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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 22 de março de 2020

CRISE SANITÁRIA, CRISE CIVILIZACIONAL

postado por Carta Potiguar

Michel Maffesoli (Professor emérito da Sorbonne e membro do Instituto Universitário da França)

Tradução: Alipio De Sousa Filho (Diretor e Professor do Instituto Humanitas UFRN)

Além de nossos humores, medos, convicções, reações, consentimento, todas esas coisas sendo da ordem da opinião, é necessário ir ao essencial. Ou seja, para além das aparências, o que o poeta belamente chama “agitação de causas segundas”,  é preciso retornar ao ser das coisas. Abaixo das “mediações”, dessas evidências derramadas ad nauseam pela intelligentsia, retornar ao que é imediatamente evidente. O que a sabedoria popular foi capaz de formular de maneira lapidar: tudo passa, tudo perece, tudo fatiga!

Para o assunto, término de uma Modernidade no seu estertor.  Saturação de um conjunto de valores  cada vez mais ultrapassado. Lembremos aqui uma das etimologias do termo crise: “krisis” como o julgamento feito pelo que está nascendo sobre o que está morrendo. Muitas vezes esquecemos disso, reduzindo a crise ao seu aspecto econômico. Uma simples disfunção do que meu falecido amigo, Jean Baudrillard, chamou “sociedade de consumação”, que alguns ajustes políticos não deixariam de corrigir para o bem maior de todos.

É assim que podemos entender a “crise da saúde” como uma modalidade de uma crise societal em andamento, de uma mudança de paradigma muito mais profunda.

Em outras palavras, a crise sanitária como expressão visível de uma degeneração invisível. A degeneração de uma civilização que já chegou seu dia. Civilização cujo paradigma não é mais reconhecido. A matriz do estar-juntos tornou-se infrutífera. O racionalismo míope pode admitir que se trata de uma alegoria um tanto misteriosa, até mística. Mas não faltam exemplos na história. Existem até muitos deles. Dou por suficiente lembrar a grande praga correlativa do fim do Império Romano. A famosa praga “Antonina”, em 190, que, enquanto causava milhões de mortes, marcou o início da decadência romana.

E o que dizer da “peste negra”, também chamada de “morte negra”, que no século 14 foi corolário do fim da Idade Média? O Renascimento lhe sucedendo. Aquilo que os historiadores chamam de Peste Negra é uma boa expressão do luto que deveria ter sido feito sobre um conjunto de valores que não estavam mais alinhados com um novo espírito de tempo em formação.

Terminemos com a metáfora. Mas já faz muito tempo que, com alguns outros, sob os raios de uma intelligentsia assustada, aponto, sublinho, analiso a decadência da modernidade. O fim de um mundo defendido apenas por castas orgulhosas de sua superioridade ilusória, continuando a repetir suas falaciosas elucubrações. Trata-se de uma “sociedade oficial” cada vez mais desconectada da vida real. E, portanto, incapaz de ver degenerescência intelectual, política, cujos sintomas são cada vez mais evidentes.

Degenerescência do quê, se não do mito progressista? Já havia demonstrado, desde 1979, que, em correlação com a ideologia do serviço público, esse progressivismo era usado para justificar o domínio sobre a natureza, negligenciar suas leis primordiais e construir um mundo de acordo apenas com os princípios de um racionalismo cujo aspecto mórbido aparece cada vez mais de modo evidente. A violência totalitária[1] de um progressivismo estúpido e destrutivo.

Eu disse que era importante focar no essencial. O ponto nodal da ideologia progressista é a ambição e até a pretensão de resolver tudo, melhorar tudo para alcançar uma sociedade perfeita e um homem potencialmente imortal. Que se saiba ou não, a dialética (tese, antítese, síntese) é o mecanismo intelectual dominante. O conceito hegeliano de “supressão” (Aufhebung) é a palavra de ordem da mitologia progressista. Estritamente falando, é uma visão de mundo “dramática”, ou seja, baseada na capacidade de encontrar uma solução, uma resolução para o que pode dificultar a perfeição futura.

