Rio Grande do Norte, quinta-feira, 02 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 14 de novembro de 2013

O caso Rafaela Leite e a Indignação Seletiva

postado por Alyson Freire

igor-vieira_batidaÉ triste e difícil escrever sobre episódios que resultaram em mortes. Construir uma reflexão e crítica social com respeito a episódios em que vidas foram ceifadas e interrompidas de maneira brusca e estúpida, deixando dor, pesar e saudade aos familiares e amigos atingidos com o fatal acontecimento é uma tarefa dura e arriscada. Os riscos de incorrer em conclusões abusivas, distorções, insensibilidade, sensacionalismo ou de ser vítima de interpretações equivocadas e mal-intencionadas são extremamente altos. Porém, o compromisso com a reflexão crítica sobre a sociedade nos obriga, por vezes, a adentrar em terrenos espinhosos, emocionalmente delicados, pois que, de algum modo e independente de nossas intenções, o que escrevemos e falamos reverbera nos sentimentos legítimos de luto e indignação dos entes próximos. Pensar é uma atividade arriscada e que causa incômodos variados. É preciso fazê-lo, de todo o modo.

No último sábado (09/11), a universitária Rafaela Pinheiro Leite foi atingida quando estava na garupa da moto, com o seu namorado, Igor Matias, por um carro BMW aparentemente em alta velocidade na avenida Romualdo Galvão. O suspeito do atropelamento fugiu sem prestar socorro. Na quarta-feira (13/11), um adolescente de 17 anos, bem vestido e boa aparência, se apresentou à polícia acompanhado do seu pai e com os seus advogados, de renome, diga-se.

Para além da consternação com a morte da jovem universitária, a reação social a este episódio é, até o momento, marcado por um silêncio revelador, e, infelizmente, sintomático da perversidade social. Os clamores indignados e raivosos em favor da redução da maioridade penal, da internação compulsória, da pena de morte, da tortura policial e do linchamento público estão abafados, submergidos pelas camadas do preconceito social, da hipocrisia, do racismo de classe e da seletividade que hierarquiza o valor e o status das pessoas. De repente, os “cidadãos de bem” dos condomínios fechados, os “bons moços” que sobem o vidro elétrico dos seus carros nos sinais de trânsito e os indignados contra violência urbana e a insegurança emudeceram. Ao que parece, os sentimentos mais exaltados de justiça, o bramir por uma dura resposta do Estado e mesmo a dor e a comoção social são socialmente seletivos, quer dizer, manifestam-se, com mais ou menor força e veemência, a depender da origem social dos infratores, criminosos e, também, de suas vítimas.

Assim, o adolescente que teve sua identidade preservada, mas que, definitivamente, é “gente de nome e sobrenome”, “gente de futuro”, desfruta de uma série de benefícios compreensivos tácitos que suspendem ou suavizam o peso da reação e da rejeição social sobre ele e seu comportamento: dúvidas acerca da autoria ou da inteira responsabilidade são sugeridas; tentativas de minimizar ou rotular como uma imprevista e lamentável “fatalidade”; ressalvas sobre a idoneidade e reputação da família e de seu passado, de seus hábitos e estudo, etc.. A diferença de tratamento resulta bastante clara e pode ser exemplificada com uma breve compilação dos comentários na página do Facebook do TodoNatalense sobre o caso, eis alguns:

“Talvez não tenha sido ele”; “o advogado só está fazendo o trabalho dele”; “Tá certo que o garoto errou, mas a culpa não é só dele”; “Gente, não podemos julgar sem antes saber o que realmente aconteceu”; Vocês só estão apedrejando o garoto, sem terem o mínimo de consciência sobre o garoto, família e hábitos dele”; “Já imaginaram que o culpado pode ter sido o piloto da moto?”.

Ora, o que deveria ser regra e estendido a todas as pessoas sem distinção, isto é, o direito à ampla defesa, as precauções sobre a culpa e a sensibilidade e razoabilidade quanto as motivações e causas do comportamento infrator acaba por se revelar em sua verdade perversa, qual seja: as formas de tratamento do infrator, do “bandido”, a repercussão social de indignação e o clamor coletivo dependem da posição social dos envolvidos.  A hierarquia social que classifica as pessoas como “gente” e “subgente” mostra-se em toda a sua crueza.

Os mais pobres, os negros e os jovens de periferia não contam com esse conjunto de reticências de “compreensão” e “complacência tácita”. Na verdade, contra eles, o veredicto coletivo e penal é rápido e intransigente. Portanto, nada de por em dúvida ou entre parênteses ou ter cautela. É preciso que eles sintam todo o peso e rigor da lei, inclusive, das arbitrariedades que a rodeiam: as torturas, as chacinas, a indignidade e subumanidade das casas de detenção, etc..

