Rio Grande do Norte, domingo, 05 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de outubro de 2019

Sobre insetos em “O Rei Leão” e em “Nausicaä do Vale do Vento”

postado por Loa Antunes

Recentemente assisti ao “Rei Leão” (2019) “live action”, uma obra prima dos efeitos visuais que contou com dublagem da Rihanna e tudo. Apesar desta nova versão atualizar alguns discursos políticos para o padrão moral contemporâneo, repetiu certa estratégia do predecessor para dialogar com o público infantil, o que me chamou atenção.

A Disney resolveu o problema das possíveis cenas violentas de caçada que Simba (Donald Glover) poderia se envolver substituindo presas animais por insetos. Ao invés de comer zebras ou antílopes, o príncipe leão passou a devorar, junto com Timão e Pumba (Billy Eichner e Seth Rogen), os vermes que encontravam embaixo de troncos apodrecidos. Dessa maneira nenhum leãozinho com o rosto ensanguentado foi desenhado em tela, a la Animal Planet, atendendo às expectativas do que nossas sociedades construíram como sendo as da infância e do cinema infantil. A partir desse fato interessa comparar “O Rei Leão” com outra obra do Estúdio Ghibli, um estúdio japonês que, como a Disney, também faz cinema para crianças e também debate ecologia em algumas de suas películas. Pois, enquanto “O Rei Leão” discute ecologia com viés didático e maniqueísta, contrapondo um déspota ecocida a um rei benevolente e professor do “Ciclo da Vida”, em “Nausicaä do Vale do Vento” (1984) há uma visão menos dicotômica e mais complexa das relações entre Humanidade e Natureza, ainda que ambos os filmes se destinem às mesmas faixas etárias.

Tanto no mangá quanto no filme, o mundo pós-apocalíptico em que a princesa Nausicaä (Sumi Shimamoto) vive vem sendo destruído por uma floresta venenosa — o Fukai — que não para de se espalhar, reduzindo o terreno habitável humano. O Fukai é o lar de enxames incontáveis de gigantescos insetos devoradores de homens, que reagem a menor violência contra sua espécie e habitat. Como a ciência decaiu naquele mundo pós-guerra a humanidade já não é mais capaz de compreender integralmente a função ecológica da Floresta, que brota das cinzas venenosas deixadas por uma Guerra Nuclear ocorrida mil anos atrás, e, ao fazê-lo, limpa e restaura a terra estiolada, por processar e purificar os venenos ali sedimentados. No entanto, quando atacado ou no seu processo natural de expansão o Fukai libera esporos que são letais aos pulmões dos homens, mulheres e crianças, esporos que adoecem e matam quase instantaneamente aqueles que respiram sua atmosfera. Diante da expansão sem freios de tal calamidade o reino de Torumekia considera queimar o Fukai, na tentativa infrutífera de interromper sua marcha. Mas os insetos gigantes que ali vivem são guardiões deste “Mar da Corrupção”, protetores do processo de renovação planetária engendrado pela Floresta (processo completamente desconhecido da humanidade, senão por Nausicaä) e reagirão com guerra a este ataque. Esta é a ambientação e trama do filme.

Nausicaä coleta um esporo do Fukai e, posteriormente, planta em solo e águas limpos, o que permite que sua flora cresça sem expelir toxinas no ar. Essa descoberta a certifica do papel ecológico do bosque, capaz de limpar as impurezas que a humanidade depositou no solo como resultado do último conflito mundial e de sua pilhagem dos recursos naturais.

A princesa Nausicaä é uma telepata e esse poder na literatura fantástica está associado a empatia. Nesta obra Telepatia pode ser interpretada mais como a habilidade de se colocar na mente do outro, enxergando o mundo daquele lugar, do que ler seus pensamentos de fora pra dentro, como um invasor clássico da ficção científica. Personificação da empatia, Nausicaä, como lembrou a youtuber Mikannn analisando a obra, é aquela cuja alma sente amor até mesmo pelos insetos — criaturas tão biológica e eticamente distante de nós, mamíferos —, justamente por acessar seus corações e assim ser capaz enxergar o mundo a partir de seus sentimentos. Em seu próprio coração a princesa compreende o ódio que sente toda aquela raça insectoide quando a humanidade, desesperada, queima o Fukai para afastá-lo das cidades e vilarejos, mesmo que tal contra-ataque odioso gere apenas mais e mais esporos, acelerando a expansão do “Bosque Apodrecido” e fortalecendo a espiral de violência entre nações humanas e inter-espécies.

Nem “Bosque Apodrecido” (Rotwood) nem os insetos pediram para vir a ser o que são. Antes, foram o produto direto do inverno nuclear e de engenharias genéticas que os homens do passado engendraram, sem qualquer ética ou empatia pelas formas de vida de seu presente ou pela vida futura. Mas também, aquela humanidade assolada pelo constante espraiamento do Fukai não pediu para se encontrar em tal situação, seu ódio é o resultado daquilo que não conseguem compreender integralmente, uma resposta aleijada tanto de ciência como de amor, constituída tão somente do que têm dentro e diante de si, ódio.

