Rio Grande do Norte, terça-feira, 30 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 1 de maio de 2013

“Os índios estão sendo depenados em Paris!”

postado por Gustavo Barbosa

A gravíssima denúncia abaixo é da autoria da antropóloga Cecília Gutel e do psicólogo Michel Gutel. Nela, entram em detalhes acerca de um leilão promovido em Paris no dia 4 de dezembro de 2012, onde objetos da tradição e cultura indígenas são postos livremente à venda em um lamentável  processo de mercantilização de valores imateriais e sagrados dos mesmos. As instâncias competentes – FUNAI, IBAMA e o Conselho Indigenista Missionário – já estão sendo provocadas a agir.

“Os Indios estão sendo depenados em Paris!

Nicolas Hulot e a ONG Planeta Amazonia organizam um leilão para vender objetos tradicionais da cultura indígena, e objetos fabricados a partir de espécies animais protegidas.

Foi na terça 4 de dezembro de 2012, na rua des Grands-Augustins nº 7, no 6º distrito de Paris. Tudo começou por uma noite muito privada organizada por Nicolas Hulot (Presidente da Fundação Nicolas Hulot para a Natureza e para o Homem), Gert-Peter Bruch (Presidente da ONG Planeta Amazonia), e Alain Casabona (Delegado Geral do CNEA – Comitê Nacional para a Educação Artística). Essa noite era um dos momentos fortes da campanha « Emergência Amazonia » dirigida pela Planeta Amazonia. Foi sob o signo do « respeito da preservação do meio ambiente, dos direitos dos povos autóctones e mais geralmente dos direitos do Homem » que foram vendidos num leilão objetos tradicionais da cultura indígena e objetos fabricados a partir de espécies animais protegidas.Nova Imagem

Convite para o leilão, frente e verso

Convite para o leilão, frente e verso

No dia do evento, chegamos ao local um pouco antes do inicio do leilão. A ONG contratou um serviço de segurança, o acesso ao prédio esta sendo regulado pela apresentação dos convites ou pela intervenção de um dos organizadores. Nossa entrada aconteceu sem nenhum problema, uma vez que apresentamos as credenciais. A noite reuniu cerca de quarenta pessoas, todas convidadas ou pelo hospede da noite M. Alain Casabona ou pelo Presidente de Planeta Amazonia M. Gert-Peter Bruch, ou ainda pelo M. Nicolas Hulot. Mestre Pierre Cornette de Saint-Cyr conduz o evento gratuitamente, segundo os próprios organizadores. O ambiente apresentava um clima descontraído, quase amistoso: o leiloeiro, por exemplo, preferiu chamar Nicolas Hulot por “meu caro Nicolas” e a atriz Mélanie Laurent por “minha querida “. O que tornou essa noite excepcional foi, com certeza, a beleza e a raridade das peças que foram apresentadas e vendidas, mas também e sobretudo o seu caráter profanatório.

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Profanação : ação ou resultado de profanar
1 desrespeito ou violação do que é santo, sagrado; violação, sacrilégio, profanidade
2 Derivação: por extensão de sentido.
atitude irreverente contra pessoa ou coisa que merece respeito; afronta, insulto, irreverência
Ex.: p. dos túmulos dos judeus pelos neonazistas
3 Derivação: por extensão de sentido.
má utilização de algo respeitável; abuso
Ex.: p. da música de Bach” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

A organização dessa noite não é em si uma profanação? As peças apresentadas ao publico como “artesanato kayapo” são na realidade objetos de culto e símbolos da cultura indígena brasileira. Ildomar dos Santos lembrou apresentando os diferentes objetos que eles são “carregados de história “. Entretanto, a história desses objetos tem sido utilizada para fins inabituais e com o único objetivo de valorizar o leilão. Os responsáveis pela ONG incitam Ildomar a apresentar cada objeto associando-o a imagem de Raoni : ” Todos foram fabricados pelo Raoni.  […] Quando Raoni veio encontrar François Mitterrand, ele levou uma cocar igual a esse”. […], etc. Os melhores argumentos de venda parecem estar ligados ao prestigio e à imagem de Raoni, mas também à dimensão sagrada das peças. Assim, as pecas utilizadas pelos indígenas, em suas cerimônias e rituais, ou aquelas transmitidas por mais de uma geração, aumentavam os desejos consumistas dos compradores.

