Rio Grande do Norte, quarta-feira, 01 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 27 de setembro de 2013

PapoBalada: o flanelinha e o racismo de classe

postado por Alyson Freire

Sob a desculpa do “humor” ou da “solidariedade”, muitas atrações televisivas e na internet parecem não se importar com a “exploração da miséria alheia”. Os advogados e praticantes dessa estratégia midiática acreditam que a abordagem humorística ou a ajuda às pessoas com casas e carros reformados legitimam todo e qualquer tipo de exposição e exploração das imagens, das emoções e da vida das pessoas. Não há nada de errado, nossa intenção é nobre ou estamos fazendo apenas nosso trabalho, justificam os incautos bem intencionados.

PAPO BALADA - FACEBOOKNão são apenas os grandes nomes da mídia nacional que se valem da estratégia de exposição das emoções e imagens das pessoas, submetendo-as a tarefas e desafios que visam bem ridicularizá-las do que outra coisa. Nem só de Gugus Liberatos, Rafinhas Bastos e Luciano Hulks vive a “exploração da miséria alheia”. Há outros nomes e iniciativas menos badaladas que seguem fórmula semelhante, fazendo o uso da mesma insensibilidade e das odiosas práticas vexatórias e degradantes disfarçadas e vendidas como humanitarismo e criatividade descolada e cool. Em Natal, este deplorável fenômeno nacional assumiu feições típicas do way of life de nossa classe média.  Refiro-me ao programa “Papo Balada”, um filho da era digital daqueles programas tipicamente natalense cuja razão de ser é cobrir o estilo de vida da high society local: o frenesi de suas baladas, a elegância de seus casamentos e aniversários, a distinção de seus gostos e de suas lojas e grifes prediletas. Ao que parece, a classe média natalense, além da autovitimização (classe média sofre!) característico dessas camadas sociais em todo o Brasil, precisa da autobajulação para assegurar a si mesma o sentimento de sua importância e existência.

flaNum quadro intitulado “do Lixo ao Luxo”, os produtores do “Papo Balada” escolhem um flanelinha (Edilson) com o objetivo de transforma-lo num “playboy” pegador e, com isso, mostrar como mesmo um flanelinha pode se dar bem na balada natalense se ele possuir o “visual” certo. Com o apoio de algumas empresas e lojas especializadas, os apresentadores vão pouco a pouco “repaginando” a aparência do jovem flanelinha; corte de cabelo, banho, dentista, novas roupas, tênis, musculação, perfumes e sabonetes. A dita “repaginada” ou transformação é, com efeito, uma verdadeira operação de “higienização social”, quer dizer, um apagamento progressivo dos marcadores da origem de classe do  flanelinha para colocar em seu lugar os simulacros e os signos sociais do “playboy” potiguar, bem nascido e nutrido a whiskey com RedBull e pizza integral.

O quadro não é apenas grotesco e tosco, ele é violento e cruel. O jovem flanelinha é colocado numa situação vexatória e humilhante. Os apresentadores debocham e zombam de Edilson, de seu cheiro – “o cara tá fedendo muito”, “dar um jeito nesse rapaz e em seu cheiro” -, de seus gostos, de seu jeito de falar, de suas gírias. Obviamente, tudo sob o pretexto da piada e da descontração. O título do quadro já exprime por si só toda a violência simbólica – “do Lixo ao Luxo”. Ele revela, de maneira flagrante, o modo como as classes médias concebem os mais desfavorecidos e os mais vulneráveis socialmente, ou seja, o valor e o status que elas atribuem aos mais pobres.

Para retomar o conceito do filósofo italiano Giorgio Agamben, Edilson é mera vida nua, homo sacer: vida sem direitos, desprovida de dignidade e respeito e contra a qual se pode cometer tudo, inclusiva transforma-la em objeto de chacota e entretenimento para o riso dos “bens nascidos”.

Os apresentadores do quadro não ateiam fogo nem espancam mendigos ou vociferam conscientemente preconceitos contra os pobres. Mas o princípio do quadro “humorístico” é o mesmo desses atos horrendos, pois estamos diante de uma prática de rebaixamento e inferiorização que reduz o outro a condição de um objeto descartável e manipulável com o qual se pode “brincar”, humilhar, escarnecer sem maiores implicações éticas e de consciência. O protagonista do quadro é convertido num objeto de riso.

