Rio Grande do Norte, sábado, 04 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de dezembro de 2012

Qual o legado do Carnatal para a cidade?

postado por Alyson Freire

Os antropólogos nos ensinaram a enxergar as festas como rituais em que a coletividade se reúne para reavivar os laços sociais e produzir um estado de efervescência. As festas aproximam as pessoas, ensejam um “sentir junto” que garante e renova o equilíbrio social. De outro lado, elas proporcionam uma liberação temporária, uma suspensão das pressões e conformações do dia-a-dia do “mundo sério” do trabalho, da vida familiar, etc.. Portanto, quer para aproximar as pessoas, quer para aliviar a pressão da ordem social, as festas mostram-se como atividades importantes, essenciais, diria, à sociedade humana; são coisas antropologicamente sérias, por assim dizer.

Talvez o Carnatal não seja exatamente um ritual de simbolização da unidade, como outrora as celebrações coletivas das sociedades tradicionais. São outros, bem mais profanos e menos pedagógicos, os interesses da micareta natalense. Seria igualmente forçado extrair do Carnatal alguma espécie de manifestação da identidade potiguar – seja lá o que isso for – ou de qualquer outro tipo de identidade cultural. Nem de longe, o Carnatal é uma festa tradicional, folclórica, popular, isto é, não mantém nenhuma relação íntima com aspectos culturais de uma região, grupo ou história locais. Mas é certamente uma festa, moderna e nordestina.

Sua relação mais significativa é, sem dúvida, com o dinheiro, com o lucro e com o divertimento espontâneo e sem maiores conteúdos – o que, de modo algum, diminui o Carnatal enquanto festa e momento de gozo. Carnatal é cultura de massa, diversão enquanto serviço e consumo, festa como produto do mercado e um excelente negócio para alguns. Nem mais nem menos do que isso.

No entanto, se por um lado reconhecemos a legitimidade da micareta enquanto festa, diversão e gosto musical, por outro, a maneira como o Carnatal é organizado, ou melhor, imposto à cidade merece sim, questionamentos e críticas. Não se trata de críticas motivadas por ressentimento ou estética musical. As críticas devem mirar a concepção de cidade subjacente ao modelo de organização do Carnatal e aos efeitos práticos e as contradições da micareta. Portanto, as críticas devem manter como cerne a política, quer dizer, a discussão da vida comum da cidade, seus problemas, desafios e possibilidades. Trata-se, enfim, de perguntar qual a relação que a festa estabelece com a cidade, e, em particular, qual a contrapartida que o Carnatal oferece e lega a cidade. A meu ver, existe um profundo descompasso entre o que a cidade disponibiliza para a Destaque e sua festa e o que esta “retribui” para a primeira.

Ao contrário de outras cidades que contam com grandes festas privadas anuais, Natal não experimentou nenhuma reestruturação ou embelezamento urbano em razão do Carnatal. Muitas festas ao redor do país utilizam parte de seus recursos e lucros, juntamente com a ação do poder público, para revitalizar centros históricos ou construir equipamentos urbanos destinados à realização de eventos culturais – veja o caso de Mossoró ou da Oktoberfest em Blumenau-SC. A micareta natalense, por sua vez, restringe-se a uma estrutura temporária e descartável que em nada contribui para cidade. Muito pelo contrário, a “estrutura” urbana do Carnatal fecha e obstrui ruas, deixando o já complicado trânsito da cidade ainda mais intricado e vagaroso. Em termos de urbanização e preocupação com a vida citadina, o Carnatal é, nos moldes em que é atualmente organizado e imposto, um flagrante desrespeito ao direito à cidade.

Em continuidade, não observamos no Carnatal nenhuma contrapartida efetiva e direta quanto aos recursos públicos recebidos. Ora, várias festas que recebem esses incentivos públicos, como a Festa do Peão Boiadeiro, em Barretos-SP, revertem parte dos lucros em obras sociais; criação de creches, casas de apoio, asilos etc.. O Carnatal e a Destaque são, contudo, bastante tímidos nessa área de atuação, com pouco ou nenhum compromisso com o desenvolvimento social da cidade.

Outro ponto a ser destacado diz respeito ao engajamento popular na organização da micareta. Enquanto nos carnavais – inclusive no extremamente lucrativo carnaval carioca – ou blocos de afoxé, frevo e maracatu se tem uma participação popular (da comunidade) na organização das festas e dos blocos, produzindo, graças a tal engajamento, sociabilidades e sentimentos de identificação, a organização do Carnatal é realizada unicamente por empresas e profissionais publicitários e de marketing. Ou seja, não envolve em sua construção e organização a cidade e seus habitantes. É um empreendimento concentrador, exclusivamente comercial e profissional.

Além desses aspectos, os quais nos permitem questionar que legado deixa o Carnatal para a vida da cidade e na cidade, poderíamos, ainda, mencionar as diversas violações ou transtornos criados por tal festa. Por exemplo, a privatização temporária e anual do espaço público, o prejuízo do direito de ir e vir pelos desvios e engarrafamentos gerados – cabe aqui perguntar por aqueles que esperneiam quando estudantes paralisam o trânsito por causa de protestos e reivindicações e, nesse momento, calam-se contra o Carnatal e sua alegre folia; a quebra da lei do silêncio, a utilização do poder público (segurança, apoios, etc.) para o privado, entre outras infrações.

