horas procurando criminosos que vinham realizando assaltos em série, os encontramos em casas de praia ou em bares, se divertindo e usando drogas com o dinheiro do crime que acabaram de praticar. A sociedade, em especial as periferias, não podem e não devem pagar, com suor e sangue, o consumo hedonista desses homens.

Com a emergência das facções criminosas, Natal migrou de uma das capitais mais seguras para uma das mais violentas num curto espaço de tempo. Diferente da pobreza, que é muito mais antiga do que as facções no Nordeste (o Sindicato do Crime, por exemplo, foi fundado em 2013 como uma dissidência do PCC) a facção criminosa e o tráfico de drogas são duas variáveis causais para explicar as taxas de homicídios e criminalidade de uma região. Armistícios e declarações de guerra entre facções fazem disparar ou reduzir, em escala nacional, as taxas de homicídios. Isso é indicativo de que o modus operandi das facções não é a violência revolucionária em busca de direitos ou a “contrarrevolução” de negros e pobres, mas a extensão diluída desse terror no tempo e no espaço, em especial, nas regiões mais pobres. Em 2021, Natal passou para a 12ª Posição no ranking de homicídios entre as capitais brasileiras.

“Waisefilz (2016) apresenta que, em 2003, Natal era a capital menos violenta do Brasil. Contudo, corroborando com a inversão da distribuição de homicídios por regiões, na média dos anos de 2014, 2015 e 2016, a capital do Rio Grande do Norte passou a ser a quinta com o maior número de homicídios por arma de fogo. A situação se tornou mais alarmante, quando dentre os 150 municípios do Brasil com mais de 10 mil habitantes com as maiores taxas de assassinatos por armas de fogo, quatro são municípios integrantes da Região Metropolitana de Natal: Macaíba (25º), São José do Mipibu (26º), Extremoz (42º), Natal (119º) e Nísia Floresta (136º).”

Fonte: FREITAS, Pedro H. D. Violência no município de Natal/RN em 2019 e 2020: Uma abordagem espacial e demográfica sobre as mortes violentas com foco nos efeitos decorrentes da pandemia da COVID-19. Natal, RN, Dissertação de Mestrado. Departamento de Demografia, 2021, UFRN. P. 57.

O assassinato de inimigos, de membros de outras facções e de policiais, os assaltos de grande vulto elevam o status e a posição hierárquica de um membro ou podem ser exigidos para sua entrada ou permanência nessas sociedades. As facções são economias da violência e do horror. O mercado construindo sua própria lei e ordem, na qual tudo é mercadoria e onde a mercadoria não encontra freio ou contrapeso para seu intercâmbio. É o mercado livre desatado de qualquer valor, ética ou princípio externo à empresa capitalista. A[narco]capitalismo.

Elas agenciam tribunais privados que, baseados sobretudo num direito penal particular, funcionam como máquinas de moer a carne, não apenas de seus membros e rivais, mas de qualquer morador de uma área dominada que seja apontado como inimigo, por ter amizade com policiais, por ser denunciante, por não querer sua filha sendo a “marmita” da vez desses criminosos ou quaisquer outros motivos. Os tribunais do crime são sombras que pairam e que calam a voz e a resistência das periferias às organizações criminosas. Com salve ou sem salve, eles ainda se abaterão contra as periferias e os que lá vivem. 

Não existe um normal para se voltar do ponto de vista de muitos, muitos trabalhadores do RN.

Não paz, mas tudo que esses intelectuais que têm servido de porta-vozes dessas organizações criminosas podem prometer é que o status quo seja restabelecido, caso “os meninos” deles tenham suas exigências cumpridas com o dinheiro do contribuinte. E a principal exigência não é nada relativo ao sistema prisional, mas que não se repitam as intensificações do patrulhamento, das prisões e dos confrontos com as forças policiais, como as que ocorreram nas Rocas e que realmente motivaram estes atentados terroristas. Porque é isso que afeta realmente a dinâmica do crime organizado. 

Se todas essas exigências prisionais forem cumpridas amanhã, mas o Estado do RN endurecer o patrulhamento nas áreas vermelhas (mostradas no meu artigo anterior) depois de amanhã, como fez no Bairro das Rocas recentemente, outro salve será imediatamente declarado. Salves não precisam de justificativas legítimas para existir (vide os bloqueadores de sinais telefônicos), porque as facções já operam internamente a legitimação de suas próprias ações terroristas e ultraviolentas em tribunais e comunicações circulares internas.

Quanto a este salve, eles só podem prometer que as áreas nobres e mais ricas da cidade, e também as mais bem policiadas, não sintam mais o medo e o terror que é cotidiano nas regiões mais pobres, mais periféricas. Facções não podem prometer paz a ninguém, senão engodo e decepção. Até o próximo salve.

Loa Antunes

Doutorando em Ciências Sociais (Ciência Política) — UFRN Policial Militar — PM-RN. Cientista social.

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