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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 24 de dezembro de 2016

Papai Noel e o rito do Natal, por Claude Levi-Strauss

postado por Carta Potiguar

merryoldsantaÉ preciso desconfiar das explicações demasiado fáceis que apelam automaticamente aos “vestígios” e às “sobrevivências”. Se nunca tivesse existido um culto às árvores nos tempos pré-históricos, que se prolongou em várias tradi- ções folclóricas, a Europa moderna certamente não teria “inventado” a árvore de Natal. No entanto – como mostramos mais acima –, ela é uma invenção recente. Essa invenção, porém, não nasceu do nada.

Pois outros costumes medievais são plenamente comprovados: a chamada lenha de Natal (que inspirou um bolo natalino em Paris), um tronco espesso para arder a noite toda; os círios de Natal, com uma dimensão própria para a mesma finalidade; a decoração das casas (desde as Saturnais romanas, sobre as quais voltaremos a falar) com ramos verdes: hera, azevinho, pinheiro; por fim, e sem nenhuma relação com o Natal, os romances da Távola Redonda mencionam uma árvore sobrenatural recoberta de luzes. Em tal contexto, a árvore de Natal surge como uma solução sincrética, isto é, concentra num só objeto exigências até então dispersas: árvore mágica, fogo, luz duradoura, verde persistente.

Inversamente, Papai Noel, em sua forma atual, é uma criação moderna, e ainda mais recente é a crença que situa sua morada na Groenlândia, possessão dinamarquesa (o que obriga o país a manter uma agência de correio especial para responder às cartas de crianças do mundo inteiro), e o mostra viajando em um trenó puxado por renas. Consta que esse aspecto da lenda se desenvolveu principalmente na última guerra, devido à presença de tropas americanas na Islândia e na Groenlândia. E, no entanto, as renas não estão ali por acaso, visto que existem documentos renascentistas ingleses mencionando troféus de renas durante as danças de Natal, antes de qualquer crença em Papai Noel, e quem dirá da formação de sua lenda

Papai Noel veste-se de vermelho: é um rei. A barba branca, as peles, as botas e o trenó evocam o inverno. É chamado de “papai” e é idoso: encarna, portanto, a forma benevolente da autoridade dos antigos. Tudo isso é bastante claro, mas em que categoria ele deve ser classificado, do ponto de vista da tipologia religiosa? Não é um ser mítico, pois não há um mito que dê conta de sua origem e de suas funções; tampouco é um personagem lendário, visto que não há nenhuma narrativa semi-histórica ligada a ele. Na verdade, esse ser sobrenatural e imutável, fixado eternamente em sua forma e definido por uma função exclusiva e um retorno periódico, pertence mais à família das divindades; as crianças prestam-lhe um culto em certas épocas do ano, sob a forma de cartas e pedidos; ele recompensa os bons e priva os maus. É a divindade de uma categoria etária de nossa sociedade (categoria etária, aliás, suficientemente caracterizada pelo fato de acreditar em Papai Noel), e a única diferença entre Papai Noel e uma verdadeira divindade é que os adultos não crêem nele, embora incentivem as crianças a acreditar e mantenham essa crença com inúmeras mistificações.

Papai Noel, portanto, é em primeiro lugar a expressão de um status diferenciado entre as crianças, de um lado, e os adolescentes e adultos, de outro. Deste ponto de vista, ele se liga a um vasto conjunto de crenças e práticas que os etnólogos estudam na maioria das sociedades, a saber, os ritos de passagem e de iniciação. De fato, são raros os agrupamentos humanos em que as crianças (às vezes também as mulheres) não estão, de uma maneira ou de outra, excluídas da sociedade dos homens pela ignorância de certos mistérios ou pela crença – cuidadosamente alimentada – em alguma ilusão que os adultos se reservam o direito de desvendar em um instante oportuno, sacramentando assim o momento em que as gerações jovens se integram ao mundo deles.

Por vezes, tais ritos guardam uma semelhança surpreendente com os ritos que estamos examinando agora. Como não notar, por exemplo, a analogia entre Papai Noel e as katchina dos índios do sudoeste norte-americano? Esses personagens fantasiados e mascarados encarnam deuses e ancestrais; voltam periodicamente à aldeia para dançar e para punir ou recompensar as crianças, e dá-se um jeito para que elas não reconheçam os pais ou parentes sob o disfarce tradicional. Papai Noel certamente pertence à mesma família, com outros colegas agora postos em segundo plano: o Croquemitaine, o Père Fouettard etc.. É extremamente significativo o fato de as mesmas tendências educacionais que hoje proíbem o apelo a essas “katchina” punitivas enalte- çam a figura benevolente do Papai Noel, em vez de englobá-lo na mesma condenação, como permitiria supor o desenvolvimento do espírito positivo e racionalista. Sob este aspecto, não houve racionalização dos métodos pedagógicos, pois Papai Noel não é mais “racional” do que o Père Fouettard (neste ponto a Igreja tem razão): assistimos a um deslocamento mítico, e é isso que requer explicação.

