Rio Grande do Norte, domingo, 05 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 15 de julho de 2012

Estamos preparados para a liberdade?

postado por Felix Maranganha

Já se perguntaram por que defendo o direito de existência de um PSC, e o direito de o PSC defender um modelo familiar? É simples, Voltaire disse uma vez que podia não concordar com o que alguém dizia, mas que lutaria até as últimas por seu direito de dizer o que pensa. E é esse pensamento que norteia meu discurso. Mas: dizer o que pensa é bem-vindo? Estamos preparados para tamanha responsabilidade? A sociedade está preparada para uma liberdade de expressão plena? Dizem que o limite é o direito do outro de se sentir ofendido, mas em que sentido uma ofensa não seria mais subjetiva que objetiva?

Para entenderem direitinho o problema, vamos a dois casos concretos.

O exemplo da casa de evangélicos

Costumo dizer que sou uma ilha de ceticismo cercado de evangélicos por todos os lados. Vez por outra aparece um arrecife budista aqui, uma pedra ateia ali, uma jubarte hare krishna desponta no mar mais adiante, mas o fato é que vivo em uma família em que, quando não se é evangélico, se é católico, o que gera, em seu meio, apenas duas opções religiosas (claro, tenho duas tias espíritas e um tio ateu-maçom, mas com os quais tive ou tenho pouco convívio). O problema gerado é que quase todos os julgamentos sobre sua pessoa perpassarão os estereótipos humanos trabalhados pela religião evangélica (que reduz o escopo humano a uma reles distinção salvo-perdido). Outra consequência desagradável é que qualquer manifestação sua acerca de suas crenças ou práticas é prontamente recebida com agressão, ridicularização ou, algumas vezes, tristeza.

Se eu acredito e ponho em prática a liberdade de expressão, significa que, mesmo que me desagrade, como demonstrei no parágrafo acima, terei de aceitar as opiniões de meus parentes evangélicos. Eles têm todo o direito de usar seus estereótipos humanos maniqueístas ou de se sentirem tristes, mas não têm nenhum direito de serem agressivos ou de ridicularizar minha pessoa.

Resumindo: eles têm o direito de manifestar-se porque tenho igualmente esse direito, e se tenho de aguentar a liberdade de expressão deles, eles têm de aguentar minha liberdade de expressão também. Se, em algum momento, eu simplesmente proibir qualquer um de meus parentes evangélicos de usar a expressão “fique com Deus“, ou se qualquer um deles me proibir de ter um Altar Budista no meu quarto, então teremos aí uma censura, uma falha na liberdade de cada um expressar seus pensamentos.

O exemplo de Rafinha Bastos

Situação semelhante podemos encontrar na piada do estupro proferida por Rafinha Bastos. Apesar de ser de um imenso mal gosto, um país que diz possuir liberdade de expressão trai seus próprios princípios quando abre inquérito para investigar alegações que foram públicas, na cara limpa e com o intuito de fazer uma piada. O Rafinha Bastos disse: Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus.

Mas, se pararmos para pensar, mesmo que algumas mulheres tenham sido estupradas, que isso seja de mal gosto, que seja inverossímil ou que seja imoral, o fato é que ele têm o direito de dizer o que pensa, independente do choque causado ou da recepção do público ao que ele disse. Da mesma forma que a sociedade é obrigada a aceitar a liberdade de Rafinha, mesmo que seja desagradável uma piada como essa, ele também tem de aguentar manifestações como a nota de repúdio publicada pelo Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo(que circulou na internet e eu mesmo cheguei a assinar). Se a nota de repúdio desagradou Rafinha Bastos, ele tem todo o direito de se sentir ofendido, assim como as mulheres tiverem o mesmo direito antes em relação à piada. Porém, nenhuma das partes pode simplesmente proibir a outra de manifestar seus pensamentos, por mais baixos ou imorais que sejam.

 Conclusão

O maior problema que a liberdade de expressão criou é que conseguimos trabalhar lindamente com ela, desde que seja nossa liberdade de expressão, e até lutamos por essa liberdade.

Evangélicos acham lindo a liberdade de distribuir um folheto evangelístico na rua, de pregar no ônibus ou de mandar mensagens pela internet falando sobre o quanto Jesus é bom e como ele mudou suas vidas. Mas evangélicos acham péssimo quando um hare krishna entra num ônibus convidando o povo a um retiro, quando ateus publicam cartazes falando mal da religião ou quando não-cristãos usam as mesmas redes sociais dos evangélicos para divulgar suas ideias (como às vezes faço questionando a fé, a doutrina ou os princípios cristãos). Na verdade, eles se acham ofendidos quando alguém, usando de sua liberdade de expressão garantida por lei e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, faz as mesmas coisas que os evangélicos também fazem.

E engana-se quem acha que apenas os evangélicos são assim. Todos são assim, pois frequentemente esquecemos que não lidamos bem com a liberdade de expressão dos outros, e frequentemente a consideramos ofensa. Se queremos um país de livre expressão, temos de lutar por ela.

