Rio Grande do Norte, sábado, 04 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 17 de dezembro de 2013

Midway Mall, os pintas e a criminalização da periferia

postado por Alyson Freire

1482736_562030933880240_1248796616_nOs shoppings centers vivem um mal-estar em todo o país. Um pânico moral se formou em torno de uma suposta “delinquência” de certos grupos de jovens, que, reunidos em determinados pontos, estariam a ameaçar integridade das lojas e a paz dos consumidores ordeiros. São “funkeiros”, “manos”, “pintas”, tribos urbanas vindas da periferia e que, cada vez em maior número, reúnem-se nos shoppings centers das capitais brasileiras para se divertir, consumir, conversar, se exibir. A presença indesejada desses “consumidores perigosos e estranhos” começa a gerar conflitos mais explícitos e acirrados. De um lado, medidas de segurança e vigilância, a entrada da polícia, prisões e o acompanhamento ostensivo e impedimento dos “grupos suspeitos” com a justificativa de prevenir “arrastões” e “badernas”, e, de outro, protestos começam a ser organizados contra tais atitudes segregadoras e discriminatórias das direções e seguranças desses estabelecimentos comerciais.

