Rio Grande do Norte, quinta-feira, 02 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 25 de janeiro de 2013

Django e a Lei

postado por Jules Queiroz

DjangoO novo filme de Quentin Tarantino, Django Livre (Django Unchained, EUA, 2012), traz mais uma das (re)visões históricas do diretor, em que um povo historicamente oprimido toma as rédeas da situação e revida violentamente ao opressor. Da mesma forma como fez agora com o povo negro escravizado nas fazendas do sul dos Estados Unidos, fez em 2010 com o povo judeu oprimido pelo regime nazista com Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, EUA, 2010).

A violência de Django sobre seus antagonistas no filme, embora estilizada, como é de praxe nas obras de Tarantino, visa chamar atenção também à violência, tanto física quanto simbólica, da sociedade norte-americana pré-abolição.

Um jurista atento pode tirar lições da pintura tarantinesca.

O filme Django Livre se passa no ano de 1858, dois anos antes da Guerra Civil norte-americana. No ano anterior, em 1987, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o paradigmático caso Dread Scott v. Sanford. Nesse processo, Dread Scott, um escravo que vivia livre no Estado de Illinois mudou-se para o Estado do Missouri, onde nascera. O antigo proprietário de Scott, John Sanford, tentou recoloca-lo em situação de escravidão.

Com base no fato de ser livre em Illinois, Scott recorreu à Corte Distrital Federal alegando que a lei do Estado do Missouri garantiria sua liberdade porque não era considerado escravo no Estado onde vivia anteriormente.

Ocorre que a Suprema Corte entendeu em primeiro lugar que, por ser negro, Dread Scott não era considerado “cidadão” nos termos da Constituição norte-americana e não tinha direito de recorrer ao Judiciário. Em segundo lugar, a Corte entendeu que a lei do Estado do Missouri importava em violação ao direito constitucional de propriedade de John Sanford.

Um trecho resume a decisão:

“As palavras ‘povo dos Estados Unidos’ e ‘cidadão’ são termos sinônimos e significam a mesma coisa. Ambos descrevem o corpo político que […] forma a soberania e que tem o poder de conduzir o Governo através de seus representantes. A questão posta é:  uma classe de pessoas descrita na demanda em exame [pessoas de descendência africana] compõe uma parte do povo e é formada de membros constitucionais na soberania? Nós achamos que não, e que eles não estão e não houve intenção de incluí-los na palavra ‘cidadãos’ na Constituição, não podendo, portanto, demandar nenhum dos direitos e privilégios que aquele instrumento confere e assegura aos cidadãos dos Estados Unidos. Ao contrário, eles eram àquele tempo considerados como uma classe subordinada e inferior de seres que foram subjugados pela raça dominante e, emancipados ou não, ainda permanecem sujeitos à sua autoridade, não tendo direitos e privilégios além daqueles que o Governo decidir conferir.”

A cidadania e os direitos do negro norte-americano apenas foram garantidos em 1868 com a 14a Emenda à Constituição e após a sangrenta Guerra Civil.

A mensagem que se extrai, portanto, é que a luta pela consolidação de direitos nem sempre passa pela ordem jurídica posta. Grandes abalos sociais demandam atuação política e popular com vistas a alterar essa ordem posta.

Não estou dizendo que devemos, como Django, distribuir tiros de toda forma. Digo que o que é necessário é a adoção de uma perspectiva transformadora por parte do cidadão e, em especial, do jurista.

Os advogados, promotores e juízes, no bojo de sua atuação legal, tendem a se prender em conceitos e valores em conformidade com o que está posto, esquecendo que as maiores figuras da história não foram conservadores, mas transformadores. A lei pode eventualmente ser injusta, inclusive a lei constitucional. O compromisso adotado pelo jurista em seu juramento de graduação é especificamente com a “justiça”, não necessariamente com a lei.

Mas há o problema de que o conceito de “justiça” é extremamente aberto. Mas isso é assunto para uma próxima reflexão.

Jules Queiroz

Procurador da Fazenda Nacional em Brasília/DF - @julesqueiroz

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