Rio Grande do Norte, sábado, 04 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de julho de 2012

A Copa da amargura

postado por Gustavo Barbosa

Seu Cícero é morador da Rua Compositor José Luís, situada no bairro das Quintas, em Natal. Abrangida pelo raio das obras de mobilidade atribuídas à Copa do Mundo, a rua conta os dias de sua existência. No lúgubre horizonte dos seus casebres, assomam-se escavadeiras e rolos compressores, implacáveis na finalidade de reduzi-los ao asfalto. Seu Cícero, da mesma forma que seus vizinhos, vive com intensidade esse drama, mas com um agravante: possui oitenta e oito anos, mais de cinquenta dos quais vividos no seu pequeno imóvel.

Seu Cícero, um entusiasta da escolha de Natal como cidade sede, viu crescer sua debilidade física quando de súbito se enxergou na iminência de ser arbitrariamente retirado da sua casa. E logo ele que, como a maioria dos natalenses, comprou integralmente o discurso de progresso urbanístico, econômico e social embalado pelo sedutor veludo do marketing político na condição de indesviáveis frutos da Copa. Vemos, agora, que tal discurso não apenas se tratou de um exercício dialético de falácia e oportunismo como vem se mostrando um verdadeiro estelionato político e eleitoral do qual Seu Cícero é apenas mais uma das suas milhares de vítimas, sejam desapropriadas ou não.
O entusiasmo de Seu Cícero, então, durou até a notícia de que teria seu imóvel desapropriado em virtude das obras da Copa, a mesma Copa que, a princípio, só traria benefícios à população. E pior: as desapropriações decorreriam de um projeto feito arbitrária e unilateralmente pelo Município, sem qualquer participação da sociedade e repleto de vícios de ordem técnica e legal, infringindo de forma aberrante normatizações das três esferas.

Recebeu o Seu Cícero visitas de agentes públicos, tendo seu imóvel avaliado em míseros R$ 69.350,05 (sessenta e nove mil, trezentos e cinquenta reais e cinco centavos) em um procedimento que, ao arrepio da lei e das normas de experiência, não contou com uma equipe multidisciplinar envolvendo corretores de imóveis, arquitetos, urbanistas e engenheiros civis para fins de averiguar seu real e justo valor. No laudo da Prefeitura, apenas estes últimos profissionais o assinaram.

Sem forças para se envolver em uma demanda judicial dessa natureza, ao Seu Cícero sobrou apenas a resignação, aceitando o ridículo valor proposto pela Prefeitura para seu lar.

Assim, ao invés de apresentar uma defesa técnica à ação de desapropriação contra ele proposta (de número 0801564-29.2012.8.20.0001, podendo ser consultada no endereço http://esaj.tjrn.jus.br/esaj/portal.do?servico=740000), protocolou, por meio da assessoria jurídica do Comitê Popular da Copa, carta contendo sua angustiante aceitação aos questionáveis parâmetros propostos pelo Poder Público municipal. Abaixo, reproduzo a pequena petição que foi feita nesse sentido, direcionada à 4ª Vara da Fazenda Pública, juízo para o qual foi distribuída a ação apresentada pela Procuradoria do Município.

 “O que significa uma casa para os que nela vivem? Moradia? Privacidade? Proteção? Segurança? As respostas são tão variadas quanto óbvias. Mas, e quando a casa se torna um lar, envolto de um laço de afetividade cunhado por décadas e que envolvem desde a criação dos filhos e netos às solidárias relações de vizinhança mais que consolidadas com o passar dos anos?


Não importa se os valores afetivos e sentimentais referentes a uma residência são quesitos que se situam além das técnicas utilizadas pelos corretores imobiliários; não importa se, embaixo do teto do Sr. Cícero, assim como o de muitos outros, vivem não apenas pessoas, mas toda uma história que se confunde com a própria trajetória dos seus acolhidos; pouco interessa se o Sr. Cícero, com 88 anos, atravessa o outono de sua existência; menos ainda importa se tem um natural apego especial para com a casa na qual vive há mais de 50 anos.

Nada disso interessa, pois ao Sr. Cícero não resta mais vigor para se engajar em qualquer batalha – ainda mais nesta, onde seus algozes são tão somente o Estado e a FIFA, mancomunados num só fim. Não, não tem forças, recursos e tampouco esperanças para pelejar contra entidades de tamanho poderio que, com assustadora indiferença, se assomam colossais contra o seu pequeno imóvel.