 

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Como entender que todos esses objetos estejam propostos postos à venda pelos Índios ?! O valor deles é inestimável pois ultrapassa qualquer valor mercantil: cada peça conta uma história, representa uma comunidade, um clã ou uma família e simboliza o pertencimento do individuo a essa comunidade, a esse clã ou a essa família. Nas palavras do Cacique Raoni[1]: “Certos (cocares) simbolizam a família. Nenhum outro tem o direito de utilizá-los […] Cada um é pessoal. Eles são utilizados durante recepções, ou festas, ou para fazer a guerra”. A posse e a utilização dos cocares não é deixada ao acaso. Essas regras são evidentemente intrínsecas ao caráter simbólico e sagrado desses objetos. Transgredir essas regras é trair a cultura indígena, vender esses objetos é negar a identidade deles. Como interpretar tais atos ? O que levariam esses caciques, e o próprio Raoni, a abrir mão de suas crenças e convicções pondo a venda seus objetos sagrados? Os outros Índios foram consultados?

 

 

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A falta de respeito prossegue. Para os convidados-clientes, cada novo objeto, cada nova peça exposta, foram motivos de comentários duvidosos, revestidos por um caráter humorístico que, na verdade, denotam desprezo e ignorância para com os Índios, ali exibidos e consentindo. Os comentários se sucederam provocando risos : “você tem essa lança, você é um chefe!”, “mas isso também serve para ir buscar frutas na terra (…) é muito pacifico!”. Porque esses comentários não foram traduzidos para os Índios ? Será que o interprete-tradutor M. Arkan Simaan ficou envergonhado com a ideia de traduzi-los?

Ao final do leilão, foram dezenas e dezenas de objetos entre os quais: cocar dos mais diversos tamanhos, cestas, colares, pulseiras, cintos, entre outras peças de diferentes materiais, vendidos durante uma noite colocada sob o signo da jubilação e da confidencialidade. Certas peças, entre elas um grande cocar de cerimonia, foram separadas antes do inicio do leilão para serem entregues, mais tarde, a indivíduos a quem ignoramos a identidade. O total do leilão chegou aproximadamente a 16 000 euros. A peça mais importante da noite foi levada por Alain Casabona pelo valor de 1.800 euros. A atriz francesa Mélanie Laurent investiu sozinha mais de 3.000 euros. Ela seria calorosamente parabenizada pelos responsáveis da ONG e por seu amigo Nicolas Hulot. Deixaram o local juntos, um pouco antes do final do leilão.

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Algumas pessoas da organização afirmaram que as peças foram vendidas a preços muito baixos. Por outro lado ficamos chocados e indignados com o que vimos. O que aconteceu naquela noite nos remete inevitavelmente as horas mais sombrias da colonização, durante a qual ocidentais organizaram verdadeiros saques de objetos tradicionais. Quem pode ter tido a ideia de organizar esse leilão da alma indígena? Quem pode se atribuir o direito de julgar o que pertença ao sagrado ou ao profano permitindo que esses objetos sejam vendidos? De todo modo, assistimos a uma surpreendente inversão dos valores: o dinheiro esta acima de tudo, os objetos se tornaram profanos e a moeda ficou agora sacralizada. Naquela terça-feira, 4 de dezembro, os Índios foram depenados, com o seu consentimento.

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Além mesmo da questão ética, primordial em nosso entendimento, fica a pergunta sobre a legalidade da origem dessas peças e da maneira que foram introduzidas no território francês para a sua comercialização. O fato é que esse leilão se inscreveu no quadro da campanha “Emergência Amazonia “, ou seja, em nome da defesa da biodiversidade, contra o desflorestamento e para a defesa das populações autóctones. Não obstante, o IBAMA regulamente de maneira rígida a exportação e o comercio de peças artesanais indígena construídas com elementos animais cujas espécies são atualmente protegidas na Amazônia. Esse não é o caso da maioria dos cocares que foram vendidos? Em termos jurídicos, o trafico desse tipo de peças se chama biopirataria  e seus autores são passíveis de penalidade por crime ambiental. Na França, a legislação talvez seja diferente; esses objetos são considerados como obras de arte, objetos étnicos, mas que perdem o seu estatuto original para tornarem-se objetos mercantis, estéticos e culturais.

