Rio Grande do Norte, sábado, 04 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 16 de novembro de 2012

O grotesco do preconceito: A Veja, a Homofobia e a Cabra

postado por Alyson Freire

Assim como a Revista Veja é capaz de se superar em sua má fé, também a promoção do preconceito pode atingir níveis de ignorância e malabarismos de cinismo inimagináveis. É o que temos no artigo do ex-diretor de redação da revista, José Roberto Guzzo, “Parada gay, cabra e espinafre”; um verdadeiro “monumento à ignorância, ao mau gosto e ao preconceito”, como bem definiu o Deputado Jean Wyllys. Por isso, são inúmeras as vias para criticar e desconstruir o artigo. O dito cujo está repleto de falácias e inverdades, como os números de assassinatos de homossexuais ou de que estes não podem doar sangue. De fato, no tocante as suas debilidades e incoerências são de uma “riqueza” sublime. Explorarei uma dimensão em particular, a qual me parece relevante: o empenho ideológico do autor na despolitização da homossexualidade.

Ao longo de quase todo o artigo, Guzzo esforça-se incansavelmente em diluir os aspectos coletivos e públicos que invariavelmente envolvem a homossexualidade numa sociedade heteronormativa e preconceituosa. Nesse sentido, para o autor, ser gay não seria mais do que “uma questão estritamente pessoal”, “a comunidade gay não existe”, pois “antes de qualquer outra coisa, são indivíduos”, etc..

Visto assim, como um acaso – ou acidente, pra alguns – nas preferências sexuais do desejo humano espera-se despir a homossexualidade de qualquer caráter político, social, ético e jurídico que a remeta enquanto uma identidade coletiva, de grupo, organizada. Na visão distorcida do autor, os homossexuais não constituiriam sequer uma minoria do ponto de vista político. Nem um liberal que se preze endossaria tal ilação.

O ranço ideológico para individualizar o preconceito é tal que mesmo a violência homofóbica torna-se o produto de uma abstrata e vazia “violência contra todos”. Aquela não seria mais do que ilusão ou delírio de lideranças militantes, quer dizer, para Guzzo não existiria um padrão social e coletivo de crimes de ódio, ainda que os números ( 190 mortos em 2008, 198 em 2009, 260 em 2010 e 266 em 2011, de acordo com a documentação do Grupo Gay Bahia) e os requintes particulares de assassinato lançados mão afirmem o contrário; mas sim, e fundamentalmente, uma violência “fruto exclusivo da ação de delinquentes, não da sociedade brasileira”.

Em continuidade ao raciocínio e na contramão da história, para Guzzo a luta pelos direitos dos homossexuais e o combate ao preconceito redundaram mais em efeitos negativos não esperados do que em efeitos positivos visados; produziu “mais o mal do que o bem”, afirma. Não houveram ganhos de direito, avanços na igualdade e na proteção da dignidade humana nem maior aceitação e expressão da diversidade sexual, mas sim, na cabeça do autor, uma guerra, produtora de animosidades e divisões. Contra todos os fatos da história recente, a intenção, na lógica interessada e preconceituosa do autor, é uma só: incitar para passividade, para recusar a militância. Novamente, tudo cai na conta do indivíduo. O avanço e as mudanças tão desejadas pelo movimento gay não necessitam de paradas gays, novas leis e projetos, basta a benevolência e o autoesclarecimento “natural das sociedades no caminho da liberdade”, idealiza Guzzo.

Seu empenho em restringir a homossexualidade em todos os seus aspectos a uma questão privada atende a um objetivo político e homofóbico claros; despolitizar o preconceito e a luta pelo reconhecimento do igual respeito e tratamento às diversas manifestações da sexualidade. Em última análise, como que para neutralizar as conquistas e reivindicações do movimento gay, Guzzo ataca a homossexualidade para devolvê-la à política do armário, quer dizer, a esfera estritamente individual e psicológica, retirá-la, desse modo, da esfera pública, dimensão necessariamente social e politizadora. Do Estado, portanto, os homossexuais não caberia exigir igualdade, reconhecimento público ou institucionalização de outras formas de comportamentos sexuais, mas apenas demandar o respeito e a privacidade – já juridicamente existentes e consolidadas – da vida íntima dos indivíduos.

Os conservadores temem a politização das homossexualidades e do preconceito porque sabem que por meio dela, no debate e na ação organizada, muda-se uma sociedade, tanto no que toca as suas mentalidades quanto em suas atitudes normativas. Ora, se a homofobia é bem mais um sistema de exclusão, humilhação e discriminação institucionalmente incorporado nas instituições, sociabilidades e indivíduos do que um conjunto de emoções negativas e agressivas contra homossexuais e pessoas LGBT, então, as homossexualidades tem de ser, em muitos de seus aspectos, tratadas pela politização, isto é, como pauta e agenda coletivas.

Por último, poder-se-ia pensar que os exemplos grosseiros utilizados pelo autor, de que “um homem também não pode casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar”, derivam tão somente de seu posicionamento político contrário ao casamento gay. No entanto, há algo mais aí. A comparação esdrúxula com a cabra cumpre uma dupla função ideológica, representativa de um consenso social preconceituoso: primeiro, de que a homossexualidade estaria mais próxima de uma condição animal e do desejo animalesco, portanto, pode até ser tolerada, mas é antinatural, logo seu espectro de direitos tem toda razão em ser mais restrito; segundo, lançar os homossexuais e as homossexualidades no campo do grotesco e do bizarro. Juntas, ambas não visam outra coisa senão reforçar a inferiorização por meio da desumanização da homossexualidade.

Relatórios dos assassinatos de homossexuais no Brasil:

O Grupo Gay da Bahia coleta informações sobre homofobia há mais três décadas:

– 2008 http://www.ggb.org.br/assassinatosHomossexuaisBrasil_2008_pressRelease.html

– 2009: http://www.ggb.org.br/dossier%20de%20assassinatos%20de%20homossexuais%20em%202009.html

– 2010: http://www.ggb.org.br/Assassinatos%20de%20homossexuais%20no%20Brasil%20relatorio%20geral%20completo.html

– 2011: http://www.ggb.org.br/assassinatos%20de%20homossexuais%20no%20brasil%202011%20GGB.html

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

3 Responses

  1. fiz um video sobre esse artigo ridículo e principalmente sobre essa revista!

  2. Sempudorfalso disse:

    Menos, tá!

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