Rio Grande do Norte, sexta-feira, 03 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 16 de março de 2015

Da minoria raivosa à maioria silenciosa: sobre o significado e o alcance dos protestos de 15 de março de 2015

postado por Lázaro Barbosa

Fui tomar café hoje de manhã em uma padaria a caminho da UFRN. Tendo comprado a comida, fui me acomodar nas mesinhas do estabelecimento e aproveitei o ensejo pra conferir o noticiário (a Globo, no caso). Não que faça diferença – é que não tem mesa longe da tevê por lá. Quando me sentei, havia dois homens: um assistindo e outro de costas, ligeiramente afastado. Este último não deixou de notar meu espanto quando comecei a conferir a cobertura (!!!) da emissora pelas passeatas de ontem no Brasil afora. E aí começou a falar que o protesto não fazia o menor sentido, que era uma palhaçada, que a situação brasileira já tinha uma história que vinha da colonização… Até aí, tudo bem – mesmo na hora em que ele afirmou que o Brasil tinha sido colonizado pela rainha Maria, a Louca, no que desmenti corrigindo que a colonização recuava até antes (a rainha chegou no século XIX, fugindo de Napoleão). Só que ele, em tom tranqüilo e blasé, prosseguiu o discurso – e aí mostrou melhor seu alinhamento político. Comentou que tinha vergonha de ser brasileiro; quando estava morando na Alemanha e perguntavam se era filipino ou malaio, respondia que sim para não atrair desprezo pra si próprio. O melhor de tudo foi quando se referiu a Dilma, afirmando que não se pode confiar em gente terrorista. Eu até pensei em ignorar ele, justo no momento que o discurso dele fez emergir suas predileções políticas. Contornei meu desconforto (que, de resto, era mais leve que o revestrés que me deu hoje de madrugada, quando li algumas notícias e comentários sobre os protestos de ontem) alternando entre ele e a tevê – aquele alt tab comportamental e hipócrita que temos quando não queremos dar maior atenção a um interlocutor chato mas não queremos ser abertamente hostis. De resto, foi uma experiência interessante, considerando que mal troco figurinha com gente de direita (não sobre política) fora da net.

Tem várias estatísticas sobre o número de pessoas que foram às ruas ontem. A imprensa marrom fala em um milhão (não entendi se no Brasil inteiro ou só na avenida Paulista). Se considerarmos os devidos cálculos, no entanto, o número é menor (1). Mas deixemos o milhão com a classe média sofrida. Um milhão de pessoas só na Paulista, outros milhares pelo País afora… Fechemos em dois milhões, o que dá um por cento da população brasileira. Pouca coisa – é só uma Manaus ou uma Curitiba, arredondando pra cima. O grande problema é que números, em eventos políticos, são informações quantitativas que devem ser lidas como sintomas, não como fatores decisivos para análise. Tá bom: eu sei da importância de dados quantitativos pra economistas, cientistas políticos, administradores, jornalistas e afins. Mas não é o caso. Ora, comentando esses mesmos números, Rodrigo Vianna fala da estratégia inflacionária (!!!) da Globo, da PM, da UOL e o escambau na medição da quantidade de manifestantes, afirma que “isso não deve apavorar ninguém” (2). Aí eu penso: com todas as informações do texto dele (principalmente o link feito com o furdunço provocado pela elite cafeeira paulista em 32), como é que não se pode apavorar? Não que a esquerda se borre de medo depois das bravatas de ontem, mas não há motivo pra se acalmar. O medo não pode ser quantificado. Um elefante incomoda muita gente, já cantarolava Sam em “Ghost – do Outro Lado da Vida”.

