Rio Grande do Norte, quarta-feira, 01 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 11 de setembro de 2014

Pelé e a cumplicidade com o racismo

postado por Alyson Freire

Cada vez que Pelé se pronuncia sobre temas públicos e relevantes, ele deseduca a sociedade. Quando se trata de opinião, Pelé tropeça, pisa e machuca a inteligência. Os inestimáveis e extraordinários serviços prestados ao futebol brasileiro pelo seu talento genial com a bola convertem-se, lamentavelmente, num desserviço emburrecedor e tacanho à sociedade quando Pelé comenta e opina sobre assuntos que ultrapassam a alçada do futebol. Por isso, não concordo integralmente com a consagrada tirada de Romário segunda a qual “Pelé calado é um poeta”, pois, o silêncio, mesmo em alguém dedicado ao ofício da palavra, é capaz sim de educar e emanar sabedoria. Muito distante, portanto, do que tem feito o dito Rei do futebol. A mais recente intervenção de Pelé sobre o episódio de racismo contra o goleiro Aranha é mais uma de suas “pérolas da ignorância” para sua já vasta coleção de estupidez, analfabetismo político e insensibilidade social. Vejamos.

images (2)Para o Rei do Futebol, abre aspas: “Aranha se precipitou em querer brigar com a torcida. Se eu fosse querer parar o jogo cada vez que me chamasse de macaco ou crioulo, todos os jogos iriam parar (…) Temos de coibir o racismo. Mas não é num lugar público que você vai coibir (…) Quanto mais se falar, mais vai ter racismo”. http://www.lancenet.com.br/minuto/Pele-racismo-Aranha-precipitou-brigar_0_1209479160.html

Por mais chocante que tamanha insensatez possa ser, ela não é, de modo algum, uma novidade. Pelé adotou postura semelhante em outros casos de racismos no futebol. Somente este ano, ele minimizou os insultos raciais dirigidos contra o volante Arouca em Mogi das Cruzes e classificou como “tempestade em copo d’água” a banana arremessada contra o lateral do Barcelona Daniel Alves.

Muito embora, e já há alguns anos, as principais entidades internacionais de Futebol levantem a bandeira contra o racismo, através de campanhas educativas e punições exemplares de torcedores e clubes, Pelé, contudo, nunca se engajou e se posicionou firmemente contra o racismo. Jamais utilizou o enorme poder de sua imagem pública, quase mítica e certamente superior a de muitos líderes políticos e religiosos, para combater as opressões e injustiças raciais. Sua postura diante do racismo sempre foi um misto de silêncio, omissão e estupidez.

No entanto, sob o risco de cairmos num equívoco simplificador, não cabe aqui colocar inteiramente na conta do indivíduo Pepeleas raízes da sua insensibilidade e insensatez. A naturalidade e resignação com que o Rei do Futebol trata e opina sobre a violência racista são sintomas cuja existência e causas se devem aos efeitos do próprio racismo e ao modo pelo qual este se faz aceitável e opaco na sociedade, especialmente no Brasil. O racismo no Brasil é o produto de uma construção histórica e política calcada no paradoxo e na negação. Quando o tema é raça e racismo, somos uma sociedade capaz de adotar políticas de branqueamento e imigração seletiva, como no início do século XX, e, ainda assim, cultivar, como narrativa oficial, a exaltação da “democracia racial” e da miscigenização como símbolos da cultura e identidade nacional. Por isso, o racismo na sociedade brasileira parece ser muitas vezes algo abstrato, distante e exótico, isto é, que não nos constitui de fato como história e sociedade. Em outras palavras, um problema no qual não nos reconhecemos propriamente e que, por conta disso, o aceitamos de maneira íntima e tácita.

Como muitas vezes observado na historiografia e sociologia brasileira, o racismo no Brasil pós-Abolição se reveste, na maior parte das vezes, de matizes sutis e ares velados. O racismo, entre nós, nem sempre se apresenta como um ato explícito e escancarado, como uma relação de segregação evidente, como um fato, que possua estrutura facilmente identificável. Ele se insinua, frequentemente, como algo natural, cuja motivação e intenção passam despercebidas. O racismo à brasileira é visto e sentido nos olhares por cima do ombro, no incômodo com a presença, no receio em tocar e ser tocado por alguém negro, nos juízos apressados e atemorizados diante da eminência do encontro, no disfarce infame das piadas jocosas e elogios reticentes sobre a “beleza negra”…

O racismo no Brasil tenta se invisibilizar e se negar através das sutilezas exatamente para quando ele se manifestar de maneira incondicional em situações explícitas, como por exemplo, a seletiva violência policial, o insulto vociferante do torcedor e o linchamento por grupos extremistas, o racismo possa ser tratado como um caso “isolado”, e não como um sintoma de um padrão social hierárquico e enraizado historicamente. A lógica do racismo na sociedade brasileira é a lógica da recusa, da dissimulação, da invisibilidade, do velado. Exatamente por isso que o racismo, na sociedade brasileira, assume a violência simbólica como modus operandi, exerce-se como poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. Pelé e suas opiniões figuram como o exemplo máximo da plausibilidade dessa tese.

Ainda que Pelé pense que não, ele é, de uma só vez, vítima e algoz do racismo. Sua cumplicidade, e, em especial a sua cumplicidade com todo o poder simbólico que o personagem Pelé carrega no Brasil e no mundo, é, a um só tempo, o primeiro efeito do racismo, que se quer fazer aceitável e opaco se naturalizando no consentimento denegador dos próprios oprimidos acerca da opressão e violência que sofrem; e, também, por outro lado, um poderoso efeito de reforço e legitimação institucional do racismo na cultura e sociedade brasileira, pois, afinal, temos nada mais nada menos do que o negro Pelé negando ou atenuando a violência racista que parte da sociedade afirma ser vítima.

Nesse sentido, criticar duramente as opiniões e intervenções de Pelé significa combater o racismo onde ele é mais poderoso e imperceptível, ou seja, em seus mecanismos simbólicos de aceitação e naturalização. Compreender o racismo como exercício de violência simbólica, isto é, como relação de poder e representação social que tenta se “invisibilizar” e se impor como “natural” para produzir a cumplicidade dos próprios dominados, exige que não se deixe passar despercebidas as instituições e os agentes sobre os quais se apoiam a invisibilização e legitimação do racismo.

Pelé banaliza o racismo. E, com tal atitude, quer seja com o seu silêncio ou com as suas opiniões despropositadas, ele contribui  tácita mas decisivamente para justificar as já fortes e enraizadas tendências denegadoras e suavizadoras do racismo no Brasil. A banalização do racismo é um dos principais mecanismos que o tornam atuante em todos os níveis de sociabilidade. Portanto, por mais banal que possam parecer, as opiniões de Pelé devem ser incansavelmente combatidas e reprovadas; publicamente, alias, pois não podemos aceitar a banalização de algo que possui profundas e duras repercussões passadas e presentes, como o racismo.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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