Rio Grande do Norte, quarta-feira, 01 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de março de 2015

8 de março: rosas e cartões não emancipam

postado por Alyson Freire

mulhO Dia Internacional das Mulheres inspira nas pessoas, homens e mulheres, duas atitudes típicas: de um lado, há os que, com entusiasmo e alguma sinceridade, optam por fazer deste dia uma ocasião simbólica e sugestiva para presentear às mulheres com pequenos brindes e gestos atenciosos: cartões postais, poemas e flores, muitas flores. Por outro, os que se consideram mais politizados e socialmente comprometidos preferem, por sua vez, enfatizar a história e a memória de lutas, de modo a ressaltar as opressões e discriminações persistentes, assim como as conquistas alcançadas ao longo de mais um século e meio de  luta das mulheres por igualdade, dignidade e autonomia.

De fato, essa última atitude é indispensável para reavivar o fato chocante de que a ideia das mulheres como sujeitos de direitos (“O feminismo é a ideia radical de que as mulheres são gente”) é algo extremamente recente em nossas sociedades. Durantes séculos, as mulheres não passaram de objetos de troca – propriedade dos pais e, posteriormente, dos maridos; sem direito à educação formal, ao trabalho fora de casa ou à direitos sociais e trabalhistas básicos, ao voto, ao divórcio e ao acesso a métodos contraceptivos – realidade que persiste, nas relações sociais ou na forma da lei, em diversas regiões do mundo. Tratadas como adereços e apêndices da vida social, as mulheres foram, durante muito tempo, confinadas nos espaços e nas atividades concebidos e tratados como de menor valor e importância para a vida política, cultural e econômica.

No que toca a questão de gênero e das mulheres, o Brasil é um país extremamente contraditório. O país que confia às mulheres alguns dos mais altos e visíveis cargos de poder e de condução da nação, como a Presidência da República e o de vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, é o mesmo país que lidera o ranking da desigualdade de gênero na América do Sul, de acordo com o relatório Global Gender Gap de 2011 e que, segundo pesquisa do DataSenado de 2007, apenas 8% das mulheres sentem-se respeitadas de fato. Dados mais recentes, como os do Mapa da Violência,mostram o Brasil em sétimo lugar em taxa de homicídio de mulheres (4,4 assassinatos a cada 100 mil) quando comparado com 84 países (dados da Organização Mundial de Saúde).

Esse sentimento de desrespeito não é fruto apenas da banalização e exploração publicitárias do corpo feminino, que reduz e instrumentaliza o corpo e o ser mulher, reiterada e exclusivamente, à mera condição de objeto de desejo dos olhos e dos apetites masculinos. Nem se resolve totalmente pelo status legal de igualdade obtido na esfera jurídica. Trata-se de dificuldades e obstáculos concretos e enraizados na vida cotidiana e nas instituições, enfrentados e vivenciados, com efeito, por boa parte das mulheres no que se refere a sua inserção e participação paritária na vida da sociedade: as desigualdades de salários[i] e de exigências profissionais, a desproporção de cargos de chefia, o desequilíbrio na divisão das tarefas e responsabilidades em relação à vida doméstica e aos cuidados com os filhos, o cerceamento da expressão da sexualidade feminina e da autodeterminação dos seus corpos, etc..

É importante que se diga: tais obstáculos sociais não deixam de existir por conta de propagandas, flores e homenagens televisivas que exaltam o papel da mulher na sociedade e na vida em geral. Aliás, são nos aspectos sutis e desinteressados em que repousam algumas das estratégias de dominação mais vorazes e eficazes. Por exemplo, o simbolismo e a gentileza dos presentes, das flores e chocolates por ocasião do Dia das Mulheres carregam, com efeito, o reforço de alguns estereótipos e pré-noções responsáveis por docilizar as mulheres como seres presos à sensibilidade, ao detalhe e ao sentimentalismo, alijando-as das disposições mais afeiçoadas aos espaços e atividades identificados com mais racionais e sistemáticos. Além do mais, as flores e os cartõezinhos não combatem a situação persistente de desigualdade e desvantagem social das mulheres em relação aos homens nem as brindam com maior reconhecimento e respeito. Celebremos o feminino, mas com respeito e reconhecimento para com o que as mulheres são para elas mesmas, e não para o que elas são para nós, homens ou para a sociedade em geral.