Insisto em meu ponto: números não são decisivos nessa batalha. Dar demasiada importância a números é irrelevante. Se você ainda se importa com números, compare o milhão da Paulista com os quinhentos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade do ano passado. Número duas mil vezes maior! Se ficarmos com os números da Datafolha (210 mil) (3), temos um número 420 vezes maior. Agora, se você se importa com números e é de esquerda, tome cuidado pra não dar com a língua nos dentes e afirmar que não é pra apavorar – porque é pra apavorar, sim. No entanto, reforço: pare de falar em números! Eu não quero saber de números. Quero saber do impacto simbólico dessas manifestações. E aí devemos situar, sim, esse milhão na Paulista como uma minoria numérica – mas é uma minoria chiliquenta, um bando de cigarras que se juntaram pra cantar o hino nacional e sacanear as formigas que vivem com salário mínimo (incluindo, é claro, aquelas que foram vender camisa, água e coxinha pra apurar um extra). Sabia que o canto da cigarra alcança pelo menos 500 de distância? Isso quando a gente ouve, é claro. Cigarras fazem um barulho estridente, que incomoda os animais na natureza.

Casal de cigarras unidas por amor à pátria

Casal de cigarras unidas por amor à pátria ao lado do Midway, Natal (foto: Catarina Santos)

 

Pois bem: se é pra tratar essa minoria em seu direito, que a tratemos como uma minoria raivosa. O problema é que não há som se não há meios materiais pra se propagar. E esse meio deve ser encontrado em interlocutores como o meu, na padaria. Devemos, então, situar essas cigarras raivosas em um palco (a tevê, a net, qualquer mídia de sua preferência) a partir do qual entoam seu réquiem para uma platéia silenciosa – que até fica de boas na piscina, lendo um livro, trabalhando, mas torce muda para que essas cigarras consigam revirar o país pelo avesso. Não que haja uma diferença significativa entre ambas – a minoria raivosa, na verdade, é só uma porção da maioria silenciosa que decidiu botar a boca no trombone. A maioria silenciosa (a idéia é de Jean Baudrillard) é uma multidão amorfa que mal consegue se estruturar com um objetivo comum. As lideranças dos grupos que organizaram a manifestação entraram em conflito (4), e o próprio Bolsonaro foi vaiado e impedido de discursar em um carro de som porque o evento era “apartidário” (5). Ainda assim, não há dúvida: existe uma implosão do social, pulverizado em uma coletividade aleatória de interesses privados, e que visa abalar as fundações vacilantes da democracia no Brasil (tanto a institucional como a autogestionada). Uma minoria que deseja arrastar a farinha pro próprio pirão (gourmetizado, é claro); que não se dá ao trabalho de limpar o entorno do Midway depois da farra, embora queira coleta de lixo e saneamento básico; que quer botar chifre em cabeça de cavalo, chamando essa atitude de “moralização da política”, mas só tem coragem pra isso quando tem alguém pra levar pela mão, como lembrou Túlio Galvão aqui na Carta Potiguar (6). Eu mesmo já dei o toque ano passado (7). E aí é bom lembrar que o estúpido não é só quem pede impeachment quando não há motivo, quem ignora solenemente essa sessão de chilique coletivo ou quem torce pra que essa porcaria toda dê certo. Estúpido é pretender que não há por que se apavorar.

 

 

(1) http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/palavra-minha/na-guerra-dos-numeros-kamel-fez-globo-mentir-ao-brasil-nao-cabe-1-milhao-na-paulista/

(2) http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/palavra-minha/na-guerra-dos-numeros-kamel-fez-globo-mentir-ao-brasil-nao-cabe-1-milhao-na-paulista/

(3) http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1603271-paulista-reune-maior-ato-politico-desde-as-diretas-ja-diz-datafolha.shtml

(4) www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/grupos-que-pedem-impeachment-de-dilma-entram-em-conflito.html

(5) noticias.r7.com/rio-de-janeiro/bolsonaro-e-vaiado-e-impedido-de-discursar-em-protesto-contra-governo-dilma-em-copacabana-15032015

(6) https://www.cartapotiguar.com.br/2015/03/14/sexta-ela-nao-foi-domingo-ela-nao-vai/

(7) https://www.cartapotiguar.com.br/2014/03/23/cinquenta-anos-de-ditadura-revisitando-adorno-bobbio-e-lefort/

Lázaro Barbosa

Nômade, cosmopolita, nerd e chato.

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