Rio Grande do Norte, quarta-feira, 01 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de setembro de 2010

O caso do “Buraco da Catita”: A Volta à barbárie?

postado por David Rêgo

Quase sempre vou ao chorinho. Não gosto da musica pra falar a verdade (é, dizem que é boa, mas não sou do tipo de fingido pra dizer que gosto do que não gosto pra me passar por cult, não gosto nem de chorinho nem de Chico Buarque etc.), freqüento mais para ver bons amigos, é incrível a quantidade de pessoas incríveis por metro quadrado que reúnem-se habitualmente no local. Bem, mas não é disto que ia falar.
Ocorre que, como muitos devem ter tomado conhecimento, o pacífico ambiente do Buraco da Catita foi assolado pelo mal da violência urbana. Duas pessoas foram assassinadas e uma outra saiu ferida. Assim que vi a notícia também fiquei chocado, estou ali quase toda Sexta-Feira, poderia ter sido comigo ou com algum ente querido. Não o foi. Passado o lado emotivo, voltamos a raciocinar com clareza.
Estava lendo as notícias e os comentários (obviamente a parte mais interessante) e o que mais aparecia era a idéia de que nós estaríamos “voltando à barbárie”. A primeira pergunta que se me veio à cabeça foi: Nós quem? Quem está voltando à barbárie? Perguntam-se: O que estaria acontecendo?
Voltei a relembrar de textos que li a respeito da barbárie e dos casos que tomei conhecimento como, por exemplo, um rapaz ter os olhos perfurados, após isto ser colocado em cima de um cavalo para que seus carrascos brincassem de tiro ao alvo. Parece coisa do Oriente – médio né? Aquelas coisas que a gente vê na televisão etc.
Mas é não, é Guarapes, Natal-Rn. E não é de hoje que acontecem coisas do tipo (ou piores). Com isto não quero dizer que é normal e comum que as pessoas saiam matando umas às outras e que temos mais que nos acostumar. Não se trata disto.O que precisamos é evidenciar uma classe de pessoas que nunca conseguiu superar o estágio que chamamos de barbárie. O que precisa ser evidenciado é que temos pessoas vivendo com a expectativa de vida igual (ou inferior) à idade-média (em algumas favelas a média de vida dos homens não atinge os 25 anos…. por essas e outras o jovens tem filhos tão cedo, aos 15, 16 ou 17 já estão no final de suas vidas). Este grupo de pessoas nunca saiu deste estágio, assim sendo, seria impossível de se pensar uma “volta à barbárie”.
Mas ora! O que tem ocorrido é nada mais, nada menos, do que a globalização da violência. As metrópoles, para serem metrópoles, precisam oferecer serviços coletivos mínimos como transporte urbano de massas à preço acessível. E este aspecto é fundamental de se ressaltar. Agora essa massa de Hunos, Visigodos e Lombardos podem invadir nossos feudos com a mesma facilidade de levantar um polegar. Com pouco dinheiro eles podem sair de um canto da cidade à outro em poucos instantes. A violência agora não está mais restrita unicamente aos bairros onde não se ensina a civilidade. Há algo de bom em tudo isso. As relações sociais passam a ficar mais claras e cada qual passa a sofrer as conseqüências de seus atos de forma mais direta. Agora as classes-médias e altas começam a perceber o monstro que criaram.

Temos que parar com conto de fadas para adultos. Não existem pessoas más, com índoles perversas ou qualquer tipo de “gene da maldade”. O que define a personalidade humana é sua educação, o ambiente em que é criado e os valores morais que incorpora. Assim sendo, bem sabemos que o Brasil possui uma massa de miseráveis e desqualificados residindo sempre nas periferias das grandes cidades e que é justamente neste ambiente que crescem as maiores mazelas do Brasil. Pessoas que vivem literalmente à margem, sem escolas (e sem elas, obviamente, o processo de incorporar os valores humanistas da atualidade é bastante difícil, tendo em vista que a justiça ou os valores não são lógicos ou algo natural ao qual atingiríamos por pura dedução lógica, os valores são aprendidos socialmente, fato é que foram muitas as boas almas criadas durante a escravidão e viam tal fato com naturalidade), sem serviços como saúde etc. e o pior de tudo: sem pessoas que olhem para esses miseráveis e desqualificados como gente. Qualquer um que já tomou para si a tarefa de educar um pequeno humano viu o quanto é importante o elogio ou o simples fato de observar o que fazem, seja um desenho, uma dança ou uma música. Qualquer indivíduo que cresce sem estes “detalhes” terá sérios riscos de sentir-se inseguro no mundo e não ser socializado como deveria, não aprendendo devidamente os valores sobre os quais nos sustentamos. O fato é que existem muitos humanos que não recebem tal educação. Os motivos são vários. Um deles, culpa nossa, pelo fato de suas mães passarem o dia trabalhando em nossas casas como empregadas domésticas e não tendo tempo para educar devidamente seus filhos, pois passam o dia em nossas residências cuidando dos nossos filhos e de nós mesmos.
Tudo bem, também passei a infância com meu pai longe, trabalhando em outra cidade… Se eu fosse retardado eu poderia dizer que no meu caso foi até pior, pois só via meu pai nos fins de semana e minha mãe trabalhava na polícia em turnos de 24 horas…. Porém! Eles podiam pagar para me manter em uma ótima escola, para me dar acesso à arte, diversão, tecnologia etc.

Alguém aqui conhece quem pague um salário a uma empregada doméstica que dê condições de pagar uma boa escola para seus filhos? Depois disso, ainda dizemos que não sabemos de onde vem tanta violência. De nós mesmos, os bárbaros, que mantemos um grande grupo de pessoas relegadas à viver como animais, com rações mais baratas que a dos próprios bichos (e o falo sério, crio gato e sei o quanto gasto mensalmente com as rações). Esta massa de miseráveis que observam seus filhos transformarem-se em bandidos são justamente aqueles homens e mulheres que constroem nossas casas, nos vigiam enquanto dormimos, fazem nossas comidas e cuidam dos nossos filhos…
E olhem que injustiça: Eles são bárbaros, pois seus filhos foram sacrificados para que pudéssemos criar devidamente os nossos.
Enfim, para que a classe-média não se espante com os frutos dos seus próprios valores e passem a levar mais a sério quando pensam por ai em aumentar o salário mínimo para R$ 1.200 (daí vem alguém e diz que o Estado não pode bancar… Beleza campeão, então deixa o Estado bancando os custos da violência que deve ser bem mais inteligente e barato), garantir renda mínima (que já foi aprovada e já é lei, apenas não tem data para entrar em vigor – curioso não?), reforma-agrária entre tantos outros projetos que visam tornar os bárbaros mais humanos…
Mas não, a classe-média sempre diz que os cofres públicos não podem…
Então me responde, faz como pra corrigir? Me diz ai… A resposta em parte eu já sei, nas entrelinhas todos já dizem: “Só vai matando”. Né não?

Sabe o que é pior de tudo? Vai ter gente que vai ler e sair dizendo por ai que temos que acabar com transporte público para diminuir a violência..

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

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