Rio Grande do Norte, terça-feira, 07 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 30 de dezembro de 2019

O Farol (The Lighthouse)

postado por Mario Rasec

A narrativa claustrofóbica de O Farol passeia entre fluídos e excrementos. É o mar, que tanto isola quanto parece oprimir e ser a fonte ininterrupta de mistérios e pesadelos; o álcool que consola e enlouquece; é a chuva, o sêmen, o sangue, as fezes… mostrando a intimidade nauseante e delirante de dois homens isolados num pedaço de terra e rocha no meio de um oceano cujo o horizonte está perdido na neblina, onde, às vezes, é impossível saber onde começa o céu e onde termina o mar. Seus conflitos (internos e externos) e seus desejos despidos e misturados a um desfile de simbolismos que tem entre suas fontes a mitologia grega. Tudo isto numa dança embriagada ao redor do fálico farol.

Enquanto que no seu filme anterior, A Bruxa (2015), Robert Eggers parecia mais disposto a expor sua intenção de contar uma história de horror, aqui os elementos de horror são mais diluídos e servem mais a simbologia da narrativa do que causar medo ao espectador. Esses elementos se confundem também com um estudo de personagens (intensamente interpretados por Willem Dafoe e Robert Pattinson) e numa homenagem aos filmes de formato semelhante oriundos de um tempo em que as histórias eram contadas em tons de cinza, e quanto a isto e outros detalhes, não foi difícil notar a similaridade com A Hora do Lobo (1968) de Ingmar Bergman. Ambos se passam numa ilha com duas pessoas isoladas com o elemento sobrenatural ou esquizofrênico atormentando os protagonistas.

O horror também é diluído em inúmeras referências, tanto literárias quanto cinematográficas. De H. P. Lovecraft a Samuel Taylor Coleridge, na literatura; a Os Pássaros (1963) de Alfred Hitchcock e o já citado filme de Bergman, no cinema, além de outras possíveis referências.

Mas o gênero horror, embora fragmentado em tantas camadas e referências, é muito bem representado por vislumbres tentaculares que rementem a Lovecraft quanto pelo processo de loucura dos protagonistas presente nas obras do mestre do horror cósmico. Entretanto, cabe ao final se perguntar onde se oculta o verdadeiro horror do filme, a fonte de tormentos e delírios dos protagonistas, se é na escuridão ou na luz.

Eggers parece triplicar o número de camadas interpretativas desde seu filme de estreia. Aqui ele vai além e não se interessa em oferecer respostas. Cabe cada espectador interpretar o que vê na tela. Aqui nada é entregue ao espectador desatento, nada é explicado. O cinema já é cheio de explicações por considerar seus espectadores incapazes de apreciar um filme como uma obra de arte que é capaz de dar a ele a oportunidade de criar sua própria interpretação. Mais uma vez, numa indústria que busca o simples entretenimento com filmes que tentam fabricar sustos, como se o horror se resumisse a isso, O Farol (assim como Midsommar e Nós, ambos de 2019, apenas para ficar nestes dois exemplos) mostra que o gênero pode oferecer muito mais do que a maioria das produções dos grandes estúdios hollywoodianos com suas fórmulas executadas à exaustão para um público condicionado a assistir filmes sem precisar pensar muito.

O Farol trata da masculinidade doentia utilizando de referências mitológicas, literárias e cinematográficas belissimamente fotografado, sem deixar de lado a estranheza e o desconforto que só um bom filme do gênero pode oferecer. Assim o espectador (aquele que assiste) se torna também um expectador (aquele que espera) numa crescente expectativa pela catarse que o fará sair do cinema desorientado e pensativo.

Talvez em algum momento a direção perca a mão no tom e deixe o humor escatológico extrapolar (como se não bastasse as flatulências do personagem de Dafoe), mas nada que comprometa de forma irremediável o filme. Se o filme fosse apenas Dafoe e Pattinson numa sala (como é em boa parte), ele já estaria perfeito por tão fantástica atuação dos dois. E quem apenas conhece Robert Pattinson por Crepúsculo, aqui vai ver o que é ele brilhando de verdade.

Acredito que O Farol é o típico filme que divide o público entre o amor e o repúdio. Para quem for assistir esperando ver aquele mesmo horror de parque de diversão, que enchem salas de cinema e que está preocupado apenas em causar sustos, a decepção é garantida. O Farol é uma tela surrealista pintada em tons de cinza onde a luz ganha uma importância vital, dividida em diversas camadas simbólicas (e práticas se levarmos em conta  trabalho por trás das câmeras dos realizadores desta obra cinematográfica). Ela parece brincar, como um deus, com os destinos dos seus protagonistas. Seria o fogo tão cobiçado pelos homens e guardado por Zeus, iconizado aqui no Farol? Vemos Netuno, Prometeu e outros deuses e mitos representados na tela, às vezes de forma nem tão sutil, assistindo, representando ou atiçando o conflito e a decadência do homem.

Data de lançamento: 2 de janeiro de 2020 (Brasil)

Direção: Robert Eggers

Roteiro: Robert Eggers, Max Eggers

Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe, Valeriia Karaman

Mario Rasec

Designer gráfico, artista visual, ilustrador e roteirista de HQs. Autor de Os Black (quadrinho de humor) e de outras publicações.

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