Rio Grande do Norte, quarta-feira, 01 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de abril de 2013

Nordestino, uma invenção da história

postado por Carta Potiguar

Sobre a reedição do livro Nordestino: A invenção do falo, do historiador Durval Muniz

Por Diego Fernandes Freire

(Mestrando em história – UFRN)

 

downloadMais uma vez uma novela da Globo passada em terras nordestinas causa polêmica. Dessa vez, a chama da controvérsia se acendeu com a  novela Flor do Caribe, em especial com alguns dos seus personagens que apresentam um falar exageradamente dito nordestino. O linguajar “nordestinês” de Candinho (José Loreto) e Dona Veridiana (Laura Cardoso) levaram muitas pessoas a denunciarem o que seria, na verdade, um preconceito linguístico e regional. O Facebook está cheio de manifestações de repúdio à produção novelesca que caricaturiza o falar da região Nordeste. Todo mundo está cansado de saber que não só o falar nordestino, em particular, como a vida nordestina em geral, não é lá bem como a Globo costuma representar em suas telenovelas.

Rachel de Queiroz, ainda nos anos 1940, já apontava que a imprensa sulista tinha uma espécie de “olho torto” para enxergar o Nordeste.  O que ainda não é domínio de todos é como se produziu historicamente essa figura chamada nordestino.  Como se constituiu esse tipo regional para ser representado por uma novela atual? De que maneira o nordestino foi criado e transformado em um objeto de saber a ser lido, interpretado, decifrado? São questões que não passam pela mente de muitos que criticam a tal novela das sete da Globo.

Nesse sentido, é bastante oportuno o lançamento da segunda edição do livro do historiador e professor da UFRN, Durval Muniz de Albuquerque Junior, Nordestino: uma invenção do “falo”. Uma história do gênero masculino (1920-1940), que agora aparecerá nas principais livrarias do Brasil ligado à editora Intermeios, através da coleção entregêneros. O livro, que nesse relançamento ganhou novo prefácio, foi iniciativa de um projeto editorial (a coleção entregêneros) que procura refletir sobre as formas contemporâneas de imposição social de rígidas identidades sexuais e de gênero.  Nordestino, uma invenção do “falo” escava a história e historiciza a maneira como este sujeito regional (o nordestino) foi produzido como uma figura virilmente masculina, quer dizer, investigue as condições de possibilidade da produção da imagem do nordestino enquanto cabra macho, homem de gênio forte, bravo, ensolarado, indivíduo que vela por sua honra, entre outros atributos masculinizantes e falocêntricos.

Como se vê, o tipo nordestino que não cansa de aparecer nas telenovelas e outros programas de mídias, é, de certa forma, a grande preocupação do livro ora recém-relançado. Que me desculpem aqueles que gostam de culpar a Globo por tudo, mas não foi esta emissora que inventou o nordestino, que fez tal tipo regional ter determinadas características.  Nordestino: uma invenção do “falo” oferece um caminho para entendermos de que modo essa figura regional foi parar nas telinhas brasileiras. Munidos de sua discussão, poderemos compreender que essa imagem do nordestino como um ser embrutecido, sem frescura, valentão que não admite desonra moral, é algo, na verdade, fabricado em certo momento da história do Brasil, a partir dos interesses de dados grupos sociais que, no início do século XX, tentavam a todo custo evitar sua decadência social, política e econômica.

A elite açucareira de fins do século XIX, herdeira e zeladora do Brasil patriarcal, ao vislumbrar seu desmoronamento em razão do surgimento de uma sociedade moderna e burguesa, esculpiu a figura do nordestino para servir de contraponto às mudanças sociais (abolição da escravidão, proclamação da república, urbanização, modernização, entre outras). Para aquele grupo, tais transformações estavam feminizando o país, desvirilizando os homens, amansando os indivíduos. O nordestino é produto de uma força reativa, reacionária, que procurava frear a história, desacelerar o tempo, mantendo justamente como modelo de homem uma figura inspirada no senhor de engenho: indivíduo que sentava na ponta da mesa, que disparava gritos e mais gritos aos seus subordinados, que possuía como um animal suas mulheres, encaradas como propriedades, tal qual seu pedaço de terra.

Os tipos regionais que hoje reconhecemos como característicos (o nordestino, o gaúcho, baiano, entre outros) não passam de construções sociais e históricas, que apareceram em dados momentos da história brasileira. Não existiram desde quando o sol apareceu. Tal é um dos grandes ensinamentos do livro e que, na atualidade, vale a pena resgatar. Ter essa compreensão de que o nordestino, assim como os outros tipos regionais, é uma invenção histórica, no sentido de que foi algo criado, é fundamental para se pensar novas maneiras de ser e representar tal figura, e assim evitar as armadilhas do essencialismo, base para os preconceitos, estigmas e estereótipos.

Os nordestinos hoje, tal como aparecem nas mídias, encontram-se reféns de uma representação social que emergiu nas décadas iniciais do século XX. Flor do Caribe revela as algemas de uma produção novelística acorrentada a uma certa dizibilidade e visibilidade do nordestino. Conseguiremos um dia imaginar esta figura de uma maneira diferente? Conseguiremos em um futuro próximo libertar o nordestino de sua imagem como ser viril e másculo? Romperemos os grilhões que prendem o tipo regional de nossa região a um ser sempre marcado pela macheza e rusticidade?

Conhecer a história da fabricação do nordestino como uma figura masculina, tal qual nos mostra o livro de Durval Muniz, é um passo vital para recomeçarmos a pensar em novas formas de viver e representar o habitante do Nordeste, livres de pré-noções naturalizadas e inferiorizadoras do outro.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

2 Responses

  1. Ótima apresentação da obra, Diego! A obra do prof. Dr. Durval Muniz merecia mesmo uma reedição. “A invenção do falo”, e algumas outras do autor que abordam o “Nordeste”, são leituras indispensáveis para a sociedade atual!

  2. Patrícia Morais disse:

    Muito bacana o texto, Diego. Bem à altura da obra do professor Durval.

    E as discussões que você nos adianta são muito valiosas e certamente deixaram o leitor bem curioso pela obra.

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