Rio Grande do Norte, terça-feira, 07 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 6 de maio de 2012

“O crack destruiu meu pai”

postado por Daniel Menezes

Gostaria de apresentar a matéria publicada abaixo para o Jota Mombaça, que é colunista do portal Substantivo Plural, e afirmou que o crack é droga de pobre.

Imagem: Wikipedia Commons

Esta visão acaba, ainda que não seja sua real intenção, por atribuir àqueles “que chegaram ao fundo do poço”, nas palavras aparentemente críticas do Mombaça, o uso exclusivo de uma droga, que é considerada extremamente degradante.

Na prática – Mombaça não viu as consequências da sua afirmação porque repete irrefletidamente o que é comumente dito pela mídia, em especial, a televisiva -, um jeito de criminalizar os pobres e “salvar” a pele dos ricos e da classe média, como se a pobreza fosse critério de “fraqueza” para cair no mundo do crack – “a droga do fundo do poço”.

Mombaça, além disso, cria uma oposição sem a menor validade sociológica. Ele estabelece uma cisão valorativa entre aqueles que usam drogas de modo criativo nas universidades X aqueles que chegaram ao “fundo do poço”. Mas quem? Pobres e usuários de crack (ver texto: https://www.cartapotiguar.com.br/2012/05/05/desaforo-para-a-carta-potiguar-os-intelectuais-e-a-producao-de-miseria/).

Penso ser mais crível defender que a droga (álcool, maconha, cocaína, crack, ácidos, anfetaminas, gás de geladeira, gelol, aromatizadores de ar, cola de sapateiro, etc) pode levar qualquer pessoa para o “fundo do poço”, independentemente da classe social.

Não se trata de proibir o uso. A ideia é defender uma “pedagogia” que trate do assunto de modo aberto e sem subterfúgios para que o usuário tenha a real consciência, sem auto-ilusões, das possibilidades e limites que às drogas trazem, até para conseguir se relacionar melhor com elas.

Se possível, veja este texto depois também: “Drogas: em busca de um salto civilizatório”: http://bit.ly/Ix3EGc

Do IG

“O crack destruiu meu pai”

Herdeira de uma família de empresários cariocas, Isabella Lemos de Moraes prepara livro sobre a dependência química do pai

Flavia Salme, iG Rio | 23/02/2011

Imagem: Isabela Kassow

Isabella Lemos de Moraes decidiu contar em livro como sua família lidou com a dependência química do pai, que foi viciado em crack.

“Desde os anos 70 o crack é uma droga do high society. Só que ninguém fala.” A afirmação é de Isabella Lemos de Moraes, filha mais velha de João Flávio Lemos de Moraes, um dos herdeiros do outrora poderoso grupo Supergasbras, onde chegou a ocupar o posto de vice-presidente do Conselho de Administração. Em entrevista ao iG, sua filha detalha agora o drama familiar: durante sua adolescência e juventude, Isabella viu o pai virar dependente químico e, mais tarde, ser diagnosticado com transtorno bipolar.

“O crack destruiu meu pai, e minha família também adoeceu”, diz Isabella, a mais velha de quatro filhos do empresário (há quatro anos, a família descobriu que João Flávio teve uma filha, Hailey, de 18 anos, nos Estados Unidos, em uma relação extraconjugal). Ela planeja organizar um livro contando os dramas e as histórias de superação da sua família, conforme antecipou a colunista Lu Lacerda .

A ideia, segundo Isabella, surgiu em 1990 quando ela leu “Little Girl Lost”, a autobiografia da atriz norte-aricana Drew Barrymore sobre a dependência de álcool e droga. Isabella afirma que nunca usou drogas, mas viu seus dramas mais íntimos relatados no livro da atriz. Desde então, quis compartilhar sua experiência, mas só agora – após dois anos ininterruptos de análise – começa a elaborar tudo o que viveu.

A família de Isabella ficou conhecida graças ao império Supergasbras Distribuidora de Gás S/A, fundado por seu avô Wilson Lemos de Moraes, que faleceu no ano passado. O clã alienou a empresa em 2004, quando passou a se dedicar à parceria com a montadora Scania, de quem é representante para a América Latina. Os Lemos de Moraes também atuam no agronegócio, com fazendas de café e criando gado para corte.

“Na alta sociedade tem muita gente usando crack e a família não fala porque parece ser aquela droga suja, de rua”

Nas décadas de 1970 e 1980, João Flávio foi um personagem conhecido da sociedade carioca. Foi repetidas vezes mote de reportagens da extinta revista Manchete, homenageado especial no programa “Boa Noite, Brasil”, de Flávio Cavalcanti e amigo de Roberto Carlos, que se tornou padrinho de seu filho João Flávio Lemos de Moraes Filho. Colunas sociais da época o tratavam como o “Alain Delon” brasileiro, em referência à beleza e ao poder de sedução do famoso ator francês.

