Rio Grande do Norte, sábado, 18 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de maio de 2024

Eu conheço a saída

Giovanna Mantuano é educadora, mestra em ensino e socióloga

Minha mãe sempre foi uma mulher muito sábia, li no diário.

Certa vez, trançando meus cabelos ela me disse – “nem para mais, nem para menos, use sempre a régua certa, saiba exatamente o seu tamanho e importância de cada coisa” – me disse cortando uma fitinha vermelha para colocar no arremate da trança.

Vez por outra ela soltava uma dessas e saía me apontando caminhos com as mãos, como se tivesse previamente tateando tudo dando peso e medida certos. No fundo, eu queria para mim, sua trena e balança de precisão. Aquela que me mostrava a medida certa de todas as coisas.

Já Dolores… é! Dolores sempre foi muito condescendente, passiva, resignada com a vida e isso me irritava pro-fun-da-men-te. Num brevíssimo rompante de sinceridade ela disparou – “tenho medo do que você se tornou! Cada vez mais fatídica”. Fiquei pensativa, percebi que isso realmente se aplicava a mim, tanto para o bem como para o mal. Antes eu era mais feliz! Quando não sabia que ingênua. Foram as frutas fora de época que me amargaram a boca. Mal sabia ela das cicatrizes de minhas ondas internas. Mas eu aprendi: Se ser mulher se torna, é depois da queda que ela se forja. Respondi atentamente, com a urgência de quem proclama, à minha irmã Maria Dolores.

Aquele meu momento não se tratava de ego inflado, dissabor fálico, muito menos código de Hamurabi. Antes fosse, porque casava perfeitamente bem à minha neurose. A questão era ser direta e reta, cruel com quem merecia. Qualidades e defeitos que jamais herdei de minha irmã.

Dos vulcões, a lava. Dos terremotos, a força. Das águas, as emoções mais caudalosas. Essa era a sina que me dava vida e me matava.

Até que ia tudo muito bem dentro da minha normalidade, no gozo da minha liberdade de ser quem eu era, seguindo na minha pressa de viver. Repousava na minha verdade. Felina, passiva, ativa, viçosa. Mas aquela faca tinha dois gumes, paradoxalmente bélica e flor.

Fui pega de assalto, levei o bote perfeito e com os olhos no coração da cidade, sentia como se uma pedra descansasse no peito, desci às escadas cambaleante com os ponteiros percorrendo todas as horas do meu corpo. Pensei nas horas infindas enquanto acendia um cigarro. Suspendi as dores dentro de duas garrafas. Perdida no estacionamento, me procurava frente aos retrovisores que expeliam sangue no chão de mim. Chegava a mim o tempo dos maus poemas…

02:30 da manhã. Espatifada como um ser brotado da queda, voltei para casa depois de 30 dias sem contato direto com ela. Felizmente e como sempre, minha mãe me esperava no sofá com a TV ligada como se já soubesse a minha visita. Entrei, sentei e não disse nada. Mas ela era realmente muito boa em decifrar silêncios. Pegou no meu cabelo, como que tivesse terminando de trançá-lo e me perguntou – você sabe qual a grande vantagem das mulheres que já pisaram várias vezes no inferno?

– Elas conhecem a saída!

Desligou a TV e ligou o rádio baixinho para embalar. Dessa vez, ela e a música, me apontaram caminhos diferentes, os quais eu jamais conseguiria achá-los sozinha:

Son, sometimes it may seem dark
But the absence of the light is a necessary part
Just know, you’re never alone
You can always come back home

Oh, oh, oh, oh
Oh, oh, oh, oh
You can always come back, back

Every road is a slippery slope
There is always a hand that you can hold on to
Looking deeper through the telescope
You can see that your home’s inside of you

[Tradução]

Filho, às vezes pode parecer escuro
Mas a ausência da luz é uma parte necessária
Saiba que você nunca está sozinho
Você sempre pode voltar para casa

Ah, ah, ah, ah
Ah, ah, ah, ah
Você sempre pode voltar, voltar

Toda estrada é uma descida escorregadia
Há sempre uma mão que você pode segurar
Olhando mais profundamente através do telescópio
Você pode ver que sua casa está dentro de você

Dolores grita meu nome e eu fechei aquele diário, coloco-o de volta na caixa, e a poeira eu deixo lá para os artilheiros das causas perdidas se encarregar. Nunca mais revisitei aquele porão. E quanto a este assunto, hoje considero-me a nadadora hábil no mar da indiferença, tenho usado a régua da minha mãe, e só levado à boca as frutas da estação.

Hoje mostro o fio da minha espada. Me fiz flor escassa. Aquela! Que machado nenhum cortou.

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