Nausicaä guia um inseto perdido de volta para o Fukai sem uso de violência, o que atrairia a vingança dos demais habitantes da Floresta.

Assim, Hayao Miyazaki e a Disney seguiram caminhos muito diferentes na utilização dos insetos como recursos narrativos. Enquanto a Disney mascara uma relação ecológica real em seu filme, atendendo ao que se construiu no Ocidente como sendo imagens próprias à infância e apostou na vida insectoide como aquela cuja alimentação não constitui violência, o Estúdio Ghibli não investiu no conforto dos seus espectadores mirins, senão numa dose de desconforto e na capacidade que as crianças têm de compreender a verdade das relações humanas e naturais. Em um dado momento de “Nausicaä do Vale do Vento” o espectador/leitor sente empatia tanto pelos insetos quanto pelo Fukai e pela Humanidade, complexidade que não permite o surgimento de vilões bem demarcados e de uma lição de moral redonda ao final. Todos naquele mundo pós-guerra agem motivados por sua “lógica cultural”, e por interesses bem justificados, embora denunciados como parciais, precários e muitas vezes odiosos, o que classifica Miyazaki como um autor/diretor que não subtrai sua própria voz de sua obra polifônica, sob uma pretensa neutralidade diante do abismo. Nausicaä do Vale do Vento é precisamente a princesa, guerreira, cientista e diplomata que encarna o arquétipo mítico/narrativo do messias, uma garota (em 1984!) que irá unificar aquilo que fora estilhaçado, recriar a Humanidade, mas também uni-la ao que foi apartada: à Natureza. 

Embora discorde de qualquer apontamento que classifique uma história baseada em maniqueísmos como sendo “infantil” ou “menos realista”, no anime e no mangá de Miyazaki se encontram “quebras de padrões” culturais que só recentemente têm sido discutidas e colocadas em prática, seja no cinema ou na vida política. Nausicaä nos faz pensar questões ecológicas e de gênero, e quando comparada, questões relativas à construção das nossas infâncias, cada vez mais longas (em geral entre pessoas brancas, de classe média) e imbecilizadas.

Na Guerra Fria em que publicou seu mangá Miyazaki não propõe uma defesa nem da política de guerra estadunidense, nem da Soviética. Nem queimar o Fukai e colonizar outros povos, numa economia política expansionista e xenofóbica, como queria Torumekia (EUA), nem controlar o destino das massas para que a humanidade sobreviva às custas da liberdade individual, como pretendia Pejite (URSS). Ao invés disso sua obra propõe uma terceira via, pacífica, amplamente científica, empática e Ecológica com o Planeta e nas relações internacionais. Ecológica porque consegue coligar os saberes e capacidades (entre elas a política, a ciência, a empatia e o amor) que o ocidente industrial fraturou e enfraqueceu.

Na Nausicaä de Miyazaki os insetos não são animados em nome de uma estratégia narrativa que “adéqua” o exibido ao público, mas para representar precisamente aquela vida mais abjeta, mais distante, portanto, de nossa solidariedade. E que, ainda assim, deveríamos mirar e nos questionar. Insetos devoradores de homens que provocam o ódio por seus atos de violência, ações, entretanto, encadeadas por uma espiral de violações e atos de guerra que constituem a vida daquele mundo e do nosso. O que demonstra a maturidade intelectual e emocional do diretor, quando comparado ao maior estúdio de animação ocidental, é a afirmação de que os monstros que cada cultura fabrica precisam ser destituídos da máscara monstruosa que os ocultam, precisam ser enxergados como são: espelhos, reflexos invertidos do que cada sociedade recalca e projeta no Outro.

Nausicaä argumenta que até o mais monstruoso Outro, a “vida que não merece ser vivída”, o mais indigno de solidariedade de cada sociedade tem algo importante a dizer sobre como essa mesma sociedade se enxerga e lida com o mundo exterior, seja o mundo natural ou humano. Recentemente em nosso país não faltaram grandes calamidades ecológicas, entre elas um ecocídio de abelhas, insetos fundamentais para a vida na Terra, motivado por nada menos que uma ganância pelo lucro, que já não encontra baliza ética. Nausicaä expõe que o caminho para retirada da máscara monstruosa que as culturas imputam aos Outros é o caminho da ciência e da empatia. Ou melhor, do estabelecimento de uma relação planetária Ecológica, crítica, a construir uma nova relação ética englobando toda a humanidade e o mundo natural.

Unir aquilo que o mundo industrial separou.

 

Loa Antunes

Doutorando em Ciências Sociais (Ciência Política) — UFRN Policial Militar — PM-RN. Cientista social.

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