Rio Grande do Norte, domingo, 05 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 14 de maio de 2013

As desigualdades substanciais camufladas pela igualdade jurídica

postado por Anderson Soares

camde-mulheres-golpistasÉ bastante comum acontecerem manifestações raivosas de setores conservadores da sociedade brasileira, quando vêem a possibilidade de mudança e ameaça aos privilégios, tradições que tanto reproduzem e perpetuam as relações autoritárias. Parte significativa destas manifestações é baseada num raciocínio linear generalizante (que não admite singularidades, contextualização e diferenças) ou por “verdades” construídas pelos costumes e hábitos que alimentam as mentalidades.

A apresentação de questões sociais geralmente é baseada em fatos pontuais e universalização de situações particulares para justificar a existência das desigualdades, sem contextualização. Como se todos fossem iguais e como se os indivíduos não estivem susceptíveis aos aspectos subjetivos, psicossociais, econômicos e culturais. Nossa sociedade passa por momento bastante oportuno para uma ampla discussão sobre a efetivação de reparações históricas através de políticas afirmativas, apesar das inúmeras imperfeições em sua aplicação pelo poder público. Oportunizando problematizar os processos históricos de nosso país.

São bastante válidas reflexões sobre o acesso à educação e justiça. Objetivando entender a sociedade brasileira contemporânea (desigual, corrupta e violenta) como um processo resultante, não como mera fatalidade social e por determinismo histórico, que são justificativas comumente utilizado pelos grupos conservadores e neo-liberais.
As reformas liberais do século XIX e a forma como foi concebida a Abolição em nosso país, garantiram a continuidade do poder político e econômico das elites. Mesmo que, oficialmente, num regime republicano e que a Constituição afirmasse “todos iguais perante a lei”, as desigualdades substanciais persistiram e os cidadãos de pele negra (que não tiveram acesso à reparação e dignidade) passaram a carregar um comprometedor estigma numa sociedade “livre”.
Falar em meritocracia na sociedade brasileira contemporânea (de criminosa concentração de renda, racismo velado e de raízes escravocratas) é como assistirmos uma corrida de cavalos em que alguns já saem do ponto de largada com as patas quebradas, que não servirão de justificativas para o comprometimento do percurso. Inexistindo qualquer tipo de contextualização sobre o ponto de partida até ao de chegada.

Estamos numa democracia, mas regida sob o poder do capital, ou seja, o poder do dinheiro é quem vai determina a qualidade e o acesso à educação, justiça, saúde e segurança. Danem-se aqueles que não conseguem por que a lei diz que somos todos iguais, em oportunidade!!!! Danem-se também os processos históricos e contextualização!!!
Aqueles que são beneficiados pelo poder de acumular capital vão, inclusive, fazer belíssimos discursos favoráveis à liberdade e democracia, desde que as suas condições de privilégio e poder sejam mantidas. Yves de La Taille (USP) nos ajuda a refletir sobre o tema: “Quanto à liberdade, seu aspecto formal também salta aos olhos. Frequentemente, ela é falsa justificativa para legitimar privilégios. O rico latifundiário falará em liberdade, e decorrente mérito, para justiçar seus bens. Os outros que consigam os seus! Ninguém proíbe de trabalhar e de comprar! Vê-se também que igualdade e liberdade andam juntas, um conceito remetendo a outro, às vezes complementando-se, às vezes se opondo”.

A eficácia do mito da igualdade jurídica é a de nos trazer a sensação de que aqueles que fracassaram socialmente foi por apenas incompetência pessoal ou preguiça, já que alguns imaginam que o país dá oportunidades iguais para todos, numa ilusão de que basta querer vencer independente das condições estruturais, familiares, econômicas e sociais.
Por exemplo, muito comum a mídia expor algumas situações pontuais, heróicas de jovem de periferia, trabalhador braçal, oriundo de escola pública que passou no vestibular de Medicina. Esta situação será estigmatizada, sendo exposta com a seguinte mensagem subliminar: “Se este pardo, pobre, sub-empregado, de escola pública foi aprovado, então os outros não passam por preguiça e incompetência”.

É preciso pensar na disparidade entre a beleza das leis impressas e na sua não efetivação num cotidiano de selvageria, numa sociedade em que a vida humana vale muito pouco, sendo a cidadania sobrepujada pelo consumo e pela coisificação e invisibilidade das pessoas que não “chegaram lá”.
Defensores da meritocracia como Roberta Fragoso (UNB) e Demétrio Magnoli até admitem a existência do racismo em nossa sociedade, porém, não como impedimento de ascensão social, afirmam que o problema é apenas a pobreza. Como se pobres brancos e negros estivessem no mesmo patamar no enfrentamento de obstáculos no acesso a qualificação e mercado de trabalho.

Não admitem a existência de herança do período escravocrata e miséria com conotação racial, que são visíveis na sociedade contemporânea. Ainda cometem o disparate de usar como justificativas, episódios extremamente pontuais do século XIX, como os escravos que obtinham carta de alforria, conseguiam capital e ascensão social.
Uma reflexão comparativa pode ser feita sobre as condições da sociedade norte americana após abolição do Apartheid ou a sociedade indiana a partir da abolição oficial do regime de castas. Nestas, também são pensados os efeitos destes regimes segregadores na contemporaneidade, mesmo com a existência de “todos iguais perante a lei”.

Portanto, reparação histórica não pode ser considerada como um benefício (como os conservadores e ignorantes se referem as cotas). Como se pobres, negros e índios escolhessem a exclusão e o flagelo para assim serem beneficiados por “facilitações” sociais de acesso e estragar a meritocracia de um Brasil “desenvolvido, sofisticado e igualitário”, como fantasiam as elites econômicas tupiniquins.

É preciso que o ponto de partida das reflexões sobre as políticas afirmativas seja o entendimento da sociedade atual (e todas as suas mazelas) como um processo resultante à ser problematizado, para que seja descoberta a “democracia” praticada (suas desigualdades substanciais) sob a camuflagem da igualdade jurídica. Lamentável o desconhecimento dos processos econômicos e históricos de nosso país, mesmos por jovens “esclarecidos” e “escolarizados” que apenas repetem frases feitas e “verdades” construídas pelo pensamento conservador de uma sociedade de hábitos autoritários e passado escravocrata.

Anderson Soares

Escritor.

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