Rio Grande do Norte, segunda-feira, 06 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 12 de maio de 2020

A estratégia do medo – Parte II

postado por Alyson Freire

Michel Maffesoli

Tradução Renan Souza

A socialidade ordinária

Auguste Comte, para caracterizar o estado da sociedade própria aos Tempos modernos, dizia judiciosamente reductio ad unum. O um do Universalismo, o um do progressismo, o um do Racionalismo, do Economicismo, do Consumismo etc. É contra esta unidade abstrata que a cólera troa, que a desconfiança aumenta. E é bem porque ela pressente que insurreições não tardarão a se manifestar que a Casta do poder, aquela dos políticos e de seus papagaios midiáticos, se emprega a suscitar o medo, a recusa do risco, a negação da finitude humana cuja forma acabada é a morte.

É para tentar frear, talvez quebrar, esta desconfiança difusa que a elite abandonada utiliza até ao caricatural os valores que fizeram o sucesso daquilo que chamarei de “burguesismo moderno”. Outra maneira de chamar o liberal mundialismo.

Aquilo que o Big Brother nomeia como “confinamento” não é nada além do individualismo epistemológico que, desde a Reforma protestante, fez o sucesso do “espírito do capitalismo” (Max Weber). “Gestos de barreira”, “distanciamento social” e outras expressões da mesma natureza não são nada mais do que aquilo que o estreito moralismo do século XIX chamava de “muro da vida privada” – ou ainda, cada um na sua, cada um por si.

Para dizer de uma maneira mais firme, tomando de empréstimo o termo de Stendhal, trata-se aí de um puro “egotismo”, forma exacerbada de um egoísmo esquecido de que o que funda a vida social é um “estar-junto” estrutural. Socialidade de base que a simbólica das varandas, na Itália, França ou Brasil, relembra da melhor forma.

A efervescência em gestação vai relembrar, com sabedoria, que um humanismo bem compreendido, isto é, um humanismo integral, repousa sobre um laço feito de solidariedade, de generosidade e de partilha. Eis o que é a encarnação do absoluto na vida diária. Não se pode mais estar, simplesmente, trancafiado na fortaleza de seu “domínio” (“chez soi”). Não existimos senão com o outro, pelo outro. Alteridade que a injunção do confinamento não cessa de esquecer.

A mascarada das máscaras

Divirtamo-nos com uma outra caricatura: a mascarada das máscaras.

Lembremo-nos que assim como a Reforma protestante foi um dos fundamentos da modernidade sob o aspecto religioso, Descartes o foi sob a dimensão filosófica. Quer estejam conscientes ou não, é sob sua égide que os detentores do progressismo desenvolvem suas teorias da emancipação, suas diversas transgressões dos limites e outras temáticas da liberação.

Descartes então, por prudência, anunciava que avançava mascarado (“larvato prodeo”). Mas aquilo que não passava de um elegante gracejo se tornou uma imperativa injunção graças à qual a elite pensa confortar seu poder. Retomada do antigo, e frequentemente deletério, theatrum mundi!

Nunca será por demais repetir que a degenerescência da cidade é correlativa da “teatrocracia”. Que é o próprio daqueles que Platão nomeia, no mito da caverna, “os mestres de marionetes” (República, VII). Estes são os mestres da palavra, apresentando maravilhas aos prisioneiros acorrentados no fundo de uma caverna. Esta maravilha de nossos dias será o fim de uma epidemia, se soubermos respeitar a pantomima generalizada: avançar mascarado. O espetacular generalizado.

Não era senão este o ponto que Guy Debord anunciava quando, após a “Sociedade do espetáculo” (1967), em um comentário ulterior, falava do “espetáculo integrado”. Sua tese, conhecida? Compreendida? É a alienação, isto é, torna-se estranho a si mesmo a partir do consumismo, e este graças ao espetáculo generalizado. O que resulta na generalização da falsidade: o verdadeiro é um momento do falso.

Na teatralidade da Casta política não há nada que vos seja sugestivo? O falso se apresenta mascarado como sendo um bem. O que Jean Baudrillard chamava de “simulacro” (1981); máscara do real, que mascara a profunda realidade do Real. O que Joseph de Maistre chamava a “reidade” (“réité”)!

