Rio Grande do Norte, quinta-feira, 09 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 20 de outubro de 2011

A lógica do consumo na arte

postado por Túlio Madson

Antes de tudo, começo explicando que o título pode resultar em uma terrível contradição: a lógica de consumo não pode estar na arte, porque a arte afetada pela lógica de consumo passa a não ser mais arte. Assim, devo-lhes uma delimitação: trataremos aqui da arte vinculada ao entretenimento, por ser essa a manifestação “artística” que mais está em evidência, e a que mais está presente no espírito e na formação do cidadão comum.

A expansão do neoliberalismo na América Latina no início da década de 90, abateu em cheio a  geração yfomos a primeira em nosso país a ser descaradamente assediada por essa lógica consumista importada com o neoliberalismo. Passamos com isso a  ter uma relação de consumo com a arte; desenhos animados eram estampados em toda uma gama de produtos, e como se isso não bastasse, tais desenhos chegavam a nós exclusivamente através de programas de auditório que nos coagiam a consumir outras coisas, e com isso, geravam as famosas modinhas que eram muito comuns em nossa infância. Assim, fomos doutrinados a consumir manifestações artísticas; desenhos, músicas, filmes, eventos, que nos doutrinavam a consumir outra gama de produtos; brinquedos, chicletes com figurinhas e todo o tipo de guloseimas,  revistas, sandálias, roupas, tênis, vídeo games, etc.

Perdidos nesse processo carecíamos de referências nossas, de contextos tropicais,  de uma paidéia dos trópicos, histórias como as do sítio do pica-pau amarelo, que se familiarizavam com uma realidade mais próxima a nossa – ainda que com vestes coloniais – nos chegavam com dificuldade. Passamos a ter as mais diversas e estranhas referências, o que em certa medida nos tornou também mais plurais. Entretanto, na medida em que nos abríamos ao mundo, nos fechávamos – ou nos fecharam? – em casa. Assim formaram-se cidadãos cosmopolitas, interessados no mundo, mas ao mesmo tempo, sem identidade própria, fechados, individualistas, de pouco tino social.

Nossas referências eram os heróis, assim nos faziam comprar mais – se tal herói recomendava, quem sou para recusar?, desde o nipônico e ao mesmo tempo helênico Os Cavaleiros do Zodíaco, ao rigoroso clima nórdico e combativo de Thundercat, à malícia do Pica Pau, o jeitinho latino-americano de Chaves, toda a fantasia açucarada da Disney, tudo isso somos nós. Lecionaram-nos em uma paidéia anárquica, guiados pelos ideais da indústria do entretenimento, que não possuíam ideais, apenas nos mantinham “grudados na telinha”.

A associação da arte com o entretenimento não se deu por acaso: para sermos consumidores temos que ser exímios competidores, e assim cada vez mais nos esforçar para superar o outro. Logo se torna indispensável um refúgio, um consolo metafísico que é absolutamente necessário para manter a lógica do consumismo, do contrário, não aguentaríamos a rotina desgastante que nos é imposta. O consumo é a justificativa para o trabalho: trabalha-se cada vez mais para suprir os desejos de consumo. Nessa rotina de trabalho exaustivo, manter-se entretido nas horas de folga é fundamental. Entra em cena então a arte do entretenimento, que além de propiciar um refúgio à rotina de trabalho, serve também para anunciar e criar novos desejos de consumo. A arte torna-se com isso uma indústria do lazer.

