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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 27 de março de 2020

Covid-19: a fragilidade do mundo e a tirania da economia

postado por Alyson Freire

A pandemia de Covid-19 impõe ao mundo as maiores ameaças que este século já presenciou. Talvez mesmo as maiores desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com meio milhão de casos confirmados no planeta, essa nova cepa de coronavírus instalou uma verdadeira crise global. Os danos colaterais são monumentais, isto é, para além dos danos diretos, os mais dolorosos, que são as vidas humanas ceifadas em larga escala todos os dias e nos mais diferentes países.

Por essas e outros razões, e, assim como aconteceu com outras epidemias históricas, o Covid-19 certamente marcará nosso imaginário coletivo por muito tempo. Daí a importância também de refletirmos sobre a crise que estamos vivendo: o que ela diz sobre nós? Como ela está transformando nossas relações e práticas sociais? Que limites e contradições ela revela sobre o nosso modo de vida, nossos sistemas econômicos e políticos, nossos valores morais? Que desdobramentos geopolíticos pode ocasionar?

Certamente, a atual pandemia nos coloca muitas questões relevantes e complexas, as quais, diga-se, extrapolam as dimensões estritamente médicas, sanitárias e biológicas. Desnecessário dizer, portanto, que outros especialistas, em particular das ciências humanas e sociais, não devem deixar o seu saber em “quarentena”. Devem, sim, com efeito, contribuir tanto para a construção de uma reflexão coletiva sobre nós mesmos e sobre os rumos da sociedade nesse momento histórico quanto com conhecimento fundamentado e apto a informar, subsidiar e criticar decisões políticas e econômicas a respeito da pandemia e suas consequências.

Neste texto, penso que a pandemia de Convid-19 e seus desdobramentos até aqui nos recordam de, ao menos, duas verdades subjacentes e cruciais sobre a nossa condição e forma de vida. São elas: a fragilidade do “nosso mundo” e a tirania de uma lógica econômica a que somos submetido.

I. “O animalzinho que somos”

Num livro tremendamente aflitivo e pertinente para ser lido hoje, “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago, há um pequeno trecho que diz: “Mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos”. Assim como os desastres, as epidemias são contundentes para iluminar os nossos limites e vulnerabilidades. Ou, para dizer novamente com o escritor português: para abrir os olhos desses “cegos que, vendo, não veem”, que somos nós em situações de normalidade.

A primeira das verdades é, portanto, a da nossa própria fragilidade, do “animalzinho que somos”. Em termos mais antropológicos, trata-se da fragilidade de nossas construções autoprotetoras, sejam elas técnicas ou simbólicas, de ordem e segurança face às ameaças e riscos externos que gostaríamos de controlar e isolar.

Nascemos e vivemos num mundo acostumado às vacinas, remédios e sistemas peritos médico-sanitários. Nossa confiança no poder da ciência e da tecnologia para manter e construir um mundo mais seguro é um dos nossos mais inabaláveis artigos de fé. E, a despeito de todo o progresso extraordinário produzido pelo conhecimento humano em termos de bem-estar e saúde, o sentimento atual no mundo é o da fragilidade natural da vida humana.

Entre outras coisas mais, a pandemia de Covid-19 perturba a sensação imunológica propiciada, por exemplo, pelos avanços tecnocientíficos modernos, e graças aos quais, assim acreditamos, a vida humana poderia existir e desfrutar, quase que despreocupada, de um interior cálido, previsível e protegido do exterior.

As epidemias nos lembram desta verdade desconfortável e inquietante: o nosso esforço progressivo de dominar a natureza e o desconhecido, essa racionalidade defensiva de autoconservação, descrita magistralmente por Adorno e Horkheimer como fundamento do projeto civilizatório do Esclarecimento, é incapaz de controlar e de nos liberar por completo da natureza. Ainda somos um animal amarrado à natureza, sujeito as suas forças conhecidas e desconhecidas. Estar diante de um vírus para qual não se tem tratamento ou cura, explicita como nem sempre a natureza se inclina à nossa vontade e saber. Mais ainda, a pandemia de Covid-19 tem uma ironia trágica: o mundo do progresso que construímos para o nosso bem-estar, hiperconectado de diferente formas, torna-se, impremeditadamente, veículo catalisador da velocidade e da propagação planetária do próprio vírus. Novamente, se expõe a fragilidade do nosso mundo.

A formidável – mas que também sabe ser terrível – razão humana não pode nos assegurar uma sociedade esterilizada contra todos os perigos e ameaças. O que não quer dizer, seguramente, que devamos abrir mão da racionalidade e da ciência. Pelo contrário.