 

A organização de leilão não é uma invenção de Planeta Amazônia, na verdade essa pratica já existia com a Associação pela Floresta Virgem à qual já pertenceu Gert-Peter Bruch, antes de entrar em conflito com seu Presidente Jean-Pierre Dutilleux, e de criar sua própria associação. Num vídeo intitulado « RAONI – vente aux enchères d’objets kayapo par l’Association pour la Forêt Vierge » disponível na internet, Jean-Pierre Dutilleux explica ” que é muito difícil encontrar essas coisas (sic) na França, é só porque são objetos utilizados pelos Índios que os levaram que eles conseguiram entrar no país, senão eles são proibidos. Mas como são objetos usuais dos Índios, então eles os levaram com eles.”

“RAONI – vente aux enchères d’objets kayapo par l’Association pour la Forêt Vierge” (vídeo do leilão).

Vamos parar na ideia de objetos « usuais »: se esses objetos só são autorizados a deixar o território brasileiro nesse quadro : como justificar na alfândega que os Índios, acompanhados de uma ONG qualquer, levam com eles dezenas e dezenas de cocares, bastões, cestas, colares etc. e voltam sem eles? Parece que o quadro jurídico que regulamenta a exportação desses objetos é bastante vago para deixar espaço a tais arranjos.

Além de tudo que já expusemos, o vídeo assinado pela Gertonline productions  foi colocado na internet no dia 26 de novembro de 2011, ou seja, dois meses depois da divisão entre o Gert-Peter Bruch e o Jean-Pierre Dutilleux. Podemos aqui nos perguntar: colocando esse vídeo na internet, qual era o objetivo visado uma vez que Bruch guarda o principio do leilão ?

A ironia da historia é que os Índios foram depenados em Paris, que Nicolas Hulot e seus amigos pavoneiam-se e parecem ter esquecido o cartaz de Sitting Bull, embora largamente divulgado na pagina Facebook de Planeta Amazonia. No dia 6 de dezembro de 2012, ou seja, dois dias depois desse leilão, Nicolas Hulot foi nomeado delegado especial para a preservação do planeta pelo Presidente da República François Hollande. Essa nomeação chega exatamente uma semana depois da reunião organizada no Elysée com a delegação Kayapó que ele acompanhou.Nova Imagem (7)

“O dinheiro não se come.”

Realmente ?

Tinha muito dinheiro no leilão do dia 4 de dezembro. Os melhores compradores foram aplaudidos, parabenizado: “parabéns, ela o merece!”; “ele é formidável!”.

O publico riu muito, a cada palavra sobre os belos “objetos exóticos” que estavam a venda, e, antes de sair, ainda se fez fotografar com os índios.

Você se lembra “meu caro Nicolas”?

 

Cécilia Gutel                                                                         Michel Gutel

Doutoranda em Antropologia                                               Psicológo.”

 



[1] Proferidas no dia primeiro de dezembro de 2012 durante um encontro publico.

 

Gustavo Barbosa

Advogado.

7 Responses

  1. sparrow disse:

    Agradeço a divulgação honesta, eu também tinha muitas dúvidas em torno desta situação.

  2. Caroline Auboiron disse:

    Quelle honte pour la France de laisser faire. Quelle honte pour ces sangsues !
    Que dire de plus sinon qu’il faut dénoncer ces pratiques malsaines qui ne datent pas d’hier et qui passent inaperçues..
    Que dire aussi du mal que vont avoir les assos honnêtes à travailler sereinement, du mal qu’elles vont avoir à ne pas être assimilées à ces chercheurs d’or et de notoriété. Comment faire alors pour aider les indiens oubliés et les sans terre invisibles s’ils n’ont plus confiance en nous?

