Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 17 de dezembro de 2021

Carta de Sartre a Emanuelle

postado por Joao Paulo Rodrigues

Tradução de João Paulo Rodrigues

Advertência do tradutor ao leitor

Esta “carta” foi encontrada entre outros papeis na gaveta da escrivaninha em que Sartre trabalhava, no campo de batalha, na II Grande Guerra, quando ele estava a serviço do exército francês, lotado no setor de meteorologia. Mesmo em uma guerra, Sartre nunca deixou de escrever.

É interessante notar que na Guerra, Sartre escreveu seus diários (doze diários ao todo; cinco foram publicados, os que outros foram extraviados) direcionados a sua companheira Simone de Beauvoir, mas não se sabe quem seria esta mulher chamada Emanuelle, a quem ele envia uma “carta”.

Quando indagada, Beauvoir de Beauvoir não soube dizer quem seria Emanuelle. Também não se sabe qual seria a editora para a qual o francês pretendia enviar um trabalho – Sartre não nos ajuda muito, deixando-nos carentes de algumas informações. Não sabemos nem mesmo se é uma carta ou se é um texto redigido para compor algum material publicado – por isso, usamos as aspas ao nos referir a esse escrito, afinal, não se sabe ao certo se, de fato, trata-se de uma carta ou se é “apenas” um rascunho de um homem solitário e aprisionado em um campo de batalha, por ocasião de sua captura pelos alemães.

Traduzimos o texto na íntegra, sem fazer muitas mudanças de ordem gramatical; quando muito, buscamos manter a compreensão do texto em alguns pontos que pareciam ‘truncados”, de sorte que assumimos a responsabilidade acerca de eventual erro de tradução, salientando, porém, que as partes que contêm erros do próprio Sartre serão destacadas por sic erat scriptum (sic); assim procedemos, porque entendemos que estamos diante de um documento histórico-filosófico. Sempre que conveniente, procuramos fazer algumas observações em notas de rodapés.

A importância desta “carta” se dá tanto porque aqui podemos perceber um fragmento do caminho filosófico sartreano, quanto porque a questão da Liberdade está posta, cuja as impressões podem ser encontradas nos textos “A Náusea” (1938) [romance] e “O Ser e o Nada” (1943) [tratado filosófico]. Nesse escrito, podemos ver, também, o que Sartre retoma no pequeno texto “O Existencialismo é um Humanismo” (1946) em relação à noção de liberdade.

É importante dizer que, nesse texto, podemos perceber a atenção que Sartre demandava ao Brasil, desde aquela época. Importa-nos lembrar de que tal atenção se concretiza quando ele vem ao país para ministrar uma conferência [histórica], no ano de 1960, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara – em pleno período da Guerra Fria -, que pode ser encontrada no livro “Sartre no Brasil: A conferência de Araraquara”, publicado pela editora Paz e Terra, em 1986. Nessa palestra, fica evidente que ele sabia qual era a importância estratégica da América Latina para o re-desenhamento do mapa político-ideológico mundial.

Sem mais, desejamos ao leitor uma ótima e produtiva leitura.

Fronte de Lorena, 18 de maio, de 1940 [1] .

Querida Manu,

Semana passada, a Editora me pediu um texto, um livro, um conto ou algo parecido que possui como tema principal a Liberdade [como você conhece os editores tão bem quanto eu, logo sugeriram que este fosse o tema do meu texto: Grilhões dos cárceres e a aurora da Liberdade: 52 anos de um Brasil sem escravidão . Embora eu não tenha nem mesmo algum esboço. Uma censura velada!] para a comemoração dos 52 anos da tal da Lei Áurea, assinada no Brasil, no ano de 1888, pela então princesa Isabel.

Você e eu sabemos que escrever sobre a assinatura desta Lei não me é custoso, talvez, o que deve ser difícil para mim é o entendimento da assinatura desta Lei como símbolo, expressão de Liberdade. Existe uma História e por mais que nós queiramos negá-la, a princesa Isabel não nos serve nem mesmo como uma semi-heroína; a motivação de sua “canetada”, assinatura, foi ocasionada pela pressão exercida por outros países – e de forma especial -, pela pressão advinda da Inglaterra.