Se, por um lado, uma pandemia contra a qual temos ainda pouco controle e conhecimento soa como um golpe ferino em nosso narcisismo antropocêntrico e em nossas ilusões de uma vida completamente protegida do risco, por outro, num nível mais individual, ela também desmantela nosso senso e anseio cotidiano por ordem e previsibilidade.

Epidemias e doenças infecciosas possuem um enorme poder social de perturbar nosso sentido de ordem, confiança e estabilidade da realidade, especialmente quando vivemos em um mundo globalizado e hiperconectado. Nesse sentido, toda epidemia, em graus variados, é sempre acompanhada de uma epidemia de medo, ansiedade e desconfiança. Medos e desconfianças que são de várias ordens, não apenas o medo de contrair a doença e a desconfiança de que o outro possa estar contaminado e transmiti-la a mim.

De repente, o que conhecemos e naturalizamos como risco “natural e aceitável” parece não mais servir diante de uma nova ameaça, percebida como incerta. A sensação relativa de segurança e de controle da vida tal como costumávamos levar, de que ela é mais ou menos segura, confiável, previsível e inteligível, é, desse modo, profundamente abalada. A alteração brusca das rotinas, a fragilização dos vínculos sociais e a perda do sentido de continuidade intensificam sentimentos de mal-estar, ansiedade, vulnerabilidade, impotência e até mesmo de pânico, fazendo com que eles ganhem cada vez mais espaço e força em nossa vida emocional. Não se trata apenas de nossa vulnerabilidade biológica, mas também de nossa vulnerabilidade mental.

A pandemia de Covid-19 tem sido vivida, ao nível individual, como uma ameaça existencial, uma intensa fonte de incerteza ao nosso senso de segurança e controle da vida cotidiana. É uma espécie de colapso da “vida normal”. Desse modo, ela está trazendo à tona a fragilidade existencial do mundo social como uma realidade bem fundada. Vista a partir do que está a nos acontecer agora, com o isolamento, a ordem social que suporta a nós e nossas atividades parece ser uma fina camada de gelo sob os nossos pés. Tudo aquilo que aparenta garantir ordem, estabilidade e coerência ao nosso mundo, como as nossas atividades diárias, metas, prazos, obrigações, regras de convivência, é, na verdade, arbitrário e frágil. Como escreveu o sociólogo Peter Berger, a realidade social é, na verdade, algo mais próximo de “uma pequenina clareira de lucidez numa floresta informe, escura, sempre ominosa… um edifício levantado frente às poderosas e estranhas forças do caos “.

O consumo compulsivo de notícias a respeito do Covid-19, o acompanhamento mórbido de estatísticas, projeções e estimativas, a obsessão com novos hábitos, tais como lavar constantemente as mãos e manter um distanciamento físico e social das pessoas, a corrida por estocar alimentos e remédios, tudo isso é, em certo sentido, uma espécie de resposta e enfrentamento socioemocional para a desestabilização de nosso senso de ordem, confiança e estabilidade, uma tentativa de sentir uma certa retomada do controle sobre a vida e seus riscos.

Em um mundo que já é bastante instável, efêmero e definido pela incerteza, os desdobramentos socioemocionais da atual pandemia não são algo, certamente, que devam ser ignorados e minimizados. Uma epidemia não é apenas uma disseminação de microorganismos biológicos de pessoa a pessoa mas também, pode-se dizer, uma propagação de “microrganismos sociais” na forma de crenças, representações, afetos e emoções acerca da doença, de seu contágio, de suas causas, de seus supostos “responsáveis” e de seus sentidos (vide a onda de teorias conspiratórias, os ataques xenófobos contra China e os chineses, os discursos religiosos de castigo divino etc). Uma epidemia “contamina” também o social, e pode espalhar, inclusive, um “social” potencialmente adoecedor, que se instala silenciosamente nos corpos, corroendo-os emocionalmente. Por isso, a maneira como uma sociedade reage, institucionalmente, socialmente e emocionalmente, a uma pandemia é decisiva acerca do próprio poder de disseminação e letalidade da doença.

II. “O moinho satânico não pode parar”

O segundo ponto, por sua vez, consiste na tirania da economia sobre a vida humana.

Nos últimos dias, a ofensiva de investidores e empresários, como Roberto Justus, Luciano da Havan e Junior Durski (Madero), e líderes políticos, como Trump e Bolsonaro, contra os supostos excessos das medidas de isolamento social causou enorme espanto e indignação. Um espanto e indignação que não são exatamente com o pavor do capital com a retração dos lucros nesse momento. Nem são também com cinismo que se disfarça de defesa dos empregos e da renda do trabalhadores por parte daqueles que, bem se sabe, jamais tomaram tais coisas como séria preocupação em tempos de normalidade. Tampouco o espanto e a indignação são com a miséria moral e a indiferença social de parte das elites econômicas e políticas nacionais, traço histórico e inercial do comportamento e mentalidade antissocial e antipovo destas, constituinte da própria formação social do Brasil.