É fato consumado que os ritos e mitos de iniciação têm uma função prática nas sociedades humanas: eles ajudam os carnival_and_lentmais velhos a manter a ordem e a obediência entre os mais novos. Durante o ano todo, invocamos a vinda de Papai Noel para lembrar às crianças que a generosidade dele será proporcional ao bom comportamento delas; e o caráter periódico da distribuição dos presentes é útil para disciplinar as reivindicações infantis, para reduzir a um período curto a época em que elas têm realmente o direito de exigir presentes. Mas esse enunciado simples basta para mostrar como são insuficientes os quadros da explicação utilitária. Pois de onde vem a idéia de que as crianças têm direitos, e que tais direitos se impõem de forma tão imperiosa aos adultos que estes são obrigados a elaborar mitos e rituais custosos e complicados para conseguir contê-los e limitá-los?

Logo percebemos que a crença em Papai Noel não é apenas uma mistificação agradavelmente imposta pelos adultos às crianças; é, em larga medida, o resultado de uma negociação muito onerosa entre as duas gerações. Ocorre com o ritual inteiro o mesmo que com as folhagens verdes – pinheiro, azevinho, hera, visco – com que decoramos nossas casas. Hoje são meros adornos, mas outrora, pelo menos em algumas regiões, eram objeto de uma troca entre duas parcelas da população: na véspera do Natal, na Inglaterra, até o final do século XVIII, as mulheres faziam o chamado gooding, isto é, saíam pedindo de casa em casa, e ofertavam ramos verdes aos que colaboravam. Encontraremos as crianças na mesma situação, e cabe notar que elas, no peditório de São Nicolau, às vezes se vestiam de mulher: mulheres, crianças, ou seja, em ambos os casos, não-iniciados.

Ora, trata-se de um aspecto muito importante dos rituais de iniciação que nem sempre recebeu atenção suficiente, mas que esclarece melhor sua natureza do que as considerações utilitárias mencionadas no pará- grafo anterior. Tomemos como exemplo o ritual das katchina dos índios Pueblo, já citado. Se não se revela às crianças a natureza humana dos personagens que encarnam as katchina, será apenas para que os temam ou respeitem e se comportem de acordo com isso? Sim, sem dúvida, mas esta é apenas a função secundária do ritual, pois existe outra explicação, que o mito original esclarece perfeitamente. Este mito explica que as katchina são as almas das primeiras crianças indígenas, que se afogaram dramaticamente num rio à época das migrações ancestrais. Assim, as katchina são ao mesmo tempo prova da morte e testemunho da vida após a morte. E não é tudo: quando os antepassados dos índios atuais finalmente se estabeleceram na aldeia, conta o mito que as katchina vinham visitá-los todos os anos e, ao ir embora, raptavam as crianças. Os índios, desesperados com a perda dos filhos, conseguiram que as katchina ficassem no além, em troca da promessa de representá-las uma vez por ano com danças e máscaras. Se as crianças são excluídas do mistério das katchina, não é primeiramente e nem principalmente para intimidá-las. Eu diria antes que é pela razão contrária: é porque elas são as katchina. Elas são excluídas da mistificação porque representam a realidade com a qual a mistificação precisa estabelecer uma espécie de compromisso. O lugar delas é outro: não com as máscaras e os vivos, mas com os deuses e os mortos; com os deuses que são os mortos. E os mortos são as crianças.

Acreditamos que essa interpretação pode ser aplicada a todos os ritos de iniciação e mesmo a todas as ocasiões em que a sociedade se divide em dois grupos. A “não-iniciação” não é apenas um estado de privação, definido pela ignorância, pela ilusão ou por outras conotações negativas. A relação entre iniciados e não-iniciados tem um conteúdo positivo. É uma relação complementar entre dois grupos, sendo que um representa os mortos e, o outro, os vivos. Durante o ritual, aliás, é comum que os papéis se invertam várias vezes, pois a dualidade engendra uma reciprocidade de perspectivas que, como espelhos colocados frente a frente, pode se repetir ao infinito: se os não-iniciados são os mortos, eles também são super-iniciados; e se, como também ocorre com freqüência, são os iniciados que personificam os fantasmas dos mortos para assustar os neófitos, é a estes que caberá, num estágio posterior do ritual, dispersá-los e impedir que retornem. Sem prosseguir nessas considerações, que nos afastariam de nosso objetivo, basta lembrar que, na medida em que as crenças e os ritos ligados a Papai Noel derivam de uma sociologia iniciática (e sobre isto não restam dúvidas), trazem à tona, para além da oposição entre crianças e adultos, uma oposição mais profunda entre mortos e vivos.

