Rio Grande do Norte, sábado, 04 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 15 de fevereiro de 2013

A Renúncia de Bento XVI. E daí?

postado por Alyson Freire

vatican-pope-resignsbraz

A HIPERVALORIZAÇÃO MIDIÁTICA

O teólogo Joseph Ratzinger deixará de ser o Sumo Pontífice da Igreja Católica. A decisão pegou o mundo de surpresa. Após a declaração de Bento XVI, especulações de toda ordem foram ventiladas a respeito das razões de sua abdicação da Cadeira de São Pedro; de questões de saúde ao peso de escândalos de sexo, negócio e poder envolvendo a Cúria Romana. O certo é que, se analisarmos com objetividade, a mudança do Papa pouco influi nos negócios humanos – inclusive, arrisco a dizer, entre os católicos. Afinal de contas, não é de hoje que a religião, sobretudo o catolicismo, vem perdendo o seu papel e centralidade no mundo e na vida das pessoas. Vejamos.

Todas as grandes questões e matérias dos assuntos humanos que um dia estiveram sob a égide e o poder de intervenção e legislação da esfera religiosa foram, no mundo moderno, “sequestradas” por esferas profanas. Assim, a condução da sociedade e de seus recursos torna-se matéria da política; a legislação sobre o lícito e o ilícito, matéria do direito; a busca da verdade, matéria da ciência. Esse processo de perda de terreno pela religião e que a fez ficar cada vez menos presente e influente na vida social e cultural, nós, sociólogos, chamamos de “secularização”. E, entre todas as religiões tradicionais, nenhuma perdeu mais terreno nas sociedades modernas do que o catolicismo. Os golpes progressivos que fizeram da igreja católica uma instituição em declínio devem ser interpretados à luz desse marco mais amplo, a secularização.

Desde que Napoleão coroou-se a si mesmo, reduzindo o então Papa Pio VII a um simples coroinha, que o Sumo Pontífice e a Igreja Católica não apitam nos jogos dos poderosos. De protagonistas, os homens do pontificado católico tornaram-se meros figurantes na elite do poder mundial. No entanto, não foi apenas entre o poder profano que o Papa e a Igreja Católica viram o sua força e autoridade minguar. O prestígio e a influência do catolicismo decaíram significativamente até mesmo internamente, isto é, dentro do mercado da fé ou do mercado de salvação das almas. Há séculos a igreja católica assiste o deterioramento paulatino do seu capital religioso – fenômeno que se intensificou com o avanço das igrejas protestantes e evangélicas na América Latina, do Islam na Europa e dos sem religião no mundo todo.

Especialmente na Europa, as igrejas fecham por falta de fiéis. Os seminários estão esvaziados, provocando um profundo déficit de recursos humanos na burocracia eclesial. Em todo o mundo, a religião católica se tornou sinônimo de uma religião que é muito mais declarada do que efetivamente praticada; uma religião frouxa, leniente, a qual os fiéis podem frequentar e pertencer sem maiores exigências em termos de disciplina e doutrina, ao contrário das confissões protestantes, que são bem mais disciplinadoras.

Para fortalecer o diagnóstico de decadência, poder-se-ia, ainda, mencionar os escândalos (pedofilia, corrupção, intrigas políticas) em que integrantes do alto escalão da Igreja estiveram envolvidos nas últimas décadas, assim como o tratamento leniente dado pelas autoridades eclesiásticas e, por último, as seguidas derrotas que a Igreja Católica vem sofrendo no debate público com sua defesa intransigente de pontos de vistas reacionários e refratários aos avanços culturais e liberalizações nos costumes. Tais escândalos e posicionamentos retrógrados – contrários ao espírito da época – contribuíram ainda mais para deteriorar a imagem da Igreja católica junto à opinião pública e setores progressistas, vaticinando o seu declínio enquanto força social e política na esfera pública.

Já há algum tempo, portanto, a igreja católica é uma instituição que luta mais pra sobreviver do que para dominar. Nos dias atuais, o Papa e a Igreja católica não são mais do que símbolos exóticos que o Ocidente admite como vestígios vivos de uma era passada. Porém, se a igreja católica é uma instituição decadente, cadavérica, por que tanta repercussão e comoção com a declaração de renúncia de Bento XVI? Por que diabos, damos tanta importância para uma instituição que hoje é apenas um espantalho, mera sombra de uma instituição outrora grandiosa e imponente, e que um dia foi peça-chave nos equilíbrios de poder no Império Romano ocidental, no feudalismo do norte da Europa e no absolutismo dos séculos XVII e XVIII?  Seria pelo poder simbólico que a Igreja Católica ainda carrega? Ou, seria, com efeito, por conta de uma complacência perante a tradição que ela personifica? Ou seja, pelo fato do cristianismo constituir uma das principais fontes culturais e morais do Ocidente? Sem descartar esses aspectos, destaco uma outra via.