Sabe, Amarela [2] , depois deste convite que recebi da Editora, fiquei dias e dias pensando sobre a Liberdade que os escravizados cativos obtiveram (pode parecer distante de nós, mas, a bem da verdade, não o é, porque nós, do Velho Mundo , exploramos muito estes povos das Américas no passado e continuamos a explorar nos dias de hoje e provavelmente continuemos no futuro).

Fiquei pensando sobre que tipo de Liberdade era aquela. O que mais me intrigou foi que a Liberdade que os negros, vindos do continente africano, obtiveram se limitava a ter os grilhões suas mãos e pés arrancados. Deixaram de ser escravos e se tornados homens, mulheres e crianças livres, porém, tal Liberdade significava, na época, que o senhor de escravos não tinha mais a obrigação de alimentar, de modo precário, os seus “ex-animais’ – infelizmente, assim eram tratados”; sim, ainda que tenha havido a Abolição, o negro demorou a ser visto como ser humano, como gente… e ainda, ainda demora!

Desta forma, a Liberdade dos grilhões lhes trouxe… nada… Quase nada mudou de verdade e de fato, pois os negros foram parar nas ditas favelas [3] porque não tinha onde morar – quando vi[sic] para o Brasil, a senzala e a Casa grande [sic] foram seus únicos referenciais de casa! -, não tinha outra profissão, senão trabalhar nas lavouras e nos afazeres domésticos. Eles não puderam trabalhar mais na lavoura, porque os imigrantes italianos estavam chegando par substituir seus trabalhos.

Ao pensar em tudo isso, eu não tenho motivação para escrever sobre a Liberdade. Ao menos, não sobre esta noção que se tem de Liberdade; uma Liberdade puramente material: possibilidade de ir e vir sem haver impedimento de outra pessoa.

Não… Amor, eu juro que entendo que já é alguma coisa, mas livre, livre a gente não é… quiçá alguns de nós!

Eu estive pensando em escrever algum conto que discutisse exatamente esta pouca Liberdade que os negros tiveram, esta pouca Liberdade que todo ser humano tem. Sabe Amor [sic], acho que a Liberdade vai além dos grilhões despedaçados. Toda Liberdade vem acompanhada de movimento, mas nem todo movimento vem acompanhado de Liberdade! Quando me lembro da história da escravidão, história esta que não poupa brancos e negros, penso na dureza que é ser livre, pois além dos seres humanos terem de buscar, conquistar, a muito custo, sua Liberdade material, Liberdade de movimento, ainda tem de buscar outra Liberdade: a Liberdade de seu ser, a Liberdade que o ser humano é.

É um pouco estranho e assunto… [sic] Nós queremos tudo, minha Pequena, menos sermos livres livres [sic] e o que assusta mais é que não queremos esta Liberdade que ultrapassa e atravessa os tempos históricos (transcende!). Parece que o ser humano não se descobriu ainda enquanto um ser que tem em si a Liberdade; que ele próprio é a Liberdade, que a Liberdade está e estará nele enquanto lhe houver sopro de vida – por favor, não pare para contar e nem me julgue pelo uso excessivo desta doce palavra!

Manuelle, você sabe que escrevo há alguns anos e tem ciência de que já discuti vários e inúmeros temas, mas escrever sobre a Liberdade não me parece fácil, não exatamente porque seja um tema extremamente difícil; não, não é isso, é que, pelo que percebo, tenho um ponto de vista bastante diferente do que se pensa, comumente, sobre a Liberdade.

Às vezes, quando saio para comprar um jornal, ouço as pessoas falando sobre liberdade, referindo-se somente à libertação material (isso é muito precioso!), Ou inda [sic], quando leio algum livro, vejo que os escritores se concentram numa Liberdade filosófica (são os filósofos!) que não se parece, nem um pouco, com a Liberdade cívica, a Liberdade real (efetiva!) e Constitucional que temos experimentado ao longo da História Universal – a história do ser humano. Quer dizer, é como se a gente tem [sic] os ‘cidadãos comuns’ e os escritores especialistas (filósofos, obrigatória, romancistas, intelectuais etc.) falando uma e mesma coisa, pois, no fim das contas, ambos querem um tipo de Liberdade que não se experimenta.

Sabe Manu, realmente incomodo-me com estas noções de Liberdade que eu considero limitadas, pequenas. Nós, você e eu, sabemos que pode ser somente presunção de minha parte, que posso estar sendo um tolo, mas eu rejeito estas liberdades oferecidas e vendidas por aí, a torto e o direito.