Existe uma fórmula de K. Marx que resume bem essa mitologia: cada sociedade apresenta apenas os problemas que pode resolver. Ambição, pretensão de dominar tudo. É a economia da salvação ou a história da salvação da persuasão judaico-cristã que, nos grandes sistemas do século XIX, tornam-se “profanas” e vão inspirar todos os programas políticos, de esquerda e de direita.

É essa concepção dramática e, portanto, otimista que está chegando ao fim. E, no balanço inexorável das histórias humanas, é “o sentimento da tragédia da vida” (Miguel de Unanumo) que novamente tende a prevalecer. O drama, eu disse, é resolutamente otimista. A tragédia é da ordem da aporia, ou seja, sem solução. A vida é o que é. Em vez de querer dominar a natureza, concordemos com ela. Existe um ditado popular que diz: “você só pode controlar a natureza obedecendo-a”. A morte, portanto, não é mais o que podemos vencer. Mas aquilo que convém admitir.

É isso que, em grande parte, indica a “crise sanitária”. A morte pandêmica é o símbolo do fim do otimismo do progressivismo moderno. Podemos considerá-la como uma expressão do pressentimento místico de que o fim de uma civilização pode ser uma libertação e, em seu sentido forte, o sinal de um renascimento. “Índice”, o que aponta para a continuidade de um vitalismo essencial!

Possível morte, uma ameaça vivida diariamente, uma realidade que não se pode negar, que não se pode mais negar, morte que inexoravelmente se é obrigado a contabilizar, essa morte, onipresente, recorda, em sua concretude, que é uma ordem das coisas que está chegando ao fim. O que é concreto, lembro: cum crescere, é o que “cresce com”, com um real irrefutável. E esse real é talvez realmente a morte dessa “ordem das coisas” que constituía o mundo moderno!

Morte do economismo dominante, dessa prevalência da infraestrutura econômica de origem marxista, causa e efeito de um materialismo míope. Além da “sociedade de consumação”, Jean Baudrillard mostrou claramente como toda a vida social era apenas um “espelho da produção”. O que é a redução de um estar-junto essencial a um “ser” que não poderia ser mais abstrato, apenas preocupado com o material que não dominamos mais. Não possuímos mais os objetos, somos possuídos por eles!

Morreu de uma concepção puramente individualista da existência. Certo, as elites defasadas continuam a emitir clichês do tipo “levando em conta o individualismo contemporâneo” e outras bobagens do gênero. Mas a angústia da finitude, finitude cuja realidade não pode mais ser escondida, encoraja, pelo contrário, a procurar ajuda mútua, compartilhamento, intercâmbio, voluntariado e outros valores do mesmo tipo que o materialismo moderno acreditava ultrapassados.

Mesmo “confinados” em seus apartamentos, é interessante notar que as canções patrióticas ou do repertório popular são  retomadas em comum. E isso para conjurar coletivamente a angústia própria do sentimento de finitude e, assim, expressar a solidariedade diante da morte.

Ainda mais flagrante, a crise sanitária marca a morte da globalização, o valor dominante de uma elite que, de todas as tendências, permanecem obcecadas por um mercado sem limites, sem fronteiras, onde, novamente, o objeto prevalece sobre a pessoa, o material sobre o espiritual.

Recordemos da expressão criteriosa do filósofo Georg Simmel, lembrando que o equilíbrio certo de toda a vida social é o ajuste que deve existir entre a “ponte e a porta”. A ponte necessária para os relacionamentos e a porta que coloca esses relacionamentos em perspectiva para alcançar uma harmonia que seja benéfica para todos.

Essa globalização excessiva, é difícil reconhecer, é a herança do Universalismo próprio da filosofia do Iluminismo do século XVIII. E a saturação de um tal estado de coisas valorizará o localismo. O que a Escola de Palo Alto, na Califórnia, chamou apropriadamente “proxemia”. Ou seja, a interação entre o ambiente natural e o ambiente social.