    Navrée…sincèrement navrée…mais toujours prête à me battre pour eux
    Caroline Auboiron de ” Força e Coragem ”
    A LUTA CONTINUA

  3. reposta official do Instituto Raoni

    Carta aberta

    Carta aberta

    Tristemente
    nos colocamos a discutir e rechaçar as inverdades proferidas por
    Cecilia Gutel a respeito de fatos que desconhece, sobre os quais vem de
    se manifestar.

    O evento ao qual maldosamente se refere, um leilão
    realizado em Paris, na data de 04 de dezembro de 2012, destinado à
    venda de objetos tradicionais na cultura Kayapó, aconteceu diante dos
    olhos de três lideranças indígenas renomadas, entre as quais o próprio
    Raoni. O objetivo final, arrecadar fundos para a cruzada que empreendem
    os Caciques, na defesa de seu povo, na luta pela demarcação de terras.

    A um mal intencionado, porém, tudo é anátema.

    Poder-se-á inquirir:

    Que
    olhar é esse, que desqualifica o índio? Seriam inocentes? Incapacitados
    para o julgamento? Não teriam eles mesmos – Megaron, Bemoro e Raoni –
    se insurgido contra uma iniciativa que os ferisse, que os envergonhasse?

    Ao
    par de outra ilação, a de que foram cometidos crimes, em razão de
    cocares serem considerados “subproduto da avifauna”, a quem deveríamos
    imputar tal conduta? Se a Polícia Federal brasileira lhes permitiu sair
    do país na posse do material (cocares e outros itens), pugnar pela
    ilegalidade seria acusá-la frontalmente de omissão. E a Polícia
    Francesa, que fez a respeito do suposto ilícito? Uma cidadã francesa
    deveria conhecer a legislação de seu país de origem. Entretanto, diz
    ignorar o quanto preconiza o direito francês a respeito de artefatos
    como os do leilão.

    Levantar suspeitas não é o mesmo que afirmar
    ou provar. As datas de embarque e passagens se encontram disponíveis
    para averiguação. Suscitem-se, pois, as Polícias de ambos os países para
    que se manifestem sobre o ocorrido ou sobre a legalidade do que quer
    que seja.

    Demonstra ainda, a estudante, ignorância a respeito da
    cultura Kayapó, uma vez que atribui sacralidade a simples objetos do
    cotidiano (tais como bordunas), misturando conceitos e imputando a esse
    povo caracteres atribuíveis a outras culturas indígenas ou ao imaginário
    popular.

    Há mais. Não teve o leilão o feito de arrecadar fundos
    para as causas apoiadas pela entidade organizadora, entre as quais a
    própria luta dos Kayapó pela Floresta, contra barragens? Não foi tudo
    aquilo em benefício dos próprios Kayapó? Se há dúvidas, que se abram as
    prestações de contas das entidades organizadoras. Que se nominem os
    beneficiados pelo numerário arrecadado.

    A detratora, ao dizer que
    ocorreu a mercantilização do sagrado, faz uma análise superficial de um
    problema muito mais amplo. A demarcação, uma luta histórica, é cara (a
    demarcação da Terra Indígena Mekragnoti, por exemplo, consumiu milhões à
    época). A manutenção de populações sob o modo de vida tradicional, em
    aldeias distantes, exige fundos, exige amparo material. O contato e a
    troca com a sociedade envolvente é inevitável. O desafio é geri-lo, é
    torná-lo benéfico para as populações tradicionais.

    A questão
    indígena exige, sobretudo, delicadeza e sensibilidade de julgamento,
    justamente a qualidade de que se ressente a análise pueril acima
    tratada. Críticas são bem vindas, exceto as que, disfarçadas, não
    passarem de injúria.

  4. disqus_ipoKK8xNWP disse:

    E agora o texto em francês: http://www.ladecroissance.net/?chemin=journal

  5. indigena disse:

    Um ex candidato (ecologista) a presidencia da republica francesa e uma
    ONG francesa estao sendo acusados de ter organizado um leilao com peças
    indigenas protegidas. Um segundo artigo saiu na impressa francesa essa
    quarta feira. https://www.facebook.com/photo.php?fbid=545821222140918&set=a.274248702631506.65077.272286562827720&type=1&theater

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Perseguição na UERN de Pau dos Ferros

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De como se gera no Brasil um modelo conservador de nação