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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 28 de maio de 2022

Democracia e Educação, a Dessacralização do Indivíduo na Sociedade Brasileira

postado por Mateus Venceslau

Democracia, desigualdade e violência: palavras que são encontradas com frequência no repertório daqueles que desejam de um modo ou de outro compreender a realidade de países como o Brasil. O tema da educação também é recorrente, como meio de diminuição da desigualdade. O que não se percebe, sobretudo aqueles teóricos e intérpretes da sociedade brasileira é que, a democracia e educação são interdependentes, uma precisa da outra para que se evite a naturalização da barbárie em sociedades como a nossa.

Primeiro, há de se entender que em sociedades modernas como a brasileira é comum vermos dois tipos de individualismo coexistindo, o individualismo utilitário e o individualismo moral. No utilitário temos a lógica instrumental em que o indivíduo age meramente por interesses próprios e/ou monetários, a sociedade é um mero aparelho de troca; por outro lado o individualismo moral é aquele que age por uma lógica de respeito aos direitos e dignidade do indivíduo. Seria esse individualismo moral como vital as sociedades modernas e democráticas, uma vez que ele incita respeito mútuo e culto do indivíduo, algo que não é possível no individualismo utilitário.

Argumento que, para compreendermos o Brasil é preciso entender que existe nele uma tensão entre o individualismo utilitarista e o moral, em que o utilitário se torna o hegemônico, ao compreender minimamente eles, se compreende as patologias de nossa sociedade do tempo presente. Para essa compreensão, precisamos de uma Ciência Social comprometida com os valores democráticos, uma vez que ela torna consciente os valores e ideias que circulam e são criadas pelo social.

Os valores e direitos que o individualismo moral contém estão acima do Estado, desse modo, o Estado é o órgão responsável por garantir e tornar tal valor moral hegemônico na sociedade que ele comunica. Porém, essa comunicação deve acontecer através de uma educação pública, laica e racional, mas em hipótese alguma esse trabalho deve ser delegado a esfera da família, pois ela não forma pensando no social nem para os valores de uma conduta democrática.

Esse individualismo moral que deveria ser hegemônico e ensinado poderia ser entendido como uma religião secular da humanidade, pois há nele a crença da pessoa humana como sagrada, e aquele que atente contra a sua liberdade ou dignidade acaba por despertar um sentimento de horror em nós mesmos, algo como profanar o que é sagrado. Essa crença, da sacralidade da pessoa humana seria o que garantiria a unidade de um país, sobretudo a democracia.

Para uma sociedade mais democrática e menos violenta, consequentemente menos desigual, a educação é a base para isso, não no sentido conteudístico racional instrumental, mas no sentido de uma educação moral comum, que incite a cooperação, forneça instruções gerais e públicas, e “capacitações” culturais independente da classe social, nisso inclui que ela seja capaz de promover a autoestima individual. A educação pública comprometida com os valores democráticos reproduz e produz um conjunto de regras definidas e entendidas como sagradas – algo da ordem da desejabilidade, do amor e temor – que guiam nossas condutas.

Contudo, não é o que vemos no Brasil. Na realidade, o que se enxerga ou é demonstrado é uma naturalização da violência, dos atentados contra as pessoas, sua liberdade e sua dignidade, a banalidade com que as mortes são tratadas nos noticiários ao invés de nos causar horror, gera entretenimento. Nesse sentido, isso não vem de uma mera desigualdade e conflito de classe, essa animalidade do cotidiano, em que as pessoas morrem por coisas banais, ou são atacadas pela sua cor, crença ou ideologia, vem do fato de que no Brasil o individualismo moral não se tornou hegemônico, e quando generalizado em determinadas classes ele é fragmentado. O que foi incorporado e é difundido pelas diversas instituições sociais é o do individualismo utilitário (egoísta) que age de maneira instrumentalizada na perseguição de interesses próprios, sem o compromisso e cooperação com a sociedade da qual participa.

Recentemente temos uma série de exemplos que representam isso, em qualquer outro país que toma como pressuposto o ser humano como sagrado estaria paralisado diante de acontecimentos como a operação policial na Vila Cruzeiro que deixou ao menos 23 mortos, a morte de Genivaldo pela Polícia Rodoviária Federal que improvisou uma câmara de gás e o torturou até a morte a luz do dia com várias pessoas testemunhando. E exemplos não faltam, de acontecimentos bárbaros que se tornam um espetáculo nas mídias, mas que na semana seguinte ninguém lembra mais o que ocorreu.

Não é uma gestão de morte, mas antes uma dessacralização do brasileiro, sobretudo daqueles que vem das classes mais baixas, e de grupos sociais estigmatizados, seja por gênero, cor ou crença. É como se os valores básicos de uma sociedade moderna e democrática não existisse em terras brasileiras, uma vez que a mortes brutais e violência cotidiana ocorrem com naturalidade.