Não lhe restou, então, alternativa que não dar-se prematuramente por vencido, verdadeiro exercício de auto-indulgência, na forma de um desprezível analgésico à avassaladora humilhação que cruelmente lhe estão impingindo.

As condições colocadas pelo Poder Público para a desapropriação de sua casa são injustas? Muito. O preço oferecido ao seu imóvel condiz com seu real valor? Óbvio que não. Com este preço, lhe será dada uma nova oportunidade de viver na comodidade com a qual vive há mais de 50 anos e em meio a qual também criou todos os seus filhos? Improvável, muito improvável. Mas de que alternativa dispõe senão a de se render antes mesmo de entrar em campo, gastando os últimos dias de sua vida, os últimos resquícios de sua já inexistente força, lutando contra devastadoras hélices de gigantescos moinhos que, reais e concretos, pulverizam todos os pequeninos grãos que contra eles são postos?

Acossado pela maior resignação de sua vida, aceita, portanto, o Sr. Cícero as condições propostas arbitrariamente pelo Município de Natal; aceita, cabisbaixo, que seja saqueada a sua dignidade, solapada a sua honra, impossibilitada a sua defesa e implodidas toda a legítima expectativa, segurança e estabilidade de morrer no mesmo lugar em que construiu sua vida – no mesmo lugar em que, até pouco tempo, vivia com uma tranquilidade que jamais esperava que lhe fosse retirada. Aceita, mesmo sabendo que tudo será cambiado a preço de nada, pois dramas como o dele são vistos com indiferença e desprezo pela fria natureza do mercado e da lei.

A derrota e a resignação serão as notas das suas escassas primaveras, agora destituídas de todas as flores que lhe são por natureza de direito. E a serenidade, com a qual até pouco acreditava que iria terminar sua vida, dá lugar a angústias e descontentamentos como o cinza dos galhos secos onde antes brotavam singelos, mas belíssimos florais primaveris.

Que lhe seja, então, usurpado o sagrado direito à moradia. Mas que fique claro: naquele pequeno chão de sonhos, histórias e alegrias condenadas ao inexpressivo asfalto do ‘desenvolvimento’, sobreviverá a amargura das gerações futuras, das quais os gestores que ora cometem tal barbaridade irão precisar quando nos períodos eleitorais.”

Gustavo Barbosa

Advogado.

4 Responses

  1. Paulo Emílio disse:

    Obrigado Dilma. Obrigado PT. 

  2. Caio Cesão disse:

    Um dos melhores artigos que já li neste site.

    Além de tudo isso que foi escrito, há de se pagar esse grande por estarmos no país do futebol. É a paixão nacional, afinal de contas.

    Em um país como nosso, futebol é uma excelente ferramenta para despistar problemas como esse descrito pelo autor.

    Parabéns pelo texto!

  3. Daniel Menezes disse:

    Grande Gustavo,

    A Via Costeira vai ser entregue também com a justificativa de que é preciso criar leitos de hotel para a copa.
    Não há estudo de impacto ambiental e os órgãos da área alegam que mais construções pode trazer contaminação do lençol freático pela água do mar, tornando o reservatório doce salobro.
    Será também extinto na região o direito à paisagem. A Via Costeira terminará a sua privatização.
    Será a segunda farra na região. A primeira foi na década de 80 quando políticos distribuíram os terrenos como se distribui picolé entre os amigos.
    Teve empresário que ficou com o terreno, sem construir, só especulando.
    Enquanto isso, os acessos públicos às praias nunca foram feitos. O natalense não pode ir a Via Costeira.
    Mais um legado da copa.

  4. Pois é, Daniel.

    Já houve um encontro recente com algumas lideranças e com o pessoal da bicicletada pra tratar do assunto. Alguns encaminhamentos foram dados.

    Acho que a sociedade não pode – nem deve – esperar a atuação do MP nesse sentido, principalmente no que diz respeito às medidas judiciais que podem ser tomadas. O MP não detem o monopólio da proteção judicial ao patrimônio público, ambiental e paisagístico da cidade. 

    É o momento de fazer uma articulação política de forma concomitante às medidas judiciais, conforme ocorreu com as obras de mobilidade da Copa.

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