Maldita Editora que me perturbe os juízes (risos quase discretos)!

Uma das coisas que mais me desagrada nesta discussão sobre a Liberdade é que por conta da nossa vida em sociedade, abandonamos – quero dizer, não nos voltamos para – nossa real Liberdade. Isso porque, muitos dizem que o homem não pode ser livre, pois tal estado [de Liberdade] é próprio da vida na Natureza [em natura !]; o que podemos ter, dizem, é uma vida social que cria regras, limitações que possibilitem nosso conviver e sobreviver; como se esta ‘liberdade civil fosse a única coisa que temos. Isso é uma bobagem, uma grande mentira, um ato de má-fé!

Penso, minha Flor de cacto, que há uma Liberdade em nós que é própria do ser humano e que nunca sairá de nós, não importando o estado em que nós estejamos, pois esta Liberdade é o que nos faz seres humanos; é uma Liberdade que é especificação do próprio homem, do sujeito que existe, porque o homem é a [sua] própria Liberdade.

Para ser humano tem de ter Liberdade, porque há uma diferença entre o ‘homem’ e o ‘ser humano’ e a diferença é este ser que é Liberdade – nossa, se esta palavra possuir [sic] vida própria, ela me pediria para não mais a escrever, pois a recorrência de seu uso pode torná-la gás, tirando toda sua importância real.

Não, que não se turve o teu coração, meu querido Coração, eu tentarei explicar um pouco sobre a diferença entre ‘homem’ e ‘ser humano’ e qual a sua relação com a Liberdade. Pelo que lhe conheço [sic], se eu tivesse parado de redigir esse texto neste momento exato, você iria se perturbar, questionar-se-ia e poderia ficar sem muitas respostas, por não estar aí contigo para ser mais claro (é sempre bom lembrar-se das limitações que são próprios de uma escrita; o bom mesmo é, sempre, relacionar-se, e não simplesmente se comunicar, haja vista que desse modo podemos ir além das frias e cálidas palavras) [4] .

O ‘homem’ em seu estado de natureza, quando nasce, é um animal, Emanuelle, um animal que não tem seus recursos intelectuais bem desenvolvidos. É um animal que depende de seus pais. Sendo o homem um animal, é próprio de sua natureza ter vontades e necessidades básicas: comer, beber, urinar, defecar etc. Se eu fosse resumir numa frase o que eu entendo por ‘homem’, eu diria que: ‘a palavra homem se refere um substantivo ‘. Por exemplo, temos o substantivo cadeira, mesa, copo. Do animal ‘homem’ não podemos dizer muito, senão que ele é um ser que faz parte da natureza.

Quando eu me refiro ao ‘ser humano’, eu quero falar sobre a relação social, cultural e existencial que há no ‘ser humano’. Na verdade, penso que a vida em sociedade é a própria expressão de ‘ser humano’, ou seja, o ‘ser humano’ é marcado por viver em sociedade e é um ser de cultura e, por isso, mesmo que seu modo de se relacionar com o mundo é único, porque além de ele ter cultura e se relacionar socialmente ele é livre, assim o penso. É livre enquanto ‘ser humano’.

‘Keep Calm’, como dizem os ingleses em suas propagandas de guerra [5] , não se alvoroce, se não entendeu, tentarei deixar mais claro. Eu entendo que só o homem é livre. E por quê? Porque, como eu tinha dito, há uma diferença entre o ‘homem’ e ‘ser humano’ e a diferença está no fato de que nós sabemos o que é uma mesa, sabemos o que é um cachorro e sabemos do comportamento desse animal, bem como sabemos da função da mesa, mas não sabemos o que é o ‘homem’. E por que não sabemos? Porque, diferentemente de um computador, por exemplo, que sabemos bem como funciona, não sabemos como funciona o ‘ser humano’; não temos como prevê suas ações, por mais que tenhamos feito um mapa de nosso comportamento.

Nossa falta de conhecimento sobre todas as nossas ações humanas não deve ser motivo de alarme ou preocupação, porque, na verdade – assim penso eu, Chérie -, é esta indefinição, esta incerteza sobre nós, que nos faz ‘seres humanos’. Quer dizer, se o computador tem uma ‘natureza’ de comportamento que podemos saber qual é e até antecipar-se, se se pode entender o comportamento de um gato, com ou [sic] ‘ser humano’ é diferente; ele não tem natureza. Não há natureza humana! O que temos são algumas informações sobre nosso comportamento do passado, porém, estes comportamentos passados ​​nunca nos dirão como agiremos no presente, no futuro.