A noção de direitos autorais é o que viabilizou essa mudança, vinculando a arte como bem de consumo e o artista como trabalhador da arte, fazendo das obras de arte, mercadorias. Nesse contexto a noção de  direito autoral torna-se a peça central dessa engenharia: para a indústria funcionar se faz necessário a existência de um produto, e o direito autoral é o que possibilita a transformação das obras em produtos. Tornando o artista um predador de consumidores, que necessita agora, antes de tudo, vender. Não se busca mais atingir uma excelência, se visa apenas ser notado, ser visto, estar sempre em evidência, porque isso faz  com que seus produtos vendam. Passam então a não expressar nada, apenas reproduzem uma imagem, um conceito, um padrão que possa ser facilmente reproduzido, valorizando assim os seus produtos. Isso claro sem comentar os “artistas” que são apenas a faixada de interesses corporativos, que visam produzir hits moldados para atingir um determinado público alvo, público esse, ávido por consumir produtos que tenham uma veste “cultural” ou “artística, porque acreditam que este rótulo lhe traz um diferencial.

Entretanto, toda ação gera uma reação, e nossa geração reagiu: com a internet passamos a burlar o sistema, podíamos agora consumir as obras livremente, sem transforma-las em produtos, podíamos ter acesso a qualquer obra por intermédio de um click. Essa democratização das obras de arte possibilitada pela internet, foi a grande vingança de nossa geração contra essa lógica de consumo que nos foi imposta. Mas não foi o suficiente, precisamos não apenas mudar os meios pelos quais obtemos obras de arte, mas principalmente repensar àquilo que entendemos como arte.

É evidente que mesmo dentro desse sistema há bons artistas, que além de vender produtos, vendem bons produtos.  E claro, não ignoremos o fato de que o artista ao longo da história sempre precisou comercializar sua arte para sobreviver, sempre houve e sempre haverá excelentes artistas que fazem determinadas obras para vender para um determinado público.

O que se quer questionar aqui é a apreciação da arte como fuga, consolo, refúgio, como única saída possível de uma realidade desgastante. O refugiar-se em outro mundo torna-se algo mais tentador do que mudar o nosso. É uma inversão de perspectiva: não deveríamos consumir a arte para fugir de nossa realidade, temos que consumi-la para construir outra.

Schiller nos lembra em uma série de cartas ao príncipe de Augustenburg – que viriam a se tornar sua obra mais conhecida, sobre a educação estética do homem numa série de cartas – que havia uma lei do sábio legislador grego Sólon “que obrigavam os cidadãos a tomarem posição numa rebelião“, sendo passível de punição aqueles que ficassem em cima do muro. Schiller escrevia à luz da revolução francesa e afirmava que “o grande destino da humanidade está posto em questão, e portanto, como parece, não se pode permanecer neutro sem se tornar culpado da mais punível indiferença diante do que tem de ser o mais sagrado para o homem”. Vivemos também em época de revolução, em uma mudança silenciosa e radical, nosso mundo caminha para uma nova realidade, começamos a ver um clamor legítimo por mudanças eclodindo em todo o mundo. Portanto não podemos ficar “em cima do muro” e a arte tem uma função fundamental nisso, ela precisa cooptar esse sentimento de mudança, e com isso criar esse novo mundo.

Schiller propõe uma aproximação entre ética e estética, tentando abstrair um ethos da estética, demonstrando que a arte pode contribuir para a formação de uma ética, e que uma educação estética se faz necessário para se conceber uma nova humanidade. A arte segundo ele, não apenas engrandece e enriquece o espírito, tornando-o mais civilizado, e menos violento, mais também, pode servir para uma formação ética, papel este delegado exclusivamente à razão com o imperativo categórico kantiano, “assim, se a formação estética encontra este duplo carecimento, se por um lado ela desarma a rude violência da natureza e relaxa a animalidade, por outro lado desperta a força auto-ativa da razão e torna veraz o espírito, então (e também somente então) está apta a servir de instrumento para a formação ética“.

Assim não apenas teremos que criar um novo mundo, ou uma nova ética, antes, se torna imperiosa a necessidade de uma nova arte, que não se limite apenas ao papel de nos entreter, que não seja só mais um produto, mas, que nos forme e nos prepare para um novo mundo.

Túlio Madson

Colunista na Carta Potiguar desde 2011. Professor e doutorando em Ética e Filosofia Política pela mesma instituição. Péssimo em autodescrições. Email: tuliomadson@hotmail.com

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