Como aquilo que foi a série americana “Holocausto”, a máscara consiste em suscitar arrepios dissuasivos (nos nossos dias, o medo da epidemia, ou mesmo ainda da pandemia) como “boa consciência da catástrofe”. Na questão, implosão do economicismo dominante onde o valor de uso, tal como analisado por Aristóteles (Le politique ch. III, par 11), é substituído pelo valor de troca. É isto o que os mestres de marionetes, inconscientemente (eles são incultos em demasia) promovem. A máscara, símbolo de uma aparência, aqui a de proteção, não remete a nenhuma “reidade”, mas se apresenta como a realidade ela mesma.

A finitude humana

Para dar uma referência entre Platão e Baudrillard: não a encontraríamos no “divertimento” de Pascal? Esta busca por bens materiais, a apetência pelas atividades fúteis, o fazer saber antes que um saber autêntico, todas as coisas que, elementos de linguagem de apoio, constituem o essencial do discurso político e da lenga-lenga midiático. Todas as coisas exalando a mentira em pleno nariz e tentando ocultar que o que faz a grandeza da espécie humana é o reconhecimento e a aceitação da morte.

Pois para o Big Brother o “crime-pensamento” por excelência é o reconhecimento da finitude humana. Deste ponto de vista, o confinamento e a mascarada generalizada estão na linha reta do verdadeiro perigo de toda sociedade humana: a assepsia da vida social. Proteção generalizada, evacuação total das patologias transmissíveis, luta constante contra os germes patogênicos.

Esta “pasteurização” é, em muitos aspectos, completamente louvável. Quando se torna uma ideologia tecnocrática, ela não pode deixar de ser ela mesma patogênica – muito precisamente no que tem de negação desta estrutura essencial da existência humana: a finitude. O que resume Heidegger ao relembrar que “o ser é para a morte” (Sein zum Tode). Ao contrário da morte posta de lado, a morte deve ser assumida, ritualizada, mesmo homeopatizada. O que, em sua sabedoria, a tradição católica cristalizou fortemente ao prestar culto a “Nossa Senhora da Boa Morte”.

Uma comunhão necessária

Se compreendemos bem que, nos casos de cuidados prestados às pessoas contagiosas, os cuidadores observam todas as regras de higiene – máscara, distanciamento e proteções diversas – estas mesmas regras aplicadas urbi et orbi às pessoas suspeitas a priori de serem contaminantes não podem ser vividas senão como uma negação da animalidade da espécie humana. Reduzir todos os contatos, todas as trocas apenas às palavras, ainda mesmo palavras sufocadas por máscaras, é renunciar de alguma forma ao uso dos sentidos, à partilha dos sentidos, à socialidade que repousa no fato de estar em contato, de tocar o outro: abraços, carinhos e outras formas de tatilidade. E recusar a animalidade expõe o risco da bestialidade: as diversas violências intra-familiares pontuam o confinamento, como testemunham os relatos diversos.

O confinamento como negação do estar-junto, a mascarada como forma paroxística da teatralidade, tudo isto tenta, para assegurar a manutenção do poder economicista e político, fazer esquecer o senso do limite e a insuperável fragilidade humana. Em resumo, a aceitação do que Miguel de Unamuno chamava o “sentimento trágico da existência”.

É este sentimento que garante, na longa duração, a persistência do laço social. Sendo propriamente isto o fundamento da bonomia popular: solidariedade, assistência mútua, partilha, que a superadministração, própria à tecnocracia, é incapaz de compreender. É este sentimento igualmente que, além da ideologia progressista – cujo aspecto devastador é cada vez mais evidente –, tende a privilegiar uma marcha “progressiva”. Aquela do enraizamento, do localismo, do espaço que compartilhamos com os outros. Sabedoria ecosofista. Sabedoria atenta à importância dos limites aceitos e serenamente vividos. É tudo isto que permite compreender a misteriosa comunhão resultante das provas não-negadas, mas compartilhadas. Ela traduz a fecundidade espiritual, a exigência espiritual própria às novas gerações. O que exprime a imagem de Huysmans: “coalizão de cérebros, de uma fusão d’almas!”.

É esta comunhão que às vezes se exprime sob forma paroxística. As insurreições passadas ou futuras são sua expressão acabada. Nestes momentos, a mentira não faz mais sucesso. Quanto mais, ela retorna contra aqueles que a proferem. Não outra coisa revela Boccace em seu Decameron: “O enganador está frequentemente à mercê daquele que ele enganou.” Aceitemos seu augúrio.

 

 

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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