O que chamei de “Ecosofia”, sabedoria da casa comum, ou, em termos mais coloquiais, reconhece que “o lugar faz laço“. Tudo lembrando que, contra o leitmotiv marxista: “o ar da cidade te liberta”, a fórmula arquetípica de desenraizamento, o solo nativo recupera uma força e vigor inegáveis.            Enraizamento dinâmico, lembrando que, como qualquer planta, a planta humana precisa de raízes para poder crescer, com força, precisão e beleza! Assim, diante da morte, é lembrada a necessidade de solidariedade, própria de um “ideal comunitário”, que alguns continuam estigmatizando, taxando-a, tolamente, de “comunitarismo”.

Alguns? Quem são eles? Muito simplesmente aqueles que têm o poder de dizer e fazer e que continuam a defender, com unhas e dentes, o economicismo, o individualismo, a globalização e o materialismo.

A consanguinidade das elites é óbvia. A endogamia delas é mortal. Esse entre-si já não pode mais se manifestar nos clichês morais com os quais os oligarcas gargalham. Lugares-comuns escondendo mal o culto atávico ao dinheiro, sua ortodoxia economicista e sua celebração de uma escala de valores ultrapassada. Tudo isso graças a encantamentos: democracia, valores republicanos, secularismo, progressivismo etc.

Tudo isso é expresso em fórmulas incompreensíveis, que mentes afiadas e o bom senso popular reconehcem facilmente as ambiguidades e os círculos viciosos. Fórmulas estereotipadas que traduzem apenas a essência de suas práticas e a base de seu profundo desejo: a de “administração excessiva”, garantindo-lhes um poder insuperável sobre um povo indubitavelmente débil.

Elites que esqueceram que comandar é servir. O que traduz o ditado que melhor expressa a coesão social: regnare servire est. Em suma, o equilíbrio que deve existir entre a potência do instituinte e o poder do instituído, ou seja, instituições econômicas, políticas, sociais.

É porque elas não entendem que a morte diária, recordando de boa memória, assinala inevitavelmente que, com a morte da civilização moderna materialista,  ocorrerá o que o sociólogo Vilfredo Pareto corretamente chamou a “circulação das elites”.

Circulação que, com a ajuda da Internet, reconhece a morte da verticalidade do poder em favor da horizontalidade da potência societal. Como já disse muitas vezes, a pós-modernidade nada mais é do que a sinergia do arcaico e do desenvolvimento tecnológico. Outra maneira de dizer o retorno do compartilhamento, da troca, da solidariedade e de outros valores básicos e fundamentais que a paranóia das elites modernas acreditava, dialeticamente ajudando, poder “superar”.

A morte da civilização utilitária, onde o vínculo social é predominantemente mecânico, possibilita identificar o ressurgimento da solidariedade orgânica. Organicidade que o pensamento esotérico chama  “sinergia”. Isso que também foi bem analisado por Georges Dumézil, lembrando a interação e o equilíbrio existente, em determinados momentos, entre as “três funções sociais”: a função espiritual, fundando o político, o militar, o jurídico e culminando na solidariedade societal. Assim, além da superadministração desconectada do Real, é um holismo que vemos reaparecer hoje.

Mas levar em conta essa sinergia orgânica exige que saibamos como dizê-la com as palavras que tenham pertinência no tempo. É divertido, mas seria melhor dizer “dá pena”, ler vários editorialistas dizendo que a situação é dramática e algumas linhas adiante falando sobre seu aspecto trágico.

A fórmula de Platão – “fraude de palavras” –, ainda válida hoje, é o sinal inevitável de uma degenerescência completa. A concepção “dramática” é característica de uma elite que acredita poder encontrar uma solução oportuna para tudo. O “trágico”, pelo contrário, acomoda-se à morte. Ele sabe, desde o conhecimento incorporado, conhecimento própria da sabedoria popular, viver a experiência da morte cotidiana.

É assim que a crise sanitária que leva à morte individual é o sinal de uma crise civilizacional, a da morte do paradigma progressista que chegou ao seu fim. Talvez seja isso que faz que o ambiente trágico, vivido no cotidiano, longe de ser sombrio, consciente está de uma ressurreição em andamento. Aquele em que o estar-junto, o estar-com, no social visível, o espiritual invisível ocupará um lugar nobre.

 

 

 

 

 

[1] Michel Maffesoli. La Violence totalitaire (1979) in Après la modernité. Paris : CNRS Éditions, 2008.

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