Algumas vezes, o que o outro expressar poderá ser uma afronta a meus valores, uma ofensa aos meus princípios e pode lidar com alguns preconceitos, mas tenho de permitir isso mesmo que não goste do que se expressa, uma vez que quase tudo o que digo pode ser uma afronta aos valores alheios, uma ofensa aos princípios alheios e pode lidar também com alguns outros preconceitos. Se queremos um país livre, temos de aguentar a liberdade dos outros, e não apenas a nossa liberdade.

Felix Maranganha

Licenciado em Letras, especialista em Educação a Distância e mestrando em Ciências das Religiões, Felix Maranganha é Linguista, Filólogo, Escritor, Filósofo, Defensor dos Direitos Humanos e Libertarianista. Pratica o Zen-Budismo, é ateu, joga sinuca e poker e adora pimenta. Alguns o confundiriam com um anti-marxista, mas ele não liga muito para essas coisas. É autor do blogue http://ocalangoabstrato.blogspot.com

6 Responses

  1. Josivan Fernandes disse:

    “Na verdade, eles [evangélicos] se acham ofendidos quando alguém, usando de sua liberdade de expressão garantida por lei e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, faz as mesmas coisas que os evangélicos também fazem. E engana-se quem acha que apenas os evangélicos são assim.”
    Concordo com o posicionamento do autor ao afirmar que os evangélicos se ofendem com opiniões que não concordamos e que não somos apenas nós. Todos temos preconceitos, porém temos que conviver com o dissenso, posso não comungar com a opinião, mas terei que aceitá-la, mas não vivê-la.

  2. Americo disse:

    Prezado, no caso Rafinha Bastos a expressão da liberdade de pensamento pode induzir a uma série de outras grosserias e, até mesmo, a propagar – em mentes mais fragéis – a idéia de que codntuas como o estupro podem, de fato, ser adequadas a determinadas pessoas.

    Da mesma forma, em raciocínio simplório, como sói ocorrer, pensarão que ser feio é um traço suficiente para exclusão de determinado grupo, trabalho ou profissão – embora isso já ocorra e de forma bastante sedimentada, infelizmente. A partir disso, passa-se a outros tipos de agressão, toleradas em nome da liberdade de expressão.

    Creio que deva haver uma linha limítrofe entre o que pode ser dito de forma aberta e reproduzida em público, ainda que agrida um senso comum, e o que não pode, especialmente quando se destine a reproduzir ou dar a idéia de que práticas criminosas, discriminatórias e agressivas devem ser aceitas.

    O nosso pensamento, que aceita a liberade de expressão, dentre elas, a de crença, não é o mais comum em uma sociedade tão disforme, individualista e sem cultura. Nosso trablho deve ser em prol da solidariedade e estímulo às diferenças. Isso não impede, por outro lado, de repreender manifestações do pensamento que nào conduzem a isso, como a do Rafinha bastos.

    • felixmaranganha disse:

      Américo, não se pode responsabilizar uma pessoa pelo que outra pessoa fez. Por mais grosseira que seja uma piada, acusar o piadista por um crime cometido por terceiros é como proibir a Bíblia de circular por servir de justificativa a malucos. O problema é que praticamente tudo o que dizemos, escrevemos ou pensamos pode servir de justificativa para causar prejuízo, e esses são eventos sobre os quais nenhum de nós tem liberdade alguma.

      Quanto ao estímulo às diferenças, pense comigo: todo estímulo à diferença baseia-se em uma abstração. Somos nós que criamos, que desenvolvemos uma abstração qualquer, e dizemos que uns devem sofrer e outros devem luxar por causa dessa abstração, mas, em essência, a abstração não existe. É tão arbitrária que seus critérios nunca são claros. Onde termina o negro e começa o branco? Onde termina o gay e começa o hétero? Onde termina o destro e começa o canhoto? Onde termina o cigano e começa o gajo? Não dá pra saber com exatidão, tudo o que temos são convenções sociais, estas arbitrárias, e cujos critérios não são bem definidos. Portanto, quais critérios seriam usados para incentivar as diferenças e dizer que esta diferença deve ser incentivada no lugar da outra? O problema é que a igualdade só pode ser alcançada tirando justo essa abstração como critério. Tentar “repor” os anos de desigualdade sobre a outra parte dessa abstração não é nada mais que insistir na abstração, que validá-la, que permanecer com ela. Por que? Porque não dá pra saber onde começa uma e termina a outra pra definir critérios mais precisos que afirmem que determinadas pessoas têm direito a determinados direitos e outras não. Os critérios já eram vagos e imprecisos quando a abstração servia à discriminação, quanto mais agora quando se tenta reparar.

      O problema torna-se ainda maior quando, em nome dessa abstração, seja para reparar, seja para discriminar, se impede qualquer pessoa de exercer sua liberdade de expressão. Lembremos que a mesma pressão que os movimentos sociais fazem em cima de Rafinha Bastos (o politicamente correto) é a mesma que os religiosos radicia exerciam sobre os desenhos da Disney nas décadas de 1950 a 1970.

      O problema é que, como dizia Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”, ou seja, o senso comum não pode nem deve ser imune a se sentir chocado. Todos podem se sentir chocados, mas ninguém deveria usar isso como fundamento para dizer ao outro do que podem e do que não podem rir.

  3. felixmaranganha disse:

    ou ousadas.

  4. Dd disse:

    Ótimo texto, parabéns. 

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