Em nossa sociedade, o mendigo, a prostituta, o flanelinha, o menino de rua são todos homo sacers, vidas nuas, sem direitos; não são vistos como indivíduos com direitos e com um status de humanidade igual ao meu, portanto, portador de dignidade e autorespeito e com direito à preservação de sua integridade moral. Suas vidas, seus corpos e sua dignidade são violáveis. Contra essas vidas e figuras pode-se atentar de todas as maneiras, inclusive com avacalhações e exposições gratuitas e degradantes. O que os apresentadores fazem, e eles sabem bem disso, é criar “um playboy bufão”, um simulacro de playboy que cumpre, na verdade, o papel do bobo para alegrar a corte da classe média, para fazê-la dar boas gargalhadas. E isso por si só já é bastante lamentável, porque não se trata somente de algo estúpido, é baixo, é cruel.

O que os apresentadores não sabem é que a piada humilhante e ofensiva e o deboche e a zombaria que eles realizam, com alguma ingenuidade, diga-se, contra o jovem flanelinha são mais do que uma instrumentalização para o riso alheio ou uma brincadeira sem maiores consequência para pregar uma peça na própria high society, como eles quiseram justificar. Os produtores do programa ignoram que estão praticando uma violência simbólica contundente e real. Nela se exprime o racismo de classe e os consensos estigmatizantes e socialmente inferiozadores responsáveis pela denegação de reconhecimento dos mais pobres em nossa sociedade. O riso que buscam incitar é um riso que desumaniza tanto aquele de quem se ri quanto os que riem.

Os produtores tentaram se explicar, sustentando que, na verdade, seria uma crítica social “aos que se acham donos do mundo” e à “sociedade que julga pela aparência”. Nada disso convence ou justifica a estratégia de que lançaram mão; instrumentalizar alguém e submetê-lo à uma exposição vexatória, repleta de deboches a propósito de sua condição. Se a matéria exibe toda a futilidade e superficialidade do estilo de vida classe medista jovem natalense é ao preço da ridicularização do jovem flanelinha, da violação de sua dignidade e integridade. O cachê pago e o emprego oferecido não autorizam “brincar” com as pessoas e converte-las em fantoches para o riso e o escárnio dos outros, e muito menos desfaz o tratamento humilhante e degradante que impuseram. A escolha por realizar uma matéria como a exibida no quadro do “Lixo ao Luxo” já é suficiente para saber com o que se está comprometido: se com a crítica à injustiça social ou com a ridicularização das pessoas mais vulneráveis.

Insista-se: a matéria revela muito mais uma mentalidade de uma camada social do que as opiniões individuais dos produtores e apresentadores, estes a reproduzem e a reforçam.  A exposição vexatória pelo deboche é, também, uma espécie de sublimação para outros sentimentos perversos e inconfessáveis publicamente de nossa classe média diante da “ralé”. Em outras palavras, se não podemos exterminar os pobres ou dizer tudo o que pensamos e sentimos, então, ao menos, podemos ri deles, nos divertir as suas custas, zombar de sua feiura, de seus modos, de sua miséria. Afinal, ponderam, um “zé qualquer sem nome”, um invisível social com quem essa classe média interage apenas por alguns segundos, subindo o vidro das janelas de seus carros ou arremessando-lhe algumas moedas, deve ter alguma outra utilidade do que a de simplesmente preencher a paisagem urbana. Ele pode ser um fantoche, um brinquedinho, qualquer coisa que entretenha.

Quando se trata da dignidade das pessoas e do combate às formas de opressão e inferiorização a verdadeira crítica social é direta. Ela atua e é exercida sem subterfúgios e joguinhos. E, mais ainda, ela é consciente sobre as suas próprias implicações. Como se pode concluir, não há nada disso na matéria. Por outro lado, sobram preconceitos, racismo de classe, insensibilidade.

Link: PapoBalada: “Do lixo ao luxo”: http://www.youtube.com/watch?v=_AmQmNT044M

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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