O novo filme de Quentin Tarantino, Django Livre (Django Unchained, EUA, 2012), traz mais uma das (re)visões históricas do diretor, em que um povo historicamente oprimido toma as rédeas da situação e revida violentamente ao opressor. Da mesma forma como fez agora com o povo negro escravizado nas fazendas do sul dos Estados Unidos, fez em 2010 com o povo judeu oprimido pelo regime nazista com Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds, EUA, 2010).
A violência de Django sobre seus antagonistas no filme, embora estilizada, como é de praxe nas obras de Tarantino, visa chamar atenção também à violência, tanto física quanto simbólica, da sociedade norte-americana pré-abolição.
Um jurista atento pode tirar lições da pintura tarantinesca.
O filme Django Livre se passa no ano de 1858, dois anos antes da Guerra Civil norte-americana. No ano anterior, em 1987, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o paradigmático caso Dread Scott v. Sanford. Nesse processo, Dread Scott, um escravo que vivia livre no Estado de Illinois mudou-se para o Estado do Missouri, onde nascera. O antigo proprietário de Scott, John Sanford, tentou recoloca-lo em situação de escravidão.
Com base no fato de ser livre em Illinois, Scott recorreu à Corte Distrital Federal alegando que a lei do Estado do Missouri garantiria sua liberdade porque não era considerado escravo no Estado onde vivia anteriormente.
Ocorre que a Suprema Corte entendeu em primeiro lugar que, por ser negro, Dread Scott não era considerado “cidadão” nos termos da Constituição norte-americana e não tinha direito de recorrer ao Judiciário. Em segundo lugar, a Corte entendeu que a lei do Estado do Missouri importava em violação ao direito constitucional de propriedade de John Sanford.
Um trecho resume a decisão:
“As palavras ‘povo dos Estados Unidos’ e ‘cidadão’ são termos sinônimos e significam a mesma coisa. Ambos descrevem o corpo político que […] forma a soberania e que tem o poder de conduzir o Governo através de seus representantes. A questão posta é: uma classe de pessoas descrita na demanda em exame [pessoas de descendência africana] compõe uma parte do povo e é formada de membros constitucionais na soberania? Nós achamos que não, e que eles não estão e não houve intenção de incluí-los na palavra ‘cidadãos’ na Constituição, não podendo, portanto, demandar nenhum dos direitos e privilégios que aquele instrumento confere e assegura aos cidadãos dos Estados Unidos. Ao contrário, eles eram àquele tempo considerados como uma classe subordinada e inferior de seres que foram subjugados pela raça dominante e, emancipados ou não, ainda permanecem sujeitos à sua autoridade, não tendo direitos e privilégios além daqueles que o Governo decidir conferir.”
A cidadania e os direitos do negro norte-americano apenas foram garantidos em 1868 com a 14a Emenda à Constituição e após a sangrenta Guerra Civil.
A mensagem que se extrai, portanto, é que a luta pela consolidação de direitos nem sempre passa pela ordem jurídica posta. Grandes abalos sociais demandam atuação política e popular com vistas a alterar essa ordem posta.
Não estou dizendo que devemos, como Django, distribuir tiros de toda forma. Digo que o que é necessário é a adoção de uma perspectiva transformadora por parte do cidadão e, em especial, do jurista.
Os advogados, promotores e juízes, no bojo de sua atuação legal, tendem a se prender em conceitos e valores em conformidade com o que está posto, esquecendo que as maiores figuras da história não foram conservadores, mas transformadores. A lei pode eventualmente ser injusta, inclusive a lei constitucional. O compromisso adotado pelo jurista em seu juramento de graduação é especificamente com a “justiça”, não necessariamente com a lei.
Mas há o problema de que o conceito de “justiça” é extremamente aberto. Mas isso é assunto para uma próxima reflexão.