Rio Grande do Norte, terça-feira, 30 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 11 de maio de 2020

A estratégia do medo – Parte I

postado por Carta Potiguar

Michel Maffesoli

Tradução Renan Souza

Depois de meses, vivemos no medo. Mas a crise sanitária justifica que os contatos sociais sejam sufocados até este ponto entre os indivíduos? E que conclusão podemos tirar deste período de confinamento, do ponto de vista das relações humanas? Michel Maffesoli nos confere seu veredito.

Não é questão de dizer que a crise sanitária não existe: muitos de nós possuímos amigos que se foram, ou ainda pessoas próximas atingidas. Mas nossos lamentos e nossa tristeza não devem nos fazer esquecer que há uma crise mais ampla – crise civilizacional é o que há!

Nunca será demais repetir: “tudo é símbolo”. É preciso possuir a lucidez e a coragem de dizer, para empregar uma velha palavra francesa, o que “mostra” (monstre) este símbolo. Mesmo em seus aspectos monstruosos. Nos termos e parafraseando aquilo que diziam em seus tempos nossos amigos situacionistas, convém portanto estabelecer um “relato verídico” sobre o mundialismo liberal.

Por que os milionários são filantrópicos?

Posso fazê-lo, primeiramente, de uma maneira anedótica. Mas lembrando que em seu sentido etimológico, “an-ekdotos”, é aquilo não publicado, ou aquilo que não queremos tornar público. Mas que, para os espíritos agudos, não deixa de ter importância! Poderíamos então colocar esta questão: por que os milionários fazem filantropia? Pois, o sabemos, existe entre eles uma estreita ligação entre sua moral e sua conta bancária.

Bill Gates, preocupado pelo “coronavírus”, financia largamente a OMS. Sem esquecer sua generosidade para fazê-lo notório. Assim, na França, este jornal “de referência” que é o Le Monde, esquecendo sua lendária deontologia, aceita, em troca de dinheiro vivo, que o magnata em questão publique um artigo para explicar suas generosas preocupações acerca do Covid-19.

Um tal fato está longe de ser isolado. Aqueles que detêm o poder econômico, político, jornalístico, sentindo – para retomar o título de George Orwell – seu “1984” ameaçado, tentam, na sua nowlangue habitual, fazer esquecer que sua preocupação é, simplesmente, a manutenção da nova ordem mundial da qual são os protagonistas essenciais. E, para isto, eles exageram, até à exaustão, o pânico de uma pandemia galopante. Para retomar um termo de Heidegger (“Machenschaft”), eles praticam a manobra, a manipulação do medo.

A imperícia do poder tecnocrático

Havia, com efeito, duas estratégias possíveis: aquela do confinamento tem por objetivo a proteção de cada um, evitando ao máximo muitas contaminações que desencadeariam uma sobrecarga nos serviços de reanimação acolhendo os casos graves. Proteção organizada por um Estado autoritário e com a ajuda de sanções, uma espécie de segurança sanitária obrigatória. Estratégia fundada nos cálculos estatísticos e probabilísticos dos epidemiologistas. Segundo o adágio moderno, é científico apenas o que é mensurável. Outra estratégia, esta médica (a medicina é um saber empírico, uma arte, não uma Ciência; em todo caso é fundada sobre a clínica (experiência) e não unicamente sobre a mesura): detectar, tratar, colocar em quarentena as pessoas contaminantes para proteger os outros. Estratégia altruísta.

Certamente, a imperícia de um poder tecnocrático e economicista privou a França dos instrumentos necessários à estratégia médica (testes, máscaras); certamente, a organização centralizada e estatal não permite tais estratégias essencialmente locais e diversificadas. Mas uma tal estratégia traduz também a desconfiança generalizada do poder, políticos e altos funcionários, em relação ao “povo”. Proteger as pessoas mesmo contra sua vontade, em detrimento dos grandes valores fundadores da socialidade: o acompanhamento dos moribundos; a homenagem aos mortos; os encontros religiosos de diversas ordens; a expressão cotidiana da amizade, da afeição. O confinamento é fundado sobre o medo mútuo, e a saída do confinamento será enquadrada por regras de “distanciamento social” fundadas sobre a suspeita e o medo.