Espero que esteja me entendo, meu Bem!

Esta incerteza que temos sobre o ser humano se dá porque somos livres, mas não somente livres enquanto ideia e enquanto direito se [sic] movimentar para onde quisermos, todavia, somos livres para nos fazermos, nos inventarmos… Como poderíamos saber qual será o próximo passo do ser humano, como capturar os movimentos presentes e futuros de livres!

A essência do cortador de papel é cortar o papel, a essência do relógio é mostrar a hora; são artefatos que foram feitos para isso. Suas funções já têm destino próprio, já sabemos sobre seu funcionamento, sabemos sua essência. Entretanto, não temos como saber a essência de ‘ser humano’, porque este não tem essência, não há natureza, não tem função, ele é livre para agir de várias maneiras.

A Liberdade que há no ser humano é uma Liberdade que o torna ser humano, quer dizer, esta incerteza, esta ‘falta’ que não nos fazer [sic] saber como ele agirá, como se comportará, é próprio do ser humano [já posso deixar de usar aspas neste ponto!].

Somente um ser que é livre – isto é, o ser humano – pode fazer a escolha. Na verdade, penso eu, Manu, o homem está CONDENADO A SER LIVRE. É a única certeza de que tenho sobre do ser humano: que ele é livre e não pode deixar de ser! Esta sentença, declaração, ode [sic] parecer forte, Manuelle, contudo, uso o termo ‘condenação’ apenas para dizer que não é possível ao ser humano deixar de ser livre, porque, como eu expliquei, o ser humano é a própria liberdade; ele pode fazer o que quiser de sua vida, mesmo que esteja sob condições adversas, mesmo que a experimente como limitações materiais.

Só existe um fato que ‘limita’ o ser humano: ter vindo ao mundo sem que pedisse. Somente o fato de estar no mundo determinar [sic] o ser humano, afora isso, nada mais pode limitar o ser humano. Sei que esta opinião parece radical.

Penso ainda mais, Querida. Pense [sic] que o ser humano é o único que pode ultrapassar, atravessar (transcender!) Toda [sic] a limitação que lhe impomos no dia a dia. Por exemplo, eu não consigo enxergar no carteiro um sujeito que sempre será carteiro; ele pode exercer a profissão de carteiro por muitos anos, entretanto, ele não é um carteiro, ele está sendo um carteiro; este ser humano pode exercer várias profissões; não podemos dizer que ele exercerá sempre a profissão de carteiro, pois ele pode acordar e, num belo dia – em meio a seus pensamentos e vontades -, querer mudar de profissão e se tornar um comerciante, por exemplo – eu sei que soou como uma alucinação liberal, todavia, creio que você entendeu o que eu quis dizer…. mas agora eu fiquei na dúvida se não foi um ranço burguês de minha parte; é um ponto a ser ponderado por mim.

Não me entenda mal, meu Bem, mas nem Deus pode dizer o que somos e / ou o que seremos. Você sabe, eu não creio em Deus [es], mas mesmo que deus venha a existir, somente o ser humano pode dar conta de si, somente o ser humano, sujeito que estar condenado a ser livre, pode dar um rumo à sua vida .

É claro que uma pessoa que tem muita limitação de material [sic] terá mais dificuldade de ser um doutor em Filosofia, se esta pessoa mal tiver o que comer. Contudo, o homem é livre [sei que é radical!]!

Sei que quando faloque o ser humano é livre, tem-se a impressão de que ele pode ser tudo, até um unicórnio! – que os marxistas ortodoxos não me odeiem, pois conheço a crítica da meritocracia! Todavia, a Liberdade não se relaciona somente com alguma profissão; a Liberdade diz respeito ao próprio modo de existir do ser humano, pois o ser humano EXISTE, quer dizer, compreender [sic] que ‘existir’ significa criar nossa realidade, significa, também, criar projetos, criar maneiras de agir no mundo… Existir significa ser inteiramente responsável pela própria vida, sem haver família, trabalho, Deus ou qualquer outra coisa que nos sirva de muletas, que nos sirva de ‘desculpa’.