Não se trata, de modo algum, de defender que o mesmo, autoritário e vil tratamento seja  conferido aos jovens abastados. Muito pelo contrário. Trata-se sim de fazer valer para todos, independente de classe, cor, sexo o direito à dignidade humana e à integridade e garantia dos seus direitos como seres humanos e cidadãos. É a não-efetividade desse princípio de igualdade e de integridade dos direitos de maneira universal e equivalente que critico.

Assim, as consequências de mazelas sociais como a desigualdade, a deficiência e restrição aos serviços e direitos básicos, o preconceito, a violência policial e familiar, nada disso parece ser suficiente para, antes de qualquer condenação moral imediata, pensarmos e avaliarmos com mais cuidado e sensibilidade os constrangimentos que atuam nos destinos das pessoas.  Pelo contrário, até mesmo aqueles que estão agindo em conformidade com a busca da verdade, com o respeito aos direitos e à igualdade e com compreensões mais humanas e críticas da realidade social são execrados e taxados como “defensores de bandidos”.

Isso mostra como, no Brasil, nem todos são vistos como efetivamente “gente e cidadãos”. O alcance e a cobertura da ideia de igualdade e de respeito pleno a integridade dos direitos, entre nós, são profundamente restritos. Em Natal, some-se, ainda, o aspecto geográfico excludente e segregador onde aquilo que acontece na Zona Sul da cidade ganha, com maior destaque e intensidade, às páginas principais dos jornais e à indignação das pessoas. Não é gratuito que o verdadeiro genocídio da juventude nas zonas oeste e norte e região metropolitana é absurdamente secundarizado na pauta pública.

O episódio em questão da morte de Rafaela e da apuração da responsabilidade do adolescente abastado, “de nome e sobrenome” e de advogados renomados é, para além dos aspectos criminais e investigativos, um contundente exemplo da hipocrisia social e da seletividade de classe desta ideologia autoritária do “bandido bom é bandido morto” que embotou o entendimento das pessoas de largos estratos sociais, independente até do grau de escolaridade delas.

Como há escrito e pesquisado, o sociólogo Jessé Souza, a sociedade brasileira é marcada por toda uma classe de pessoas excluídas e desclassificadas simbolicamente, que não participam nem são concebidas como sujeitos de direitos, como gente, como humanos.  São a essas pessoas, a essa “subgente” que é dirigida a ideologia do “bandido bom é bandido morto” e todo o rigor, clamor de justiça e rejeição social. Não há dúvida, compreensão e muito menos, compaixão para os infratores “pobres, preto e de periferia” que ousaram atentar contra o patrimônio privado, duramente conquistado, pelos “cidadãos de bem” e “gente de futuro” que contribui com a sociedade. Que eles permaneçam “invisíveis”, “esquecidos”, “excluídos”, “marginalizados”, que não incomodem os “de cima”.

E quem é essa “subgente”, esses “subcidadãos” desprezados, ignorados, invisibilizados e privados cotidianamente de tudo que a sociedade produz e a quem parte dessa mesma sociedade somente se atenta, se importa e percebe quando eles são “pegos” cometendo delitos contra os mais abastados e privilegiados? Eles estão e passam, sem ser devidamente percebidos, rotineiramente debaixo de nosso nariz. São os jovens que estão nas ruas, como flanelinhas, pedintes e limpadores de para-brisa nos sinais de trânsito; são os jovens precarizados que sob o sol empunham bandeiras de empresas imobiliárias e entregam folhetos durante horas à fio por uma miséria; os mendigos, as empregadas domésticas, os caixas de supermercado, os adolescentes de bairros populares, enfim todo um conjunto de pessoas que integram não o mundo pleno dos “de cima”, os vencedores por mérito e esforço, da “gente de futuro e de família” que contribui com a sociedade pagando imposto, estudando muito, consumindo bastante, desempenhando profissões nobres e de status, mas sim o mundo invisibilizado e rebaixado dos estorvos e da ralé social.

É essa percepção e classificação social que institucionaliza o valor e o status das pessoas que preside e coordena o grau, a intensidade e os alvos da comoção e do clamor social por “justiça”. Reações seletivas não são novidade nem exclusividade desse triste episódio. A desigualdade acerca do valor e da integridade dos direitos das pessoas encontra-se cristalizada na consciência coletiva da sociedade brasileira. Esta é uma violência simbólica que está na raiz de diversos crimes e injustiças.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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