De uma maneira muito direta, o discurso de que “não podemos permitir que a cura seja pior que o problema” torna explícito aquilo que para Karl Marx define a lógica opaca e abstrata da dominação capitalista; o fato de a sociedade capitalista ser uma forma de vida “em que o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção”. Ou seja, Justus, Luciano, Trump e Bolsonaro estão apenas desnudando sem pudor e esfregando em nossos rostos essa verdade básica do funcionamento do capitalismo: as pessoas existem para a economia, e não o contrário. Logo, a saúde da economia sobre a saúde das pessoas – em especial a saúde das pessoas “improdutivas”, das “pessoas-despesas”.

A pressão de certos setores econômicos pelo relaxamento do isolamento social evidencia uma outra tese forte sobre a peculiaridade da economia capitalista, qual seja, o desenraizamento e autonomia da esfera econômica em relação às demais esferas da vida social.  Essa tese foi formulada pelo historiador Karl Polanyi, para quem a economia como uma instituição autônoma e socialmente desprendida seria, com efeito, uma espécie de “moinho satânico” ou “moinho cego”, que, livre de regulamentações e demandas extraeconômicas, só reconhece como motivações válidas a atração do lucro e o medo da fome.

Como atesta o pronunciamento do último dia 24 do presidente da República, em situações-limite, a economia deve-se se descolar até mesmo da ciência, da saúde coletiva e do direito à vida da população. Uma economia de poder soberano, portanto, uma economia do “deixar morrer”. Assim, em nome de um futuro econômico hipotético com prejuízos fiscais e financeiros menores, ignora-se um provável crescimento vertiginoso da disseminação do contágio, o decorrente colapso do sistema de saúde e milhares de mortes cujas vidas, com o isolamento social, seriam salváveis.  O moinho capitalista não pode parar. Ou, em traços ufanistas de um nacionalismo postiço: “O Brasil não pode parar”, slogan da nova campanha do Governo Federal.

Exatamente quando as autoridades do Ministério da Saúde e especialistas ressaltam que estamos adentrando no momento de pico do contágio e de escalonada dos casos e mortes, setores “cegos” pela atração do lucro, que manipulam o legítimo medo da fome, se organizam para pressionar a favor do relaxamento e até mesmo da suspensão do isolamento social em pró do retorno das atividades econômicas. Os bancos, por sua vez, elevam juros e oferecem crédito. Pois bem, parece que Karl Polanyi não exagerou quando sustentou que, levado às últimas consequências, esse entendimento e funcionamento desenraizado da economia como uma esfera autônoma tendia a destruir a própria sociedade.

Os que dizem que “a cura não pode ser pior do que doença”, “que mais morrerão das consequências econômicas do que do próprio vírus” estão dizendo, na verdade, o seguinte: “o homem deve servir à economia, a sua estabilidade e crescimento, não o contrário, ainda que ele tenha que morrer para isso”. Esse discurso não é frieza nem insensibilidade. Ele exprime uma concepção, ou melhor, uma lógica de soberania da economia sobre a sociedade, inclusive, sobre a vida, que, no limite, é tipica da economia capitalista quando entendida e defendida como realidade autoregulada e desregulamentada.

Não deveríamos esperar uma pandemia para estranhar uma organização social cujo sujeito é um processo econômico abstrato (valorização do valor, o lucro, a acumulação) e não o próprio ser humano e suas necessidades. No entanto, parece que os efeitos sociais e econômicos da pandemia de Covid-19 bagunçam o véu da ideologia e de seu poder de mascaramento e ocultamento da realidade. As contradições sistêmicas, as inversões e a irracionalidade capitalistas emergem, então, cristalinas.

À vista e ao ouvido de todos, parte das elites está gritando em alto e bom som: “entre os nossos interesses e lucros e a saúde do povo; que se dane o povo!”. As declarações de empresários nos últimos dias cheiram a um “darwinismo socioeconômico”. Afinal de contas, as mortes dos mais improdutivos e dispendiosos melhorariam a saúde da economia, a tornariam mais “forte”. Assim, tais falas estão pondo à nu a iniquidade de uma lógica que mede o mundo unicamente pelo dinheiro e que torna objeto (ser humano) quem deveria ser sujeito, que torna um fim (economia, riqueza) o que deveria ser um meio. Todo o esforço ideológico de naturalizar a economia capitalista como a própria economia em si, como uma realidade inevitável que deve sempre seguir o movimento de acumulação e crescimento do capital para o bem-estar de todos, se mostra, mais uma vez, em sua arbitrariedade e perversidade interessada.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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