É por tudo o que eu disse, Manu, por toda esta noção que tenho de Liberdade, que não consigo, facilmente, aceitar que os escravizados [seres humanos!] Brasileiros [sic], bem como quaisquer outros cativos, são reais [sic] livres no ato de ter seus grilhões quebrados. A Liberdade é maior que um quebrar de cadeias; é claro que é importantíssimo que se seja materialmente livre, pois se movimentar é preciso – ser livre só em pensamento é sem sentido, mas ser livre somente corporalmente, é pouco!

A Liberdade do ser humano consiste, assim eu entendo, no agir, no criar, no escolher – escolher o modo de viver -, no pensar, no amar, no se apaixonar, no sentir dor, no ser responsável. Sim, porque, quem é livre é, necessariamente responsável, pois somente o ser humano pode dar conta de sua existência, isto é, o ser que é fundamentalmente livre, é, também, fundamentalmente responsável por si e pelos outros!

No momento que ajo, faço uma escolha [inda que eu não aja, já estou escolhendo: escolho não agir!], e escolher ser livre é angustiante; é angustiante tomar conta de mim mesmo, é ‘terrível’ não haver outra pessoa responsável por mim, que não seja eu mesmo, é assustador saber que somente eu sou senhor de meu domínio – escravo de mim mesmo! – e que cada passo a ser realizado, projetado, é de minha inteira responsabilidade. E ser responsável por mim, no ato de exercício de minha Liberdade, faz com que eu seja responsável pela Liberdade dos outros. Sim, porque quando quero minha Liberdade, quero a Liberdade da Humanidade.

Mas, mas você já sabe de tudo isso. Quantas e quantas vezes nós discutimos sobre a existência, sobre o Existencialismo… Doutrina filosófica que traz – para muitos e alguns -, desconfiança; esta doutrina que parece tão pesada, esta doutrina que é ‘um otimismo’, é ‘uma doutrina da ação’.

Se você chegar a ler esta carta, eu ficarei contente, porque você, e outra pessoa – meu querido Castor [6] -, é a única que me entende do início ao… não, você não me entende do início ao ‘fim’, porque o ser humano não tem um fim… Você me entende1

Compartilhar minhas preocupações sobre este texto que a Editora pediu, já se configura como expressão de angústia, pois tenho de agir mediante esta proposta e agir significa criar minha Liberdade, por meio de minha escolha, quer seja porque eu redigirei o texto, quer seja porque o deixarei de lado – me parece tão estranho falar sobre uma miúda Liberdade.

Antes que eu termine esta miúda / longa carta, sei que você se inquietaria e perceberia uma contradição que eu acabei de expressar ao falar sobre o avanço da humanidade, de sua consciência ao extinguir a escravidão, quando estamos numa Guerra, quando escrevo na fronteira de batalha … Porém, sobre estas questões e angústias, eu precisaria escrever outra carta.

Até breve, meu Bem. Logo, logo lhe escrevo de novo, se me for possível. Espero que esta Guerra termine…

Com afeto, com angústia, com Liberdade e sem má-fé,

{p’ra sempre teu} Sartre.

[1] Em junho de 1940, Sartre se tornaria prisioneiro da Alemanha, conseguido fugir em 1941, no mês de março (NT).

[2] Como se nota no texto, Sartre se refere a Manuelle por meio de vários nomes, assim como ele chamava Simone de Beauvoir de ‘Castor’, chama Manuelle de, também, ‘Amarela’ e ‘Flor de Cacto’ (aqui se percebe que Sartre nutre conhecimento da flora brasileira, pois o cacto é típico das Américas). Todavia, diferentemente de Simone, um qualificativo o bastante apelido carinhoso por trabalhar, não sabemos a origem dos apelidos de Manuella (NT).

[3] A origem do nome favela vem da Guerra de Canudos. O povoado de Canudos, que desafiou o governo federal, foi construído perto de um morro chamado Favela , que era o nome de uma planta da região (NT).

[4] Com alguns anos, Sartre mudará sua opinião sobre as palavras, sobre a escrita, sobre a literatura. Para saber mais, cf. o livro Que é a Literatura? (2004) (NT).

[5] Em tempo de guerra [Segunda Guerra] os ingleses cunharam e eternizaram, dentre outras expressões, o ‘mantenha a calma e continue’ (NT).

[6] Sartre se refere a Beauvoir.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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