 A estratégia do medo

Fazer medo para salvar um mundo em decadência! Fazer medo a fim de evitar as insurreições, das quais se pode dizer, sem bancar o profeta, que não tardarão em se multiplicar um pouco por todo o mundo. Não esqueçamos que, na França, o confinamento sucedeu a dois anos seguidos de revolta dos Coletes amarelos contra a tecnocrática e liberal reforma das aposentadorias. Imaginamos o ódio ao “populo” que anima nossas elites! Mas o espírito de revolta permeia o ar do tempo. Ortega y Gasset, em La Révolte des masses, falava, acerca disto, de um “imperativo atmosférico”. Este imperativo, de nossos dias, é aquele da revolução, se a compreendermos em seu sentido primeiro: revolvere, fazer retornar o que a ideologia progressista se incumbiu de superar. Retornar a um “estar-junto” tradicional e enraizado.

É contra um tal imperativo, o retorno a uma ordem das coisas bem mais natural, que as diversas elites se põem a atiçar o medo – fazer perdurar os valores sociais que foram os dos “tempos modernos”. Para dizer sucintamente: emergência de um individualismo epistemológico, e este graças a um racionalismo generalizado, base de um progressismo salvador.

São, com efeito, estes valores que engendram o que meu saudoso amigo Jean Baudrillard chamou de a “sociedade de consumo”, causa e efeito de um universalismo próprio à filosofia das Luzes (século XVIII), cuja “mundialização” é o resultado acabado. O todo culminando numa sociedade perfeita – poderíamos dizer “trans-humanista” – onde o mal, a doença, a morte e outras “disfunções” teriam sido ultrapassadas.

O cientismo

Eis bem o que uma enfermidade sazonal erigida em pandemia mundial se põe a mascarar. Mas é certo que as hipóteses, análises, prognósticos etc., sobre o “mundo de depois” significam bem que o que está em curso é uma verdadeira mudança de paradigma que a cegueira das elites no poder não chega a ocultar. De fato, as mentiras, os vãos discursos e os sofismas possuem cada vez menos apelo. “O rei está nu”, e isto começa a ser dito cada vez mais. Diante do que é evidente – a falência de um mundo obsoleto – as evidências teóricas das elites não fazem mais sucesso.

Diante desta desconfiança crescente, este “nós” (on) indefinido caracterizando a Casta no poder agita o para-vento científico – talvez valha mais a pena dizer, para retomar o termo de Orwell: ela se põe a utilizar a nowlangue cientista.

Revestindo o hábito da ciência, e mimicando os cientistas, o “cientismo” é a forma contemporânea da crença beata própria ao dogmatismo religioso. Os espíritos esfumaçados, possuindo o monopólio do discurso público, são os crentes dogmáticos do mito do Progresso, da necessidade da mundialização, da prevalência da economia e de outros encantamentos da mesma sorte.

Trata-se aí de um positivismo estreito que, como lembra Charles Péguy, não é senão uma redução medíocre do grande “positivismo místico” de Auguste Comte. A consequência deste positivismo estreito é o materialismo sem horizonte que foi a marca por excelência da modernidade. Materialismo brutal que não chega a encobrir os discursos grandiloquentes, adocicados, empáticos ou simplesmente frívolos próprios ao poder político e às “mídias mainstream” (verdadeiro Ministério da Propaganda) que lhe servem a sopa.[1]

É porque ele não é enraizado na experiência coletiva que o “cientista” é reconhecido na sucessão de mentiras proferidas a qualquer um. O exemplo das sinceridades sucessivas a propósito das máscaras ou dos testes é, neste aspecto, exemplar. Mas estas mentiras pretensamente científicas são antípodas daquilo que é uma autêntica ciência.