A causa disso não seria apenas resultado de uma desigualdade de acesso a bens materiais e simbólicos como alguns cientistas socias atrelam, a desigualdade é parte do problema, mas não o único. A ausência de uma cultura democrática, de cooperação e de respeito a dignidade do indivíduo é outro fator que contribui para uma sociedade como a nossa. Não é fazendo leis que essa realidade vai mudar, como muitos pensam, tanto movimentos de esquerda quanto da direita.

Uma verdadeira mudança social no sentido de uma sociedade mais justa começa com uma educação moral, que só é possível através do ensino público, logo a figura de um Estado imparcial não é possível como muitos pensam. Pois o Estado, visto como a fonte de nossos males por interpretações patrimonialistas, é aquele que tem o compromisso com a sociedade, de estabelecer uma comunicação com ela e possibilitar as condições necessárias para a produção e reprodução dos valores do individualismo moral e da democracia.

Mas o que vemos na atual conjuntura é um Estado governado por asseclas empenhados na volta do tradicionalismo, como o ensino doméstico, na propagação de valores cada vez mais individuais, guiados por interesses próprios, descolados de qualquer compromisso com a vida em sociedade. A tentativa de aprovar o ensino doméstico é o horror que se evidencia, uma vez que a o surgimento da educação pública e laica foi justamente para evitar que os indivíduos fossem educados sem o compromisso com o social. Se o ensino privado, tanto médio quanto superior, já contribui para essa reificação do social e difusão do individualismo utilitário, a volta do ensino doméstico acabaria de vez com qualquer possibilidade de avanço democrático em nosso país.

Foi o ensino público e laico, baseado em preceitos científicos que permitiu cidades europeias criarem um senso de comunidade, que se desenvolvesse associações, corporações, e consequentemente levando a criação de diversas normas e leis que permitiriam o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e democrática. Uma vez que cidadãos estavam empenhados em um compromisso em comunidade, e não perseguindo apenas interesses egoístas, enxergando a sociedade como um mero meio de trocas materiais.

Em um país governado por um presidente que persegue interesses próprios, e de seu pequeno grupo, não poderia resultar em outra coisa que não uma acentuação da violência e da barbárie, sobretudo por forças policiais. O que se vê é que a figura do presidente acaba por legitimar tais atentados contra as pessoas, pois ele mesmo não conceber todos os seres humanos como algo sagrado e que por isso deveriam ser respeitados, pelo contrário, seres sagrados e intocados são aqueles os quais favorece seus interesses. Um governante que não tem o mínimo de compromisso com a democracia e seus respectivos valores, mas sim com a volta de estruturas tradicionais das sociedades pré modernas como a igreja, ensino doméstico.

Isso fica mais claro ao observar que os ataques a educação pública, aos Institutos Federais, as Universidades e as instituições de financiamento de pesquisa como CAPES e CNPq, que são cada vez mais sufocadas com cortes orçamentários, são sempre acompanhados de discursos que colocam em xeque não a qualidade do ensino, mas os valores propagados por essa educação em tais instituições, valores esses que se baseiam na laicidade, na ciência, no progresso e compromisso com a democracia. E agora tentam aprovar a cobrança de mensalidade de tais instituições, numa clara tentativa de restringir mais ainda o seu acesso.

Por outro lado, temos instituições repressoras, fraturadas que não se comunicam entre si ou com a sociedade, a exemplo, a instituição policial que não tem o compromisso em garantir a segurança e integridade física daqueles que ela foi incumbida de proteger. Para instituições como essas, é comum ver que as pessoas de classes mais altas e brancas são vistas como algo sagrado, intocadas pela lei ou pelos poderes, enquanto aqueles que são da periferia, das classes mais baixas e pretos são vistos como profanos, animalizados, logo sem valores e direitos.

 É preciso enxergar a conexão de tais eventos, porque a democracia faz parte de nossa identidade, e seu valor sagrado não surge do nada ou através de leis, mas sim ensinados a partir de processo educativos, desde a infância até o ensino superior. O compromisso com os valores democráticos em nossa sociedade, e a consequente diminuição do conflito, só ocorrerá quando a democracia for tratada como algo que acontece no cotidiano, nos rituais cotidianos de comunicação, deliberação, e não apenas em ano de eleição na escolha de um político ou partido. Entretanto para isso é preciso que esse sentimento, essa conduta, esse valor sejam difundidos, ritualizado, transformado em compromisso.

Mateus Venceslau

Graduado em Ciências Sociais pela UFRN. Mestrando em Ciências Sociais pelo PPGCS-UFRN. Pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa Social (GPS) e membro do Observatório da Democracia no RN.

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