* * *

É revelador que os países latinos e católicos, até o século XIX, tenham colocado a ênfase em São Nicolau, isto é, na forma mais moderada da relação, ao passo que os países anglo-saxões costumam desdobrá-la em suas duas formas extremas e antitéticas: o Halloween, em que as crianças fazem o papel de mortos para extorquir presentes dos adultos, e o Natal, em que os adultos presenteiam as crianças exaltando-lhes a vitalidade. A partir daí, esclarecem-se as características aparentemente contraditórias dos ritos natalinos: durante três meses, a visita dos mortos aos vivos tornou-se mais e mais insistente e opressiva. Assim, no dia da despedida pode-se permitir festejá-los e lhes oferecer uma última ocasião de se manifestar livremente, ou, como diz tão fielmente o inglês, to raise hell [“soltar os demônios”]. Mas quem pode personificar os mortos numa sociedade de vivos, a não ser todos os que, de uma maneira ou de outra, não estão completamente integrados ao grupo, ou seja, que participam daquela alteridade que é a própria marca do supremo dualismo, o dualismo entre os mortos e os vivos? Assim, não admira ver os estrangeiros, os escravos e as crianças como os principais beneficiários da festa. A inferioridade na condição política ou social e a desigualdade etária são, deste ponto de vista, critérios equivalentes.

De fato, dispomos de inúmeros testemunhos, sobretudo nos países escandinavos e eslavos, que desvelam como característica própria da festa de Ano Novo ser ela uma ocasião de oferecer alimento aos mortos, na qual os convivas desempenham o papel de mortos, tal como as crianças desempenham o de anjos, e os anjos, o de mortos. Não surpreende, pois, que o Natal e o Ano Novo (seu duplo) sejam festas de presentes: a festa dos mortos é, na essência, a festa dos outros, visto que o fato de ser outro é a primeira imagem aproximada que podemos construir a respeito da morte.

Vimos que Papai Noel é o herdeiro e, ao mesmo tempo, a antítese do Senhor da Desrazão. Essa transformação indica, em primeiro lugar, uma melhoria de nossas relações com a morte; para ficarmos quites com ela, já não cremos ser necessário permitir-lhe periodicamente a subversão da ordem e das leis. Agora, a relação é regida por um espírito de benevolência levemente desdenhosa; podemos ser generosos, tomar a iniciativa, pois é apenas uma questão de lhe oferecer presentes e até brinquedos, ou seja, símbolos. Mas esse enfraquecimento da relação entre mortos e vivos não se dá em detrimento do personagem que encarna tal rela- ção: diríamos, pelo contrário, que ele até se desenvolve melhor.

Essa contradição seria insolúvel se não admitíssemos que outra atitude em relação à morte continua a avançar entre nossos contemporâneos: talvez feita não do modo tradicional de espíritos e fantasmas, e sim do medo de tudo o que a morte representa, em si mesma e para a vida, em termos de empobrecimento, aridez e privação. Observemos os ternos cuidados que temos com Papai Noel, as precauções e os sacrifícios que aceitamos para manter seu prestígio intocado junto às crianças. Não será porque, lá no fundo de nós, ainda persiste a vontade de acreditar, por pouco que seja, numa generosidade irrestrita, numa gentileza desinteressada, num breve instante em que se suspende qualquer receio, qualquer inveja, qualquer amargura? Sem dúvida, não podemos compartir plenamente a ilusão, mas o que justifica nossos esforços é que, alimentada em outrem, ela nos oferece pelo menos uma oportunidade de nos aquecer à chama acesa nessas jovens almas. A crença que inculcamos em nossos filhos de que os brinquedos vêm do além oferece um álibi ao movimento secreto que nos leva a ofertá-los ao além, sob o pretexto de dá-los às crianças. Dessa maneira, os presentes de Natal continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, em primeiro lugar, em não morrer.

Certa vez, Salomon Reinach escreveu com muita profundidade que a grande diferença entre as religiões antigas e as modernas consiste no fato de que “os pagãos rogavam aos mortos, ao passo que os cristãos rogam pelos mortos”. Sem dúvida, há uma grande distância entre a prece aos mortos e a prece repleta de conjurações que, todos os anos e cada vez mais, dirigimos às crianças – encarnação tradicional dos mortos – para que, acreditando no Papai Noel, elas consintam em nos ajudar a acreditar na vida. Mas deslindamos os fios que testemunham a continuidade entre essas duas expressões de uma mesma realidade. A Igreja não está errada quando denuncia na crença em Papai Noel o bastião mais sólido e um dos campos mais ativos do paganismo no homem moderno. Resta saber se o homem moderno não pode também defender seus direitos de ser pagão.

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Fragmento: Lévi-Strauss, Claude. O suplício do Papai Noel (Le père Noel supplicié). São Paulo: Cosac Naify, 2008.

Carta Potiguar

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