Rio Grande do Norte, domingo, 05 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de junho de 2022

A evolução em três atos

postado por Joao Paulo Rodrigues

Quando aqui cheguei não havia nada. Não era uma casa muito engraçada. Tinha teto e mais nada. Eu poderia fazer pipi e tinha rede, porque na casa tinha parede, e mais nada. Até eu poder ter uma cama muitas coisas houveram, muitas coisas tiveram de evoluir e em três atos.

Eu tinha de trabalhar sentado a uma escrivaninha, assentado em uma cadeira toda escangalhado cujo equilíbrio só foi possível depois que a firmei com cordas. Era um sofrimento só, pois minhas costas reclamavam o tempo todo. Trabalhava por meia hora e deitava-me na rede por três.

Com muito esforço, eu consegui uma mesa adequada para estudar e um tamborete que era mais seguro que a cadeira em via de erosão. Porém, o tamborete, que foi feito sob encomenda, veio com suas medidas erradas. Novamente eu passava uma hora trabalhando e três deitado na rede: era a única maneira de recuperar a saúde do meu corpo.

Porém, com passar do tempo, meu corpo já não suportada o cotidiano de ficar reto e curvilíneo, reto e curvilíneo… reto e curvilíneo. Com muito esforço eu consegui comprar um sofá. Livrei-me das dores. Estava livre daqueles incômodos que comprometiam meu espírito e corpo.

Entretanto, ainda que o sofá tivesse me tirado das humilhações espiritual e material, ainda sentia a necessidade de ter uma cama, porque o sofá servia muito bem para meus estudos e até para dormir, mas ainda assim eu não conseguia me sentir à vontade para dormir nele.

Digo, meu corpo reclamava mais espaço e liberdade. Eu precisava dar outro passo rumo a minha evolução, eu precisava me tornar um homo erectus.

Pois bem, hoje eu comprei minha cama. Sim, minha cama, só minha, toda minha – que ego, que egoísta!

Agora sim meu corpo poderá descansar. Sinto-me um vitorioso. Sinto que venci. Na seleção natural darwiniana eu consegui sobreviver a rede, ao sofá e, finalmente, consegui uma caixa sobre a qual meu corpo possa descansar, assim como os jazidos dos finados.

Não enriqueci, apenas me adaptei e resisti até poder adquirir esses bens para meu corpo.

Se estou feliz? Bem, eu sou minha evolução de mim mesmo; eu consegui. Então, sim, estou contente.

O importante é conseguir perseverar e se adaptar. O importante é saber que se se consegue dormir em uma rede, consegue-se dormir em um sofá. Se se consegue dormir em um sofá, consegue-se dormir em uma cama.

Não se deve, porém, penso eu, entender que uma cama é a evolução de uma rede. Não tem nada a ver. A rede é linda e sua poesia da suspenção é insuperável.

O ponto é que para se chegar a ter uma cama, antes se teve uma cadeira, um tamborete, uma rede, um sofá, isto é, a rede se tornará mais um item, e não o único a trazer vida a casa.

Sei que isso nada tem a ver com a evolução da espécie nem foi essa minha intenção. Isso diz respeito apenas um jovem que decidiu morar só, sem eira nem beira –a pior decisão a se tomar na vida, quando disso trata-se!

Mas, pensando bem, não tinha como ser diferente, porque esse jovem teve de se suspender, puxando seus próprios cabelos. O Barão de Münchhausen fez escola.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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