Na verdade, toda essa repercussão e importância não é outra coisa senão uma ficção; uma ilusão proporcionada pelo efeito-mídia dos meios de comunicação. A repercussão da renúncia do Papa – e as estratégias retóricas e metonímicas utilizadas pelos media – nos faz acreditar que a Igreja atual goza de uma importância maior do que a que ela realmente tem. Em busca do fato extraordinário e do sensacional, os media fabricam uma realidade de repercussão e relevância inteiramente fantasiosa, falsa; pois, de fato e na prática, a abdicação e a escolha de um novo Papa interessam e impactam tão somente um pequeno segmento da sociedade, os católicos – e nem tantos deles estão assim preocupados. Portanto, ao contrário do que a reiteração e a cobertura da notícia, as metonímias dos telejornalistas e dos comentaristas e o fluxo contínuo de imagens relacionadas podem nos levar a pensar, a renúncia do Papa não afeta o “mundo todo” e nem possui as implicações e pertinências que seu alarde e a extensão de sua cobertura podem nos levar a crer.

Ora, os desdobramentos econômicos e políticos reais da renúncia ou escolha do Papa são ínfimos. Muito embora, diga-se, não possamos desconsiderar os efeitos de reforço dos pronunciamentos mais conservadores do herdeiro de Pedro – mas, ainda assim, as opiniões e juízos do Papa possuem mais força para reforçar preconceitos onde já existem do que força persuasiva para convencer aqueles que não possuem opinião formada – menos ainda para dissuadir.

A transformação da declaração do Papa em fato jornalístico cria um alarde e uma urgência que não correspondem absolutamente à dimensão geopolítica e cultural do evento. Há uma evidente desproporção, uma hipervalorização de um fato singular que nem de longe se situa na densa e ampla rede de relações políticas, econômicas e culturais em que um dia esteve ligado. Mas, a que interessa essa hipervalorização da renúncia do Papa? Ela ajuda a manter a notícia viva e a audiência presa. Resposta simples.

Atualmente, a escolha do Papa é uma decisão tomada com base e com implicações unicamente no jogo de intrigas e disputas de grupos que lutam pelo poder na Cúria Romana. Nada muito diferente de uma eleição para chefe de departamento numa Universidade. Essa hipervalorização midiática é capaz, de uma só vez, de obscurecer o real grau de relevância do evento, fazendo-nos atribuir um valor que não existe em última análise, como, também, cria a ilusão de vitalidade e permanência de um mundo em ruínas, de uma instituição moribunda.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

6 Responses

  1. Arthur Dutra disse:

    “Porém, se a igreja católica é uma instituição decadente, cadavérica, por que tanta repercussão e comoção com a declaração de renúncia de Bento XVI?”
    É sinal, meu caro amigo, que seu diagnóstico está um pouco equivocado, já que o mundo se importa, e muito, com a Igreja e seus líderes.

  2. Olá, Arthur

    Não afirmo que o mundo não se importe com os destinos da Igreja Católica e de seus líderes. Afirmo que a relevância atribuída pelo “mundo” é uma fabricação, um efeito midiático, pois objetivamente a Igreja não possui nem um décimo da influência e relevância que ela um dia possuiu nos equilíbrios de poder e na vida cotidiana das pessoas. O que temos é uma hipervalorização fabricada, ilusória, dada pela reiteração e cobertura mediática. Entre outros ardis, podemos observar o próprio lançar mão do sintagma “mundo”; o mundo reza por Bento XVI, o mundo está preocupado, etc.. Ora, o “mundo” aqui é uma generalização e homogeneizante, que tenta estender o universo restrito dos católicos e de alguns outros crentes ao “mundo inteiro”. Esses efeitos retóricos e metonímicos constroem pertinências que fazem nos levar a crer que o fato da renúncia ou escolha de um Papa possui, hoje, grande relevância e implicações. É preciso desconstruir essa relevância, e não tomá-la como um dado objetivo da realidade. Abraços,

    Alyson Freire

    • Arthur Dutra disse:

      Alyson, continuo não concordando com seus argumentos, pois me parece que consistem mais em uma vontade do que propriamente um reflexo da realidade, já que, embora exista, sim, uma diversificação de fontes de regras sociais, a Igreja Católica está longe de ser “cadavérica” como você assenta de maneira um pouco exagerada. A repercussão e as manifestações de pesar e de apoio ao Papa refletem que muitas são as pessoas que o viam como um guia espiritual e que, justamente por isso é que lamentam sua saída da cátedra de Pedro, afinal, o Papa além de ser o Vigário de Cristo é também um estadista que lidera espiritualmente bilhões de cristãos pelo mundo afora, e, assim sendo, se constitui numa importante fonte de princípios morais, basta ver as manifestações ocorridas em Paris e Washington que tinham por bandeiras exatamente as que o Papa defendia e defende. Ou seja, os princípios cristãos, guardados pela Igreja Católica, ainda têm robustzês suficente para mobilizar algumas milhões de pessoas para sair das igrejas para às ruas a fim de reinvindicar aquilo que entendem ser o correto.

      Daí porque não deve ser motivo de espanto que a renúncia de um Papa, um fato raríssimo na Igreja, seja tão alardeado.

