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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 21 de junho de 2015

O Terrorismo na Carolina do Sul (EUA) e o Mal-Estar do Multiculturalismo

postado por Carlos Freitas

No estado norte-americano da Carolina do Sul, a tensão entre necessidade de significação, nacionalismo e multiculturalismo deixou mais um lastro de barbárie e terror. Cenário de um passado de lutas de afro-americanos por direitos civis, no entanto, foi na memória passada de “estado confederado” que Dylann Storm Roof, jovem branco, 21 anos, encontrou sua fonte de significação e base motivacional para o ataque terrorista numa comunidade negra. Após as primeiras investigações policiais sobre o perfil biográfico de Dylann Roof, já sabe que o jovem é membro de uma comunidade de confederados, uma microcomunidade imaginária compartilhada por populações de brancos dos estados sulistas norte-americanos.

Considerando os escritos de Max Weber sobre o nascimento da coletividade étnica, podemos compreender a existência atual de comunidades de confederados no sul dos EUA como “comunidades políticas” nascidas da “transformação” de relações associativas racionais dos tempos de escravidão em verdadeiras relações comunitárias pessoais que compartilham a crença intersubjetiva na procedência comum. É como se a sociabilidade escravocrata persistisse na forma de imaginário compartilhado ou mito heroico fundacional de jovens e velhos dos segmentos brancos e pobres dos estados sulistas norte-americanos – os chamados poor white trasch. Na falta de articulação ética da autoestima, resta-lhes a articulação da ética da honra “étnica”, ou noutros termos, o ressentimento travestido de honra.

Ressentimento que tem crescido vigorosamente na atual conjuntura institucional de visibilidade do multiculturalismo e reconhecimento político da diversidade como traço constitutivo da comunidade nacional nos EUA. É verdade que a tensão interracial sempre fez parte da “outra história americana”, porém, agora ela parece ter ganho contornos de terror coletivo nas cidades norte-americanas, com assassinatos cotidianos de negros. Num mesmo período de maior avanço civilizatório em matéria de direitos civis e liberdades na expressão de formas de vida diversas nos EUA.

Concretamente, na configuração cultural e institucional das sociedades diferenciadas atuais o multiculturalismo é um fenômeno complexo demais para ser regulado ou normalizado pelo nacionalismo. O multiculturalismo deve ser entendido também como um efeito simbólico da crescente diferenciação institucional, social e cultural das sociedades ocidentais que se acelerou com a industrialização mundial e com o recuo histórico do Estado regulador-administrador em meados do século XX. Nesse cenário se impõe novamente a problemática da generalização e adesão a valores capazes de produzir uma comunidade de solidariedade em escala nacional. Evidentemente, o nacionalismo vem perdendo sua eficácia simbólica no mundo e deixando de ser uma “ideia-força”.

Não por acaso, ainda na década de 1990, Habermas, sociólogo e filósofo alemão, já apontava as dificuldades de realização da soberania popular em meio a emergência de “uma constelação pós-nacional”. O processo de globalização e a crescente pluralização cultural coloca em xeque o patriotismo constitucional enquanto dispositivo de integração social, demandando a construção de novas matrizes de integração social. Em consequência disso, a integração nacional deve ceder lugar a dispositivos de integração social pós-nacional sob o risco de ampliar a anomia e a fragmentação social.

Trazendo a problemática societal para mais próximo de nós, o ocorrido nos EUA deve ser entendido como “contramodelo, contraexemplo” ou como um exemplo do tipo de conflito intercultural e intraestatal que já começa paulatinamente a ganhar corpo no Brasil? Sem desejar fazer qualquer especulação de natureza futurológica, apenas considero pertinente se observar com maior reflexividade e criticidade a atual escalada de conflitos culturais cotidianos entre diferentes grupos religiosos, étnicos-raciais e identitários-sexuais no país. A repulsa de segmentos tradicionalistas da sociedade brasileira diante de políticas de correção e de afirmação da diversidade (sexual, étnica, estilos de vida etc.) vem germinando o crescimento do neoconservadorismo nacionalista e religioso.

A exemplo do que ocorre na Europa e nos EUA, no Brasil também se observa o crescimento do sentimento de mal-estar diante da visibilização pública de diferentes formas de vida e identidades éticas. Se em nosso mito de fundação – sociedade multirracial – acreditávamos ter encontrado a fórmula geral de convivência e solidariedade multiétnica (“democracia racial”) na louvação do hibrido “mestiço”, com as atuais reinvindicações por reconhecimento institucional e cívico da autenticidade de grupos e formas de vida diferenciadas, cresce o sentimento de borramento da imagem homogênea e generalista do que significa ser “brasileiro”. Em consequência disso, “o que faz o brasil, Brasil” voltou a ser uma pergunta de partida antropológica, politicamente pertinente, que não aceita mais ser respondida por um esquema interpretativo generalizante de um velho pensamento cansado do século XX.

Finalmente, convém ainda destacar que, embora apontamentos de estudos mais rigorosos de antropologia, sociologia e história cultural, a diversidade sempre fez parte do horizonte empírico de práticas nas sociedades ocidentais, a questão de saber sobre a fonte de nosso mal-estar diante da diversidade carece de resposta. Talvez a resposta não esteja na existência ou no grau de diversidade, mas na articulação e visibilidade pública da mesma. Na era da autenticidade, o efeito mais “violento” da chamada política de diferença não foi a defesa do reconhecimento da autenticidade, mas o rasgo do véu de opacidade e de silenciamento coletivo tácito diante da diversidade de formas de vida.  Assim como os jovens e velhos das microcomunidades imaginárias dos confederados do sul norte-americano, nossos crentes adeptos da microcomunidade imaginária da “identidade brasileira” vivem também o mal-estar de busca por significação num mundo de múltiplas fontes de sentido. O medo não é da perda de sentido, mas da dúvida se seu sentido é rico mesmo de plenitude em meio aos outros horizontes de significado ou ideais de boa vida.

 

 

Carlos Freitas

Sociólogo e Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Interesse por temas de Cultura Política e Sociedade. Contato profissional: calfreitas@hotmail.com

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