Nos anos 1980, João Flávio se mudou com a família para Los Angeles (EUA). “Foi lá, aos 10 anos, que descobri que meu pai era viciado”, conta Isabella. A partir daí, segundo ela, a família passou a acumular uma série de histórias tristes que ela pretende compartilhar no livro que prepara, para “contar casos de superação”. Ela própria sofreu crises de anorexia e bulimia, e hoje entende isso como um pedido de socorro de uma jovem diante de uma família que também adoeceu com a dependência química do pai.

Procurado por e-mail e por telefone, João Flávio – livre das drogas há cerca de 5 anos – nada comentou sobre a decisão da filha de relatar em livro as histórias da família. Isabella diz que será cautelosa na edição: “Minha família vai ler tudo antes. A ideia não é expor ninguém, mas contar como um ambiente com drogas pode ser muito ruim para todos os que vivem nele”, explica. “Quero que minha história possa ajudar outras pessoas, assim como o livro da Drew Barrymore me ajudou”, diz.

Aos 35 anos, ela cursa o quarto período de jornalismo na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Isabella é mãe de um adolescente de 15 anos e atualmente está solteira. Seu maior projeto no momento é se dedicar à profissão escolhida. “Quero escrever uma coluna em revista, sobre coisas que possam ajudar as pessoas”, diz. A seguir, a entrevista de Isabella ao iG:

iG: Não teme que o livro cause desconfortos?
Isabella Lemos de Moraes: Na alta sociedade tem muita gente usando crack e a família não fala porque parece ser aquela droga suja, de rua, pesada. Os que enfrentam esse problema na família costumam dizer que a internação ‘foi por causa de cocaína’. Não é nada, é crack! Desde os anos 70 o crack é uma droga do high society. Só que ninguém fala. Quanto mais as famílias escondem, pior para a sociedade e para quem está usando. O livro não tem o objetivo de prejudicar ninguém, muito menos meu pai, que eu amo. Quero que ele possa ajudar a pessoas que passam pelo mesmo problema que eu passei em casa e que até hoje tem reflexos na minha vida pessoal.

iG: Seu pai foi dependente de crack?
Isabella: Foi, isso o destruiu. Tem que ter uma campanha muito forte, é um caminho quase sem volta. E meu pai, além disso, tem uma doença psiquiátrica. Ele é bipolar. Também quero chamar a atenção para essa doença, que é séria, e que atinge todas as classes sociais. Eu vivi um inferno. Eu e meus irmãos. Minha mãe ficou 25 anos casada com meu pai. Foi horrível. Todos ficamos cheios de traumas, mas estamos conseguindo superar.

iG: Quando você descobriu que seu pai usava drogas?
Isabella: Aos 10 anos. Tive muita dificuldade de aceitar, eu não sabia direito o que estava acontecendo e menos ainda como lidar com a situação. Nós éramos muito agarrados e, de repente, o comportamento dele mudou. Ele começou a ficar agressivo.

iG: Alguma história te marcou mais neste período?
Isabella: Uma vez, numa alucinação muito grande, em Los Angeles, ele sumiu com meus irmãos, que então tinham 13, 11 e 9 anos. Eu tinha uns 17. Ele achava que eu e minha mãe iríamos tirar os filhos dele, porque ele sabia que estava fazendo coisas inadequadas dentro de casa. A gente deu queixa, e a polícia foi atrás do meu pai. Ele foi pego com uma quantidade enorme de drogas, o que permitiu que a prisão fosse tipificada como tráfico. Um de meus irmãos, que já usava cocaína, teve uma overdose. De uma só vez, vi meu pai ser preso, um irmão ser internado e os outros dois levados para um abrigo, pois, diante disso tudo, minha mãe também passou a ser observada pela polícia. Eles queriam ver se ela era apta a ter a guarda dos filhos. Foi horrível.

iG: Seu pai usava drogas e tinha alucinações na frente dos filhos?
Isabella: Sim, muitas vezes. Ele cismava que conversava com Elvis Presley, por exemplo. Às vezes ficava muito agressivo, eram gritos, brigas infindas. Mas quando ele estava bem, voltava a ser a melhor pessoa do mundo. Eu sinto falta de ter tido um pai mais participativo. Mas a doença dele, a bipolaridade, também ajudou muito nisso tudo.

