Rio Grande do Norte, sábado, 04 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de novembro de 2012

Transgressão e Democracia: a ocupação da Reitoria/UFRN

postado por Alyson Freire

Uma das qualidades mais distintivas da democracia é que ela suporta uma certa tensão em algumas de suas próprias regras e princípios fundamentais. Tensão que, aparentemente, pode sugerir inclusive que ela estar se voltando contra si mesma. Por exemplo, em nome da liberdade de expressão e do debate, a democracia suporta uma relativização, sob determinadas condições e limites, é claro, da opinião da maioria sobre temas cujo conteúdo esta última se opõe veementemente, tais como aborto, legalização das drogas, etc..

Esta tensão, que suspende ou torce algumas regras e princípios da democracia não visa outra coisa senão gerar a possibilidade de mais democracia, de mais liberdade, na medida em que permite uma margem para a ação dos antagonismos de novas perspectivas, valores e demandas emancipatórias. Este é o ônus que a democracia paga para tentar acompanhar o ritmo das mudanças sociais e culturais do tempo presente, e, desse modo, garantir a pluralidade e a liberdade de atuar, subsídios vitais para que ela possa se aprimorar e amadurecer não apenas como regime político mas como sociedade.

Essa abertura ao compasso do atual, e as suas rupturas e processos de mudança, isto é, a legitimação de novos discursos políticos e práticas sociais, lhe obriga a lidar com um certo nível de transgressão. Nenhum outro regime coloca-se essa possibilidade, não possuem essa capacidade de tensão, que é sim, em certa medida, um fardo autoimposto e não livre de contradições e limites, que podem gerar, inclusive, reveses autoritários em vez de avanços democráticos.

É dentro desse marco que me posicionarei a respeito da legitimidade da ocupação da reitoria – UFRN -, apesar das críticas que tenho a certos aspectos do movimento. Fato recente, aliás, que vem provocando um debate, ainda mais depois dos vídeos divulgados – ao final do artigo. Dois argumentos foram mobilizados para criticar a ocupação, mas ambos, em última análise, se abraçam pelo mesmo objetivo: declarar a ilegitimidade da ocupação.

No artigo do professor Edmilson Lopes – aqui -, costumeiramente arguto e sofisticado em suas análises, denega-se a legitimidade do movimento em razão da “estética do crime” que adorna a performance dos jovens estudantes de tendências libertárias e vitalistas. A partir de referências como “invasores”, “quadrilheiros”, “facções criminosas”, o argumento do professor, parece-me, querer lançar o discurso dos estudantes, suas reivindicações, no campo da palavra interditada; ora, não escuta-se prisioneiros ou bandidos, apenas busca-se mantê-los e capturá-los para o silêncio dos presídios. Sob o ângulo de tal argumento, e, de uma maneira simbólica, é como que afirmasse que os direitos políticos dos estudantes estariam “suspensos” por conta de dita “estética”, tais como os direitos políticos dos condenados e apenados do crime.

A palavra pública é, desse modo, simbolicamente cassada, suspensa, estigmatizada pela referência que remete o discurso dos alunos ao mundo do crime. À levar até as últimas consequências a linha de pensamento do professor Edmilson, estariam também igualmente condenadas ao silêncio anulador da legitimidade as expressões estéticas de crítica social da periferia das grandes cidades, do universo do hip hop e rap; censuradas pelo habitus que seus representantes carregam em seu corpo, gestos e fala. A ilegitimidade aqui cumpre, com efeito, uma função de desqualificação da palavra, logo, das reivindicações – sobre a natureza dos contratos e das práticas de segurança privada no campus.

O segundo argumento parte de Daniel Menezes aqui mesmo na Carta Potiguar. Em linhas gerais, consiste em declarar a ilegitimidade da ocupação pelo fato incontestável de a reitoria não ter criado maiores barreiras para a abertura e a ação de todos os poderes e procedimentos legais e competentes para apuração das reivindicações demandadas, inclusive, de comissões formadas por opositores. O problema aqui é, a meu ver, encerrar, ou melhor, encarcerar o questionamento político nas formas legítimas do exercício do poder. A ação política se ver, assim, refém das regras e dos procedimentos, entendidas de modo absoluto, sem nenhuma margem de tensão, de dobra por suas margens. Ora, a democracia deve assegurar, entre outras coisas, que a política seja o exercício plural da liberdade, e isso não significa passar por cima das regras democráticas ou do Estado de Direito, mas entender que estes não são absolutos e totalizantes, que há pontos de ruptura, de transgressão possível e temporária na tensão dessas regras sem que isso implica sair totalmente destas últimas.

Por mais que todas as instâncias e procedimentos legais e institucionais estejam funcionando em favor das investigações solicitadas, aqueles estudantes, assim como tantas outras pessoas ao redor do mundo, não se sentem devidamente representados e convencidos por essas estruturas. E, ainda que componham essas comissões, bem sabem que as relações de poder e a hierarquia simbólica não os colocarão numa posição protagonista. Cumprirão muito mais um lugar de formalização abstrato a fim de preencher o jogo de cena da democracia formal. Por isso, procuram novas expressões e articulações para o político, mais estéticas, performáticas, frágeis, dispersas, sem agenda positiva clara e alcançável em todos os seus aspectos. Expressões que não tratam de passar por cima ou ignorar as estruturas e regras legítimas das instituições, mas de criar espaços transversais em seu interior para ação de contra-poderes no agenciamento de outros modos de relações e organização do político.

Mas, engana-se quem pensa que não há um discurso político crítico presente ali, qual seja: que a energia política da contestação pode ser canalizada de outras formas e modos que aqueles já institucionalizados; que ela pode ser canalizada pelas afinidades e agenciamentos dos desejos, potências e revoltas do (contra) momento. Não é isso que as diversas primaveras e ocupações nos tem ensinado?

A ocupação da reitoria é uma recusa a esgotar o questionamento político na ordem do discurso legítimo – dos atores-funcionários engravatados e professorais – e na ordem legítima dos procedimentos formalizados. É uma oposição a ideia de que somente deve-se agir dentro dos quadros das regras, que somente a atuação no interior do exercício do poder deve ser legítima, visível e audível, sendo todas as demais formas marginais apenas ruído e corrupção ilegítima.

As regras e procedimentos democráticos, e as relações políticas que as compõem, não conseguem absorver suficientemente em seu universo simbólico e normativo, num dado momento, as novas forças e sensibilidades que surgem. Até que o sistema político traduza os novos discursos, exigências e valores que lhes fazem é preciso um tempo, um processo que o leve a modificar as relações políticas e certos elementos do fundo normativo. Daí a necessidade de aceitação e reconhecimento de um nível de transgressão.

A agonística da vida e da política, lidar com o contraditório e o emergente, implicam riscos, mas se abrir mão desses riscos, a democracia estanca e cristaliza-se em suas regras e procedimentos. A ocupação da reitoria ajuda a manter acesa essa capacidade plástica da democracia, de suportar certa tensão e nível de transgressão, é por conta disso que me coloco  ao lado dos estudantes.  No entanto, esse limite de tensão é quebrado quando ocorrem depredações do patrimônio público. O que deve ser tornado visível e audível é o discurso político, quer dizer, o agenciamento da palavra reivindicatória, dos sentimentos de descontentamento e a ação da ocupação.

Videos:

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

5 Responses

  1. Lucas disse:

    Finalmente, lucidez nos ares.

    • Patrícia disse:

      Uma coisa me parece certa, os integrantes da Carta Potiguar de longe são homogêneos. O que é ótimo para nós leitores. Após vermos aquele texto deplorável escrito pelo Daniel Menezes, na mesma esteira do que enunciou o professor Edmilson (que talvez seja o seu mestre?), podemos acessar ”ares de lucidez”, como disse o Lucas. Parabéns, Alyson.

  2. Marcel disse:

    O prof. Edimilson e Daniel Menezes (re)produziram os argumentos do poder e da Ordem, falaram de leis, instituições, fora-da-leis, regras, criminosos. Partiram de um entendimento “de cima”, julgando e medindo com a régua e a lógica do poder instituído. Ações alternativas precisam de pensamento alternativo para serem entendidas. O artigo é desconstrutor dos alto-falantes virtuais do poder.

  3. Túlio Madson disse:

    Parabéns Alyson me sinto plenamente contemplado no seu texto. Os ocupantes na verdade já tinham tentado a via normativa para solucionar o problema após os tiros disparados pelo segurança, através de denúncia na ouvidoria, entretanto, transcorrido um mês após o ocorrido, no que deu a sindicância instaurada pela UFRN? Segundo eles nem as imagens do ocorrido foram passadas para a comissão que analisa o caso. O próprio diretor do CCHLA afirmou nos jornais: “Outras medidas serão tomadas com base nas imagens das câmeras de segurança que registraram toda a ação”, pois bem, passado esse tempo todo cadê as “outras medidas”? Quando a via NORMATIVA não funciona só resta a TRANSGRESSÃO.

    É lamentável a comparação da estética deles com o crime organizado, só contribui ainda mais para a criminalização dos movimentos sociais, assim como a tentativa de enquadra-los como pessoas que tem aversão a leituras, ou carentes de fundamentação teórica para suas ações, o que não é verdade pois se vê referências ao anarquismo ontológico como já mencionei no comentário do outro texto. Mas, por outro lado, também é lamentável a depredação do patrimônio por parte deles.

    A ocupação é legítima porque, como corroboram as análises, seus discursos continuam sendo deslegitimados, seja em prol de uma tentativa de criminalização, seja em prol de uma perspectiva normativa.

  4. Anonymous disse:

    Que texto mal escrito, ave Maria! Kkkkkkkk

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