Rio Grande do Norte, sexta-feira, 03 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 11 de novembro de 2013

PORÇÕES DE VIDA EM LATINHAS PRATEADAS

postado por Carta Potiguar

Andrea Monteiro, Professora de sociologia do IF do Sertão Pernambucano

A compra de latinhas de energéticos tornou-se parte dos ingredientes das baladas, festas, churrascos, shows ou qualquer tipo de momento de sociabilidade que exija de nós um grau de disposição do corpo, da mente e da alma fora da normalidade diária. Nas filas dos hipermercados ou nas pequenas conveniências espalhadas pela cidade, lá estão nas prateleiras a facilidade e praticidade em latinhas azuis com o brilho prateado o algo mais que precisamos para garantir a sensação da experiência plena dos acontecimentos que tanto buscamos. Por menos de R$ 10,00 compramos o ticket de passagem para voarmos em assas metafísicas rumo à tão almejada Pura Felicidade. A festa rolou, a vida continua. Certamente nas próximas horas necessitaremos de mais, porque queremos viver mais. E nessa busca da pura felicidade enfrentamos uma luta interior da nossa insaciável busca de experiência. Desejo, necessidade e vontade. Porque a gente quer comer, fazer amor e quer prazer para aliviar a dor. A gente quer dinheiro, felicidade. Tudo inteiro e não pela metade. Se o corpo não aguentar, não suportar, outra necessidade surge: um tempo para interromper a pressão e a opressão. Porque não essa desconexão ser enlatada em porções de relaxamento? Chegou ao Brasil uma bebida global: o Slow Cow, o energético às avessas. Produzida em alguma cidade canadense, para um modelo de vida e de ser humano igualmente global. Sabe aquela dose de tranquilidade que você quer? R$ 9.99, simples e prático. Lembra a propaganda: “parar um minuto para desligar do mundo também é importante.” Analgésico para a dor, viagra para o vigor, prozac para alegria, herbalife: a feira do mês.
Como será no futuro? Quando e como estaremos lá? Eis a questão.
Nesse futuro que nos espera, a ideia do que é viver, ter vida/sobrevida, verdade/falso, representação/ficção, real/aparente, ou até mesmo do que é ser rico e pobre, todas essas noções sofrerão uma redefinição de sentido radical.
Sem aderir a qualquer tipo de projeção apocalíptica, como poderíamos pensar um cenário futuro onde as forças produtivas alcancem um grau máximo de desenvolvimento e as relações de produções desiguais tenham permanecido? Um cenário onde o capitalismo e o mercado tenham se mantido. Um cenário em que as estratégias e mecanismos de manutenção da ordem das coisas tenham sido ampliados. Estamos pensando um momento em que o mundo messiânico ainda seja um ideal a ser conquistado, em uma fase anterior a tão sonhada sociedade onde a abolição da propriedade privada for outorgada.
Pensar essas formas sociais não é um exercício fácil, mas podemos fazer isso partindo da observação dos espaços coletivos, do grau de força de atração que o sistema mediatizado pelo dinheiro possui em orientar o investimento vital e existencial dos indivíduos, e na medida em que os indivíduos buscam participar da gama de possibilidades criadas no próprio sistema.
Nesse megaempreendimento social a maquina de produção dos fetiches está sempre ligada. Nela existe um sensor que capta os nossos desejos e necessidades. Nada de maquinação ou condução maniqueísta de nós e da realidade, produtor e produção existindo numa tensa e intensa reciprocidade. Pois já não temos como discernir a linha tênue de separação. Mas, o que queremos mesmo? Queremos viajar, comer e passear, na condição de herdeiros dos deuses do olimpo: belos, perfeitos e especiais. Mas como dar conta de tantas exigências?
Bem, na medida em que o dinheiro continuará mediando às oportunidades de experiências e a desigualdade social for mantida, penso que para uma grande maioria dos humanos irá sobrar apenas um simulacro de experiências de vida, não as experiências reais. Isso porque no futuro as experiências de vida serão apropriadas pela maquina de produção de mercadorias. Será um período da civilização em que genocídios e guerras farão parte do nosso passado selvagem, e a fome e a miséria serão superadas. Por um motivo prático, não será do interesse do próprio sistema a perda de humanos. Uma vez que o sistema produtivo necessita de um contingente populacional para consumir a produção. Se perdermos vidas humanas em guerras, genocídios ou coisa parecida, quem irá consumir? Nesse estágio de desenvolvimento das forças produtivas, a divisão de classe será de outra ordem. Existirão aqueles que terão possibilidades de desfrutar das experiências reais da vida e uma grande maioria que terão sua existência reduzida à condição de consumidores de comidas fast-food, viagens fictícias, sensações descoladas de experiências reais e cápsulas e latinhas de tudo o que for necessário.
Todos os aspectos da vida social estarão totalmente sob o controle do relógio do mercado. A linha de separação entre o Trabalho e vida privada será ínfima. A vida se desenvolverá em espaços destituídos de singularidade e atemporais como praças de alimentação do shopping centers e os espaços virtuais de entretenimento. Os robôs, os computadores, as câmeras, o brilho ofuscante de luzes coloridas e a reprodução virtual dos sons da natureza serão naturalizados por nós de tal forma que redefinirão os sentidos humanos. Claro, algumas coisas se conservarão. Por exemplo: a religião, a busca de relação com o divino, as fantasias do fim do mundo, essas ainda permanecerão. Até porque, a hipótese do fim é necessária para fazermos no presente. Pois se pensamos que lá na frente o fim nos espera, procuramos viver o agora. E nessa comparação entre a vida presente e o fim obscuro no futuro, o hoje sempre acaba sendo visto em melhores condições. Mas, de fato, nesse tempo adiante o uso dos cinco sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato) será um demarcador social. O prazer de um momento, dos sabores de uma comida e bebidas de verdade, de ouvir o som das águas e senti-las sobre o corpo, o frescor da brisa e contemplação da natureza e suas paisagens, a revoada dos pássaros, o calor do sol ou o frio da noite, essas sensações que hoje não damos atenção serão exclusivas dos que poderão desfrutar das coisas reais pagando mais caros por elas.
Então, valorize o momento, as pessoas, e as possibilidades humanas que podem daí fluir. Uma conversa, um sorriso, um aceno, uma gargalhada, uma caminhada, um abraço, um beijo, um arrepio, um suspiro, um sussurro….. e outras e outras e outras. Cultive as experiências reais enquanto é possível.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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