iG: Você batizou seu filho de João Flávio como forma de homenagear seu pai?
Isabella: Há 15 anos, quando engravidei, eu achava que batizar meu filho com o nome dele era uma forma de mexer com seus sentimentos e convencê-lo a deixar as drogas. Isso era uma ilusão, mas eu achava que podia ajudá-lo. Eu não tinha a consciência que tenho hoje em dia. Hoje eu entendo que ele não fazia nada de sacanagem, mas eu sofria muito com aquilo. Ainda sofro.

iG: Você menciona muito que ficou traumatizada…
Isabella: Eu sentia muito medo. Tive e ainda tenho sérios problemas de autoestima. Aos 17 anos enfrentei a anorexia e a bulimia. E claro que isso tudo tem um porquê. Era uma forma de pedir socorro, de falar “olhem para mim, quem está doente agora sou eu”. Claro que hoje digo isso conscientemente, na época não era.

iG: Você e seu pai já conversaram sobre como ele entrou nessa?
Isabella: Ele alega dois motivos. O primeiro foi o pai dele ter adoecido logo que a gente chegou aos Estados Unidos. Diz que entrou numa depressão muito grande. O segundo era a timidez. Ele era muito requisitado, tinha de estar em festas, em eventos públicos, programas de TV, e alega que a droga o ajudou a vencer a timidez. Curioso é que até os 30 anos meu pai nem álcool bebia. Ele já começou com cocaína, e adoeceu muito rapidamente. A droga o consumiu de uma forma avassaladora. E quando juntou a doença psiquiátrica com a droga, ele não conseguiu sair. Faltou ajuda especializada.

iG: Era vergonha de admitir que ele havia se tornado um dependente químico? Ser de uma família rica e popular atrapalhou?
Isabella: Acho que a vergonha atrapalhou muito. E também acho que o dinheiro pode ter atrapalhado, no sentido de que se imagina que ele resolve tudo. Acho que se meu pai tivesse recebido menos dinheiro, se tivessem passado menos a mão na cabeça dele, se tivessem encarado o problema de frente, com o tratamento certo, com limites – e aí incluo a postura da minha mãe, que deveria ter se separado antes –, talvez tivesse tido jeito. No nosso caso, a maneira como o dinheiro foi usado atrapalhou, sim.

iG: E você nunca usou drogas?
Isabella: Eu peguei trauma de droga. Como contei, ainda tive um irmão que se envolveu com drogas muito precocemente e, claro, pelo acesso à droga que havia em casa. Minha mãe sofreu muito.

iG: Como seu pai reagiu quando soube da sua intenção de escrever o livro?
Isabella: No começo ele teve um pouco de dificuldade, reclamou da exposição. Mas além de todo mundo saber que ele foi usuário de drogas, ele mesmo já participou de uma campanha contra as drogas. Isso não é novidade para ninguém. A novidade é mostrar como eu, minha mãe e todos os meus irmãos passamos por isso. Não é a história de João Flávio Lemos de Morais. É a história de uma família que tem como um de seus integrantes um dependente químico. E ele não tem culpa de nada. O que aconteceu foi por causa das drogas e dos tratamentos equivocados que ele recebeu.

 

 


Daniel Menezes

Cientista Político. Doutor em ciências sociais (UFRN). Professor substituto da UFRN. Diretor do Instituto Seta de Pesquisas de opinião e Eleitoral. Autor do Livro: pesquisa de opinião e eleitoral: teoria e prática. Editor da Revista Carta Potiguar. Twitter: @DanielMenezesCP Email: dmcartapotiguar@gmail.com

2 Responses

  1. Jota Mombaça disse:

    Daniel, lá no substantivoplural, acho que amanhã, sairá um Textículo num só fôlego que escrevi para responder os comentários seus e de Alyson sobre meu texto. Nele, desloco, sem muitas delongas, a relação crack e pobreza, que é mais uma interpretação sua do meu texto – um possível que ele guardava a revelia da minha autoria -, para uma relação, que me parece coerente à realidade brasileira, entre crack e miséria, não miséria em sentido econômico, mas miséria existencial. “A crackolandia”, para mim, é a invenção da nossa sociedade para abrigar a existência-trapo, para confinar a miséria existencial. Se há usuários de crack ricos, pobres, classe média ou o quê, não me veio ao caso. Quis – e quero – falar ao nível da produção de realidade, de como as narcopropagandas e midiotizações estão engendrando o tangível. Minha abordagem da questão do crack é uma abordagem dos discursos em torno. Preferi – e prefiro – não entrar no mérito dos recortes de classe, raça, gênero, etc, que envolvem o consumo de crack.p.s.: engraçado que o título desse post seja quase “o crack destruiu meu país.”

  2. Daniel Menezes disse:

    Já extrai de Substantivo… e publiquei aqui na CP.

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