Lembremos da concepção de Aristóteles. Ter ciência de uma coisa é possuir dela um conhecimento seguro. Significa que consiste em mostrar em que esta coisa é assim e não de outra maneira. É bem isto o que esquece o “cientismo” de que se armam as elites políticas e os diversos experts midiáticos que transformam a crise sanitária em verdadeira fantasia. E isto com o fim de “segurar” o povo e de confortar sua submissão.

O povo-infantil

Assim fazendo, este “nós” (on) anônimo que é o Big Brother estatal não faz ciência. Ele se serve da ciência para objetivos políticos ou econômicos: manutenção do consumismo, adoração do “bezerro de ouro do materialismo”, persistência do economicismo próprio à modernidade. É isto que proferem, ad nauseam, aqueles que L. F. Céline nomeava, belamente, os “rebobinadores de excrementosas tolices” (“rabâcheurs d’étronimes sottises”); encarregados de reformatar não importa qual “quidam” servindo-lhe, a cada instante, a sopa do bem-pensar.[1] E isto com o fim de mantê-lo em uma “reificação” objetal, que é o objetivo da crise sanitária transformada em uma fantasia cada vez mais invasiva. Pois, para retomar a imagem do Big Brother e do psitacismo dominante, trata-se de infantilizar o povo. Repetir, mecanicamente, as palavras vazias de sentido, que até mesmo os que as empregam não as compreendem, ou as compreendem erroneamente.

Considerar o povo como uma criança incapaz de tomar boas decisões, incapaz de julgar ou de discernir o que é bom para ele e para a coletividade: eis bem a própria essência da “populophobie” característica das elites em falência.

Em falência, pois uma elite é legitima quando se encontra enxertada na sabedoria popular. É o que exprime o adágio: ”omnis auctoritas ad populo”. E falar, fartamente, de “populismo” é o sinal de que o enxerto não agarrou, ou não existe mais. Esquecendo aquilo que eu, em seu tempo, nomeei como “centralidade subterrânea”, própria da potência do povo, não podemos mais reter a pressão interior da seiva vital. O que é a ciência autêntica: ter um conhecimento essencial da realidade substancial, aquela da vida cotidiana.

Os tecnocratas

É disto que são incapazes de fazer os falsos sábios e os verdadeiros sofistas que desnaturalizam a razão autêntica, esta apoiando-se sobre o sensível, isto é, sobre o que é Real. Falar de populismo é não saber nada da bonomia do povo, nada compreender de sua “popularidade”.

O sinal mais evidente desta desconexão é quando se ouve o atual locatário do Élysée falar com condescendência das manifestações, como aquelas do Primeiro de Maio, como sendo o feito de “contenciosos” (“chamailleurs”) que se deve tolerar. Sendo entendido, subentendido, que estes contenciosos não devem em nada perturbar o trabalho sério e racional da tecnocracia no poder.

Tecnocracia incapaz de ser atenciosa à voz do instinto. Voz da memória coletiva, amontoada desde não sabemos quando nem por quê. Mas memória imemorial, aquela da sociedade oficiosa, devendo servir de fundamento à efêmera sociedade oficial, dos poderes.

Esta voz do instinto tinha, de longa tradição, guiado a busca do Absoluto. E isso de algum nome que se lhe atribua. A encarnação do absoluto sendo aquilo que podemos chamar, depois de meu mestre Gilbert Durand, uma “estrutura antropológica” essencial. E é esta busca que a modernidade se incumbiu de negar vulgarizando-a, profanando-a em um mito do Progresso no racionalismo mórbido e no materialismo mais estreito possível, de onde saíram o consumismo e o mundialismo liberal.

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[1] Cf. Michel Maffesoli, La force de l’imaginaireéd. Liber, 2019, ch. 3 : « Sciences incertaines », p. 35 et M. Maffesoli et Hélène Strohl, La faillite des élitesCerf, 2019. (N.A)

[1] “Servir la soupe”, expressão popular francesa que remete a “se mostrar agradável, generoso, complacente; satisfazer”. (N.T)

Imagens:

Mehdi Taamallah/NurPhoto via Getty Images

Marco Sabadin/ AFP.

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