Outro discurso comum nesse período de celebração da mulher, bastante repisado nas matérias jornalísticas e publicitárias, é a exaltação de sua plasticidade e papel na sociedade contemporânea. Há aqui, por assim dizer, mais uma das formas sutis pela qual a dominação não se mostra como tal. Como se fosse mais um desses modernos aparelhos tecnológicos recém lançados, diz-se que a mulher moderna é multifuncional. Na empresa, vestida em seu terninho preto e de cabelo preso, ela dá ordens e preside, com confiança e autoridade, reuniões executivas. Em casa, no entanto, ela não se envergonha de vestir o avental, de ser a dona de casa, de ser para os filhos a mãe zelosa e incondicional e ao marido a mais prestativa das esposas. Um belo retrato da dupla jornada, digno das mais tocantes propagandas de margarina.

A sociedade, em sua hipocrisia, exalta e elogia a plasticidade da mulher como a prova de sua virtude e de sua importância social. Mas, na verdade, é exatamente por meio desse estratagema hábil que a dominação se atualiza sobre nova condição lograda pelas mulheres nas sociedades contemporâneas. E, assim, legitima-se não somente a divisão sexual moderna do trabalho, impondo às mulheres a “dupla jornada”, como também se assegura a equivalência entre resquícios do patriarcalismo e a própria ideia de mulher moderna, mais autônoma.

Se é verdadeiro o fato de que todas as conquistas obtidas pela luta das mulheres no último século não resultaram necessariamente na eliminação das desigualdades, na hierarquia dos sexos que ainda rege e organiza espaços estratégicos da sociedade, sobretudo os âmbitos das decisões políticas e econômicas, isto não significa que não haja o que celebrar. Afinal de contas, de todas as lutas e revoluções, não foram precisamente as lutas e mobilizações das mulheres que lograram os melhores resultados? Não à toa, historiadores como Eric Hobsbawm e Perry Anderson não hesitam em creditar ao movimento das mulheres a maior transformação social e cultural do século XX. A transformação da violência doméstica em uma questão pública, respaldada em legislações nacionais e internacionais, é prova do poder e do alcance dessa transformação social promovida pela incansável luta das mulheres.

A mais recente, no Brasil, foi a aprovação no parlamento do projeto de lei que transforma o assassinato de mulheres motivado por “razões de gênero” (Feminicídio) em crime hediondo. Mais um avanço no reconhecimento do Estado acerca das especificidades da violência de gênero em nossa sociedade. É evidente que há ainda muito pelo que lutar. Muito por se fazer e conquistar. Mas, sob um olhar comparativo e retroativo, os ganhos históricos, políticos e sociais das mulheres são inegáveis! As mulheres e sua história política tem muito o que ensinar  a todos os movimentos políticos e sociais contemporâneos. Daí a importância imprescindível dos grupos feministas levarem suas vozes à cena pública no 8 de março, para que, assim, tenhamos a real dimensão política de dita data.

Por último, cumpre destacar, que o Dia das Mulheres não é apenas das mulheres. Se esta é uma data de celebração e reflexão da luta pela igualdade de gênero, uma luta, aliás, de tod@s e de todos os dias, e, se, como sustenta Pierre Bourdieu, a “visão androcêntrica do mundo é o senso comum de nosso mundo”, então, devemos enxergar nela um lugar especial para todas aquelas e aqueles artesãos dos seus corpos, que jogam com o feminino e sentem-se como mulheres e femininas à sua maneira, porque como tais sofrem e enfrenta cotidianamente o peso de viver o feminino em nossas sociedades. E essa, certamente, não é uma tarefa fácil.

Portanto, como celebração do feminino, o 8 de março também é o dia das Travestis, Transgêneros e Transexuais femininos, artífices dos próprios corpos que reinventam a si e criam novos modos de feminilização dos corpos, dos prazeres e da vida. O Dia Internacional das Mulheres significa ao mesmo tempo a celebração das conquistas reivindicadas e a luta do(s) feminino(s) contra a visão androcêntrica do mundo.

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[i] Segundo o Censo de 2010, as desigualdades de renda entre homens e mulheres permanecem consideráveis. Em média, os homens ainda ganham 42% mais que as mulheres.

Imagem: Mulheres Protestando – Di Cavalcanti, 1941

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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