      Abraço

      Arthur

  3. Felipe Tavares disse:

    Alyson, concordo com o Arthur e acho que você está equivocado em sua análise. De fato, ela parece mais fruto de uma vontade pessoal que uma verificação da realidade. Tomo como argumento para afirmar isso o seu padrão de comparação. Quando você diz que o mundo desde Napoleão passa por um processo de secularização está distinguindo a Igreja do mundo contemporâneo daquela do período medieval – esquecendo inclusive da secularização já do período moderno e formação dos Estados monárquicos. O problema é que não são esses dois mundos que estão em questão com a mudança do papa, mas sim o que as ideias cristãs ainda são capazes de fazer sobre o mundo. E as ideias são mutáveis. O discurso cristão pode se mesclar com o das ciências para prolongar preconceitos e afirmá-los mais categoricamente. Isso pode impedir, por exemplo, pesquisas com células-tronco embrionárias porque a mescla do cristianismo com a biologia passam a definir um conceito de vida e, consequentemente, de assassinato. Um discurso divino-biológico pode dizer que só existem cromossomos X e Y e que por isso homossexuais não são coisas da natureza e, portanto, não são coisa de Deus. Creio que seu equívoco veio de pensar apenas a Igreja como instituição, como um “departamento numa Universidade”, quando, mais que isso, ela é produtora e disseminadora de ideias. Como diria o V de Vingança, essas podem ser à prova de balas, mesmo que venha dos conservadores e não dos progressistas.

    • Só pra sintetizar um ponto comum que você e Arthur mencionaram: a vontade pessoal, que teria guiado mais a minha análise do que a realidade.

      Em minha análise, mencionei e estruturei o argumento em torno de processos históricos reais e objetivos e o seu impacto na Igreja enquanto ator político e instituição social:

      1. Secularização
      2. A emergência dos Estados Laicos
      3. A ampliação do número de pessoas sem religião e da concorrência no mercado religioso (novas confissões)
      4. Dificuldades de recrutamento de recursos humanos para a burocracia eclesial (seminários esvaziados e com altas taxas de evasão).
      5. Derrotas da Igreja no debate público (aprovação de pesquisas em célula -troca, retirada de símbolos religiosos; ensino religioso, aprovação de casamento gay e adoção, aborto, entre tantos mais).

      É a partir dos desdobramentos desses processos que sustento a tese principal: Hoje a igreja não possui mais o papel e o quantum de força e autoridade nos equilíbrios do poder que um dia ela possuiu. Meu questionamento da relevância e repercussão de qualquer acontecimento em torno do Papa e da Igreja Católica baseiam-se nessa constatação. Aqueles processos e seus desdobramentos nas relações de força e poder entre atores políticos hegemônicos e influentes independem da minha ou de qualquer outra vontade pessoal, são dados objetivos. Abraços,

      Alyson Freire

  4. Olá, Felipe, boas ponderações, permita-me esclarecer melhor.

    Veja bem. Traço, em linhas gerais, um diagnóstico acerca da decadência da Igreja enquanto instituição de poder, isto é, a capacidade de sua força política em impor determinados interesses e ideais. Se tomarmos um quadro historicamente amplo comparando a influência objetiva e real da igreja com períodos anteriores, nota-se claramente um declínio de sua autoridade e força nos equilíbrios de poder atuais. Este diagnóstico não é da fé nem dos sentidos que os católicos ou cristãos praticantes devotam a Igreja. Destaco apenas um nível de análise, qual seja, seu papel enquanto ator político.

    O processo de secularização é bem anterior a Napoleão. Veja que mencionei a ciência moderna. A coroação de Napoleão é um evento simbólico que consolida uma mudança importante nos equilíbrios de poder; outro ponto que se poderia destacar a partir de Napoleão é a paulatina substituição do direito canônico rumo a um direito mais racionalizado, civil, etc..

    Concordo com você sobre o papel das ideias, e de como as ideias cristãs podem se mesclar com ideias científicas. A igreja católica é produtora e disseminadora de uma determinada visão de mundo. O que afirmo que é essa visão de mundo, encontra-se hoje, abalada porque o mundo contemporâneo, por meio da ciência, da política e outras formas de pensamento e discurso, também instituiram e disseminam visões de mundo que entram em choque com a visão de mundo tradicional. Veja os discursos do Papa, todos falam de renovação, de enfrentar os dilemas do mundo atual. A igreja tenta encontrar uma maneira de lidar com este mundo secularizado, politeísta em termos de valores e práticas e no qual a igreja já não goza do poder político e social de outrora.

    Observe o quanto as ideias cristãs pura e simplesmente acumulam derrotas na esfera pública. Veja o caso das pesquisas em células troncos no Brasil; foi aprovada. Veja o casamento gay e a adoção homoparental na França, também foram aprovados. Isso não quer dizer que possa haver reviravoltas. Longe de mim, afirmar tal coisa! Ou que Igreja não tem mais nenhuma influência e força. Apenas que esta força e influência se colocados em termos comparativos podemos constatar um declínio, que é resultado de transformações históricas e culturais variadas.

    Alyson Freire

Sociedade e Cultura

De quem é a iniciativa?

Sociedade e Cultura

Potiguar Renan Barão vence mais uma luta.