Rio Grande do Norte, sexta-feira, 03 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 18 de julho de 2012

Proibição da circuncisão e choque cultural

A possibilidade de a Alemanha proibir a circuncisão é vista por muitos como intolerância, mas suscita reflexões sobre relativismo cultural e práticas de dominação da cultura sobre o indivíduo

postado por Tecelão

Fonte: Wikimedia Commons

Da Teia Neuronial – O fato de a Alemanha ser considerada o “país do Holocausto” (alcunha reducionista, mas que provoca as sensibilidades de muitas pessoas) justifica a polêmica em torno do debate sobre a proibição ou não da circuncisão, tradição milenar da cultura judaica. Se fosse em qualquer outro lugar do mundo, a repercussão seria bem menor.

Provavelmente essa proibição não vai ocorrer, pois a pressão internacional é grande. Felizmente, o relativismo cultural é minimamente compreendido em âmbito mundial, e uma imposição que implique na criminalização de uma prática intrinsecamente ligada à identidade de um povo é uma violência de enorme proporção.

As tradições de um povo fazem parte do substrato cultural (material e imaterial) que mantém coesa sua identidade étnica e sua própria existência enquanto grupo. Proibir um povo de praticar sua tradição é uma violação de seus direitos, ainda mais considerando que a prática em questão não prejudica a outros senão eles próprios (se é que prejudicam).

No entanto, há práticas tradicionais que se chocam com as leis das nações em que se encontram, como é o caso das mortes de crianças com deficiências físicas, praticadas por alguns povos indígenas. A mutilação de crianças, como é o caso da circuncisão, se choca com a pauta dos Direitos Humanos, mas os judeus podem considerar prejudicial,  para a criança, para a família e para seu povo, a impossibilidade de realizar um ato que, para eles, é um sinal de aliança com seu criador.

Em geral, não há um consenso sobre se a circuncisão masculina é benéfica, maléfica ou neutra para o homem circuncidado. Alguns defendem seus benefícios, baseando-se em pesquisa que mostra a menor probabilidade de contrair o vírus HIV, além de proporcionar uma menor tendência à ejaculação precoce. Esta adviria do fato de, sem a proteção do prepúcio, a glande perderia sua sensibilidade com o atrito constante com as roupas íntimas, além do que a própria glande é erógena. Este é o motivo pelo qual alguns são contrários à circuncisão, comparando-a aos efeitos da infibulação feminina. (Aviso logo – tendo em vista a grande probabilidade de alguém mencionar isso nos comentários – que não discorrerei neste texto sobre a retirada dos clitóris de meninas, pois acho que daí se desenvolvem outros assuntos – posteriormente, talvez eu complemente a discussão deste texto com outro artigo focado na “circuncisão feminina”.)

Assim, podemos considerar que, sendo elencadas vantagens e desvantagens da circuncisão, ela é neutra, não representa, no balanço de suas consequências médicas, nem um malefício nem um benefício em si mesma. Mas isso tudo não a exime de ser uma mutilação da integridade física do indivíduo. Ela é uma mutilação tanto quanto o é a extirpação do clitóris (embora as consequências fisiológicas desta sejam piores).

Neste sentido, por mais que tenhamos que defender costumes alheios aos nossos, vale também notar que muitos deles servem como uma marca da dominação da cultura sobre o indivíduo. Todo judeu circuncidado tem em si um sinal de sua ligação inexorável com as tradições de um povo, por mais que estas sejam retrógradas e por mais que ele delas discorde. É o mesmo princípio das tatuagens ou escarificações ostentadas por vários povos tribais. É, inclusive, o mesmo princípio do ritual de furar as orelhas da recém-nascida, mutilação que manterá em seu corpo a marca de uma certa identidade feminina e a fará lembrar para sempre que, como mulher, ela é “naturalmente” fútil e vaidosa.

Link

‘Circuncisão proibida no país do Holocausto’ – Carta Capital

Fontes das imagens

Terminartors

Wikimedia Commons

Tecelão

Pseudoufólogo e temporariamente terráqueo. Escreve sobre racismo, gênero e sexualidade e outras questões antropológicas ligadas à Ficção Científica. Autor do blog Teia Neuronial.

3 Responses

  1. Maria Betânia disse:

    Li o artigo de Thiago no Teia Neuronial e fiz meu registro
    sobre o conteúdo (aliás muito bom). Neste site comento a infelicidade terem
    usado a foto de duas muçulmanas, observando uma ocidental de saia curta. O
    artigo versa sobre a circuncisão masculina e o autor deixa claro não querer
    falar sobre o assunto naquele momento. Também afirma que o “grupo cultural” ao
    qual se refere é formado por Judeus e não por mulçumanos. A foto da mocinha
    chama a atenção? Claro que chama, mas que tal deixar essas incoerências
    apelativas para as mídias comerciais e vazias. Por favor, não reproduzam os
    delitos dos tubarões. Se continuarem assim, a gente fica com o quê no final? 

  2. ASF disse:

    Na verdade, em termos legais, as leis que proibem a circuncisão já existe há muitos anos na Alemanha, assim como em vários outros países ocidentais, e até mesmo no Brasil. No entanto, para evitar atrito com grupos religiosos considerados “fortes”, como os muçulmanos e judeus, os governos têm fechado os olhos para o descumprimento da lei.

    Ou seja, por puro medo de “mexer em vespeiro”, o governo privilegia estes grupos religiosos, deixando-os passar por cima de leis já existentes.

    Lembrando que a “proibição” refere-se apenas a menores de 18 anos, nos casos em que não haja indicação médica, pois como todos sabem, em algum poucos casos a circuncisao faz-se medicinalmente necessária.
    E refere-se também a pratica realizada por “nao médicos” e/ou fora de ambiente clínico/hospitalar.

    Estas leis visam proteger a integridade física do menor.E não entram no mérito, se a circuncisão pode trazer benefícios ou nao a quem passa por ela.

    As leis a que proibem a circuncisao são:

    * Prática ilegal da medicina. (lei  também existente no Brasil )

    Quase 100% das circuncisões realizadas por judeus na Alemanha, ainda são feitas por rabinos, que não são médicos, em cerimônias privadas, ou seja fora do ambiente hospitalar, sem seguir as mínimas regras de assepcia e SEM ANESTESIA.
    Já no caso dos muçulmanos em território alemão, algumas são realizadas por médicos, em hospitais.Mas a maioria são também realizadas em cerimônias privadas, por não médicos.

    Exemplo: Se uma pessoa que nao tem fomaçao médica, decidir abrir um consultório médico em sua casa e passar a realizar cirurgias, diagnosticar doenças e receitar remédicos, configura-se a prática ilegal da medicina.
    A circuncisao quando feita por nao médicos e/ou fora do ambiente hospitalar, é nada mais que isso, prática ilegal da medicina.
     
    *existe uma lei na Alemanha que proibe que menores de 18 anos passem por procedimento cirúrgicos sem recomendação médica.

     Exemplo: Na Alemanha, caso uma menina de 12 anos queira implantar silicone nos seios, mesmo que seus pais concordem e encontrem um médico disposto a realizar tal cirurgia, a lei proibe que isto ocorra, visando proteger a integridade física da menor que ainda não tem dicernimento sobre seus atos.
    No entanto, se ao completar 18 anos de idade, esta menina ainda tiver este desejo, poderá procurar um cirurgião e submter-se a tal cirurgia.

    Assim como os judeus e muçulmanos, a partir de 18 anos completos, podem procurar um hospital e submeter-se a circuncisão, mesmo sem recomendações médicas.

    O que a Alemanha está fazendo na verdade, não é “proibir” a prática, e sim tirar o privilégio de grupos religiosos, que até então com a desculpa de “respeitar tradiçoes”,  têm passado por cima de leis que todo o resto da populaçao é obrigado a cumprir, como por exemplo a proibiçao a prática ilegal da medicina.

    Neste momento, o médium brasileiro João de Deus está na Suíça realizando curas espirituais. E ele tem tomado o cuidado de não realizar suas famosas “cirurgias” que sao cirurgias de verdade, incluindo cortes em pessoas. Ele já foi advertido por seu advogado que estas cirurgias configuram prática ilegal da medicina, e que por isto ele pode ser preso e responder processo. Por isto nao as tem realizado em território europeu.

    Penso que nenhum grupo religioso deve ter privilégios em detrimento do resto da populaçao, e menos ainda passar por cima das leis.
    As tradiçoes religiosas devem ser respeitadas, mas nao podem, NUNCA, sobrepor-se as leis.

    A lei tem que valer para todos !

    • Thiago Leite disse:

      ASF, concordo que deva haver uma Ética maior, que trate de proteger os direitos iguais de todos os indivíduos, mas mudar costumes com a imposição da Lei é uma violência simbólica. Penso que a melhor alternativa é um processo gradual de diplomacia, conhecimento e compreensão mútuos, até que, por exemplo, os judeus incorporem o entendimento sobre os riscos de um procedimento sem os cuidados médicos. (Se bem que esse deve ser um dos casos mais fáceis, diante de costumes como a clitoridectomia e o sepultamento de bebês vivos…)

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