Rio Grande do Norte, sexta-feira, 03 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 23 de fevereiro de 2012

HOMO CONCURSEIRUS

postado por Daniel Menezes

Faria uma boa análise sociológica quem se debruçasse sobre os livros de auto ajuda que educam para passar em concursos públicos. Carregados de pregação moral e frases de ordem, este tipo de literatura não tem a pretensão, apenas, de ensinar como os concursandos devem estudar. Há todo um modo de vida que é (im) exposto.

A tônica é sempre a da disciplina e da memorização. Os alunos são incentivados a refazerem suas práticas em favor de uma rotina completamente voltada para a apreensão daquilo que é necessário para ser aprovado em uma seleção para ocupar um cargo no Estado. Porém, a reflexão, quase que via de regra, é deixada de lado. “Só estude o que interessa”, diz o autor de um livro da área. A ideia de formação se resume, neste sentido, a um programa de um edital. Como me disse certa vez um amigo: “para ser juiz não preciso saber aonde fica o Chile”.

A capacidade de estabelecer uma relação crítica com o assunto é quase que completamente apagada. O código da lei do servidor, sempre presente no conteúdo das seleções, é lido sem a menor pretensão de questionar qual o tipo de relação trabalhista que ele expressa. Reter as informações “relevantes”, com todo o viés do que implica algo relevante neste contexto, é o que importa.

Passar em um concurso público significa, praticamente, ir para o céu. “Nunca desista” é o conselho dado por todos os autores da área, como se a pessoa, ao direcionar sua vida para os concursos, entrasse em um processo de peregrinação religiosa. Aprovação implica superioridade moral. Expressão da perseverança. Mudar o foco profissional demonstra fraqueza da alma, uma incapacidade de atravessar o purgatório. Uma pessoa de pouca fé.

Além de movimentar um mercado que duplica de tamanho a cada ano, a literatura de auto-ajuda para concurso gera um indivíduo incapaz de criticar. Só as conexões das questões dos exames importam. As chamadas pegadinhas são os perigos para a “alma pura”. A ideia é criar um indivíduo burocrático preso a uma lógica que é ditada pelas organizadoras de concursos públicos – nada de namoros empolgantes, de amizades profundas e do ócio produtivo. Como um evangélico recém-convertido, tudo que não diz respeito aos concursos pode tirar o concursando do justo caminho e levá-lo ao inferno que a não aprovação representa.

O conhecimento sem substância só privilegia às bordas, indivíduos atomizados carregados pelo desejo de atingir altos salários e cômodas jornadas de trabalho. Não a toa os livros de auto ajuda da área pintam o paraíso como o indivíduo saindo cedo do trabalho, carregado de símbolos da bonança financeira (geralmente um bom carro) e indo para a praia surfar diante de um belo sol de início de tarde.

É este modelo de homem que irá mudar a sociedade? Movimentar as atividades de estado? Servir ao público? O sonho de ingressar em uma carreira de estado, pelo modo como é alimentado pela indústria cultural concurseira, destrói as possibilidades de construir uma sociedade diferente. É o projeto político de um homem egoísta, que não entende (e não quer compreender) o papel que irá desempenhar na sociedade. Desafio para ele? Só o de se superar e passar numa seleção ainda mais difícil..

Daniel Menezes

Cientista Político. Doutor em ciências sociais (UFRN). Professor substituto da UFRN. Diretor do Instituto Seta de Pesquisas de opinião e Eleitoral. Autor do Livro: pesquisa de opinião e eleitoral: teoria e prática. Editor da Revista Carta Potiguar. Twitter: @DanielMenezesCP Email: dmcartapotiguar@gmail.com

7 Responses

  1. Victor disse:

    Nos EUA e na Europa, os genios são aqueles empreendedores que mudam o mundo.
    No Brasil, é quem passa em concurso publico pra ser mais um na aristocracia estatal.

  2. Convidado disse:

    Excelente texto! Parabens…

  3. Daniel Menezes disse:

    Obrigado convidado… Elogios nos fazem continuar. As críticas também são motivadoras… Servem para mostrar o que precisamos melhorar.

  4. Daniel Menezes disse:

    Victor,

    cresce no país uma crítica ao modo como os concursos são produzidos. Não se questiona a ideia de seleção, que se vale do princípio da imparcialidade, que é fundamental.
    O que se critica é o formato… Ou seja, a maneira como as pessoas são arregimentadas para os cargos estatais.
    Hoje, por exemplo, eu posso não ter a mínimo vocação, mas se me sair bem nas provas de direito, raciocínio lógico e outras mais secundárias, o estado me dará uma arma para sair andando por aí. 
    O problema do concurso público é que ele não se preocupa em medir a “vocação” da pessoa para o cargo.
    Com isso, o estado perde em qualidade na prestação de serviço, já que, de vez enquando, produz “desvios de funções” e gasta dinheiro com absenteísmo e rotatividade.

  5. Paulo Emílio disse:

    Eu tenho ódio de concurso público. Além de todos o “quesitos” que você colocou, ainda tem as manobras políticas-partidária que fazem barrar qualquer “boa vontade” de um funcionário.

    O setor privado, por sua vez, ainda precisa melhorar e muito se quiser “reverter” esse quadro. A elite empresarial (principalmente daqui de Natal) ainda acha que devem tratar funcionário como escravo. Um povo analfabeto funcional que acha que para mandar só precisa ter dinheiro. Depois que fali, reclama: “culpa dos impostos”.  

  6. Igara Dantas disse:

    Porque os gênios, em outros países, inventam coisas que mudam os rumos da humanidade. Os gênios brasileiros passam em concurso público.

  7. Endyara disse:

    Acho tudo isso verdade. Mas enquanto as empresas privadas estiverem desdenhando e “cuspindo na cara” de quem quer trabalhar, isso não irá mudar. Diferente do cargo público, que você pode mandar seu chefe ir para à China, mas com a menor consequência de ser “apenas” transferido para outro local. Quando houver respeito e reconhecimento em empresas privadas, talvez isso mude.

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