Diante da ausência de qualquer legado ou contrapartida para a cidade, criticar o Carnatal é mais do que uma tarefa política que os setores comprometidos com uma Natal melhor devem abraçar. É chegado o momento de um debate coletivo e público sobre a real pertinência e contribuição da micareta para a vida da cidade. É preciso romper o consenso cúmplice e tácito, da imprensa e autoridades públicas, acerca das arbitrariedades e transtornos causados pelo Carnatal.

Estabelecer um debate que coloque em xeque a razão de ser, a necessidade de transformação e o legado da micareta potiguar. Um debate que critique, sobretudo, o modelo privativista de imposição da micareta à cidade; pois, se observamos bem, a lógica de imposição e privatização do espaço público promovida pelo Carnatal guarda um íntimo parentesco com a lógica de ocupação dos hotéis da Via Costeira e as desapropriações realizadas pelas obras da Copa do Mundo. Ora, o que está em jogo é uma concepção e projeto de cidade. Criticar o Carnatal, os empresários do setor imobiliário e hoteleiro e a Copa do Mundo significa uma e só coisa: combater uma concepção excludente, predatória e autoritária de cidade.

Por fim, depois de décadas de Carnatal, o único legado do qual podemos falar concretamente até aqui é aquele que encheu os bolsos de alguns poucos grupos de empresários. Com o Carnatal, a cidade nada ganhou de efetivo e duradouro.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

4 Responses

  1. Patrícia Morais disse:

    Muito boa a análise…

    Se as pessoas se permitissem mais a esvaziarem-se do costume e observassem
    a que ponto nossa sociedade chegou, legitimando e fomentando esse tipo
    de “divertimento”, talvez o consentimento tácito do carnatal sofresse alguma resistência. Mesmo as pessoas que não gostam se calam perante os danos no trânsito, a sujeira moral, musical e material porque tornou-se “tradição”. Assim ”tradições” dessa natureza são inventadas e instituídas e não
    vemos a menor chance disso acabar ou ser mandado para o outro lugar
    (fronteira do Paquistão com a Índia ou Paquistão/Afeganistão seria um
    bom lugar!). Sempre participo de corridas de rua aqui em Natal, cuja duração
    não ultrapassa 5 horas, onde não vemos brigas, as forças policiais são
    quase desnecessárias e é saúde quem protagoniza a festa. Não raro, enquanto estou correndo a prova, ouço xingamentos de motoristas parados. A meia maratona de 2011, fui xingada “vagabunda” e em outras corridas recebi xingamentos similares. Até um amigo, após uma prova, veio reclamar a mim, todo cheio de razão, que não conseguiu vir pra casa pela Via costeira e perdeu 30 minutos vindo por outra via.
    No protesto de estudantes contra o aumento da passagem, também fui xingada de vagabunda pelos motoristas que estavam parados no trânsito no trânsito. Que tipo de sociedade é essa nossa que instituiu e fomenta uma festa com as
    consequências que o carnatal têm mas ao mesmo tempo “tolera”, engole à
    força manifestações políticas e esportivas?

    Eu sou alguém pouco otimista
    com o mundo.

  2. Diego josé disse:

    Sobre a privatização de parte do espaço urbano, feito
    pelos empreiteiros do Carnatal em nome do lucro destes, cumpre resgatar a
    discussão de Henri Lefebvre sobre o “direito à cidade”. Na cidade de
    Natal, com a recente explosão imobiliária, é fundamental colocar na agenda
    pública essa discussão. A impressão que fica é que na nossa cidade, em
    especial, o cidadão perde frequentemente seu direito à cidade, em razão de
    grandes empreendimentos comerciais, vendo-se, com isso, entregue a um viver
    urbano acotovelado em meio a pessoas, carros e construções, com poucas opções
    de lazer e um alto grau de poluição visual e sonora. Que tipo de vida urbana as
    autoridades municipais estão promovendo para nós, natalenses? Que experiência
    urbana a cidade de Natal tem proporcionado? Tais são os questionamentos que a
    festa do Carnatal nos incita.

  3. Daniel Menezes disse:

    Alyson,

    lúcida tua análise. Não se trata de condenar moralmente quem gosta de música baiana.

    Do ponto de vista político, esse tipo de imposição é etnocêntrica.

    O carnatal é uma festa légitima, como é o mada, etc.

    O problema é a forma. Ou seja, a privatização do espaço público e o modo como ela é imposta.

    Que seja feita num clube, ou mesmo num espaço público em que não seja necessário que tudo mundo seja obrigado a participar dela.

    Agora, discordo de solicitar que a festa deixe um “legado”. Outras festas, inclusive, alternativas são promovidas, também com dinheiro público na cidade, e não deixam uma única vírgula também. O apelo a filantropia é moral…

    PS. Discordo também das afirmações de que, quem vai para a festa, financia o caos da cidade. Ora, a mesma argumentação, também grosseira, de que o usuário de droga financia a violência. Acredito que nos dois casos a correlação é absurda, além de primária.

    • Olá, Daniel

      Não se trata de um “apelo”. Na verdade, a referência a outras festas serve para colocar em tela um comparativo da negociação que se estabelece entre o poder público e privado. O que temos em Natal é um total descompasso nessa relação, ou uma relação de mão única. O legado significa aquilo que o festa deixa de duradouro pra cidade na medida em que ela recebe vastos recursos e apoios logísticos, pessoal etc., e não apenas aqueles previstos em editais ou pontuais como outras festas. O problema não é o poder público contribui com eventos privados, mas sim os termos desiguais e lesivos ao público que tal relação acarreta nos moldes em que ela ocorre.

      Alyson Freire

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