Rio Grande do Norte, sexta-feira, 03 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 10 de junho de 2015

Notas soltas sobre paradas, crucifixos, terços e hóstias

postado por Lázaro Barbosa

vivi6Tá dando o que falar essa parada LGBT de São Paulo, hem? Tudo isso por causa de uma mulher trans belíssima mas tristemente trajada a partir do motivo do Cristo crucificado. Horror dos cristãos – sobretudo, horror dos cristãos que vivem do ódio que seus pastores, bispos e similares lhes dão na boquinha. É a raiva suscitada pela apropriação (indevida, segundo eles) de uma das figuras mais emblemáticas de uma religião – de um modo de vida, senhores e senhoras! Só posso rir de tanta sandice – com o pezinho atrás que é de lei; mesmo sabendo das pedradas, quero correr delas pra ficar inteiro e postar mais coisas aqui na Carta Potiguar.

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Lembro que, há sete ou oito anos, no fórum da comunidade da UFRN no Orkut – época áurea da internet, segundo Jout Jout, vlogger de Niteroi que descobri por esses dias -, discuti com um cara católico fervoroso sobre se o espiritismo era ou não parte integrante do cristianismo. Eu argumentava que sim, porque a base da doutrina cristã estaria nas palavras dos Evangelhos, com seu ideário de amor, caridade e assim por diante. Meu interlocutor rebatia, dizendo que o espiritismo não é cristianismo porque não aceita certos dogmas, como o do Deus uno e trino e da ressurreição da carne. Perda de tempo, é claro, principalmente se considerarmos que ele era catequista. Não vejo em que o espiritismo ganharia se caracterizando como doutrina cristã; pelo contrário, os espíritas hoje teriam menos a perder ao se afastar desse rótulo, não tanto pelo critério que coloquei (que foi, aliás, o que aprendi dentro do espiritismo) mas pela história cristã, que é uma história de sangue e hipocrisia marcada a ferro e fogo no lombo daqueles que se desvia(ra)m dela.

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Alguns anos antes desse episódio no Orkut, uma mulher que morava na mesma rua que eu me dizia, de vez em quando: “Jesus te ama! Jesus tem um plano pra sua vida!” Ela repetia essa ladainha com alguma frequência, sempre que eu estava chegando em casa. Até que um dia retruquei a esse jesus-te-ama: “Jesus não tem plano nenhum pra minha vida, quem tem plano pra minha vida sou eu”. Pra quê? Não podia ter ficado calado? A mulé ficou enchendo meus juízo de tanta besteira que a única coisa que recordo é: “Sangue de Cristo tem poder!” Com certeza, porque o sangue dEle é especial, feito de matéria que resiste às ações do tempo e das intempéries. Essa ressurreição da carne é poderosa mesmo, gente! E sim, foi bom eu não ter ficado calado; nunca mais a mulher em questão – assembleiana do neopentecostalismo mais alvejante, daquele que transforma os miolos de seus adeptos em tábua rasa – voltou a me dirigir a palavra.

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Dois anos atrás, em aula de dança de salão, estávamos eu, o professor e uma aluna. Não lembro se era intervalo entre uma aula e outra ou se a aula iria começar. Alguém, que também não recordo, estava com um pacote de batata frita. Peguei uma, referindo-me a ela como hóstia. Essa aluna não perdeu tempo, me repreendendo por faltar ao respeito com um símbolo religioso. Na hora, meu espinhaço gelou e paralisei, embora tivesse dado meus pulos pra recobrar o ânimo e seguir com a aula como se nada tivesse acontecido (sobretudo porque era bolsista); algumas semanas depois, meu professor pediu desculpas pelo incidente. Queria ver se fosse Pedro Costa tirando um crucifixo do ânus na frente dela… Provavelmente chamaria a polícia e processaria a pessoa por atentado ao pudor e à liberdade de expressão.

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Agora, qual é mesmo a serventia de relatar esses episódios? E aí a gente volta à mulher trans do início do texto. Ora, se eu, homem hétero cis, já tenho meus problemas em afrontar um imaginário religioso bem definido, o que dizer das pessoas que não correspondem à mesma caracterização identitária que a minha? E aí cabe lembrar duas coisas: a) o papel do interdito na religião e b) a tolerância como valor político. Toda religião enquanto instituição social tem seus interditos, suas proibições. Quando a trans se põe num trio elétrico e se apropria do Jesus crucificado, ela propõe um gesto violentíssimo contra todo um segmento de religiosos – mesmo que, em última análise, ela apenas transgrida a forma e mantenha o conteúdo da alegoria cristã. Transgredindo a forma, a trans põe a nu (opa!) a farsa de uma religião que se propõe universalizante e inclusiva, mas que abandonou a mensagem de seu proponente desde pelo menos o Concílio de Niceia. A travesti que quiser pisar numa igreja precisa raspar a cabeça e retirar o silicone dos peitos o mais rápido possível. O que me leva a pensar na tolerância como valor político. Engraçado como um valor essencialmente cristão é elevado à condição de fundador não apenas das relações pequenas do dia a dia, mas de todo um regime político – o liberalismo. Qual é o problema? Tolera-se o que não se pode extirpar, o que incomoda, fuja ou não à regra – mas tolera-se principalmente porque aqueles que são tolerados são postos como dependentes e inferiores àqueles que os toleram. Tolera-se porque é o jeito; se houvesse outro jeito, os tolerados – no caso, a população LGBT – seriam eliminados cabalmente.

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Alguém poderia objetar e citar Jesus, pedindo que os verdadeiros (?) cristãos deixem que os mortos enterrem seus próprios mortos – os falsos (?) cristãos. Deixar que os cães ladrem enquanto a parada LGBT passa. Ou, no bom português escrachado, tocar o foda-se. Mas como uma parada dessas pode passar, sem que Malafaia, Feliciano, Cunha e seus cupinchas assediem esse grupo? Mauricio Moraes escreveu na Carta Capital que a diversidade veio para ficar, que os fundamentalistas vão ter que engolir a galera LGBT. Agora, a julgar pela análise de Alípio Filho sobre o tema da parada deste ano, fica a impressão de que é o contrário que acontece. Esse cristianismo decadente infecta e neutraliza mais do que se deseja.

 

Lázaro Barbosa

Nômade, cosmopolita, nerd e chato.

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