Rio Grande do Norte, quinta-feira, 02 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 27 de outubro de 2015

O canto do passarinho cego

postado por Alice Carvalho

Morreu alguém que eu amava.

Até aí tudo bem, as pessoas morrem todos os dias, as pessoas tão sempre morrendo, as pessoas – por incrível que pareça – ainda morrem em pleno século 21.

Eu tinha 14 e ele 16, eu de gêmeos e ele de peixes – e eu nem sei o que isso significava, mas ele me importava tanto, que eu achava que era meu dever saber do seu signo e cada detalhinho inútil de  um adolescente que queria ganhar o mundo e outras coisas que adolescentes geralmente querem ganhar. Numa dessas fugidas de casa seu coração não resistiu ao impacto de um capotamento e às 3 da madrugada, num sábado cinza, enviuvei do meu primeiro namoradinho. Foi-se Tiago.

Foi-se também, da mesma forma, Camila.

No dia seguinte, eu ainda cambaleava do baque e foi-se Lucas, do outro lado da cidade. Briga de torcida.

Minhas avós se cansaram disso tudo e resolveram dar um tempo do mundo também – por que avó não morre, avó sobe aos céus pra resolver umas pendengas e já volta, assim que der, prum bolinho de chuva qualquer.

O primo Robson decidiu ir por conta própria, igual ao Pedrinho, há bem pouco tempo (respeito a decisão de ambos e sigo amando-os ainda mais pelo ato de coragem na fraqueza).

A gente sempre pensa “porra, eu podia ter feito alguma coisa!” Mas a realidade é que não podia. Quando não é com a gente, a gente nunca pode nada. Mesmo chegando pontualmente, quando se trata de morrer, sempre se é tarde demais.

Morreram alguéns que eu amava.

Morrer não é como nascer, que é instantâneo. Nascer a gente nasce só uma vez, não tem como nascer aos poucos, ou nasce ou não nasce, 8 ou 80, não existe referencial. Morrer não. Morrer a gente nasce e já vai morrendo um pouquinho a cada milésimo. Depois do parto, é só partida. Um segundo a mais, é um segundo a menos. Morrer é gradativo e, até o dia que for morrer de vez, você vai morrendo à prestação: nas alegrias, nos abraços, na rua que se atravessa pra não encontrar um ex-amor…

“Pra que então passar por tudo isso se a gente vai morrer mesmo?” É que morrer nunca foi a finalidade. É o final, mas não é o propósito. O propósito mesmo é fazer com que o meio termo entre a primeira e a ultima morrida seja algo glorioso. Chamam de “vida”.

Morreu um irmão que eu amava muito e eu silenciei num sofrer contido. Acho que estou aprendendo a respeitar a morte dos outros sem praguejar Deus. Aceitar a morte de alguém é um ato de humildade, acima de tudo.

Enquanto chorava escondida de mim mesma, me dei conta da beleza do funeral. Aquela gente toda se abraçando e dando adeus é bonito e triste, igual ao canto de um passarinho cego. Dependendo do ângulo, é lindo de ver mesmo. O último beijo, o último tchau, a última flor… Não há mais nada depois daquilo ali, um esbarrrão bem-afortunado de carrinhos no supermercado, um “deixa que eu pago” na mesa do bar, um “vamo marcar” nunca marcado… Não tem mais “eu te amo”, não tem mais “me dá um copo d’água”, não há – por isso a gente chora salgado e ácido tentando irrigar alguma coisa vazia que fica.

Se despedir vivo de quem não pode lhe responder dói e morrer dói mais em quem ficou vivo e quase tudo dói naquele espaço/tempo até que a aflição adormeça devagarzinho e a gente continue a morrer dia-após-dia mais um tiquinho.

Essa dor também é amor e saudade antecipada, mas graças ao propósito do nascimento, como todos nós, ela também passa.

Não sei como finalizar esse texto de forma mais coerente. Vocês me entendem?

Morreu alguém que eu amava.

Alice Carvalho

Atriz, comediante stand-up e escritora, Alice escreve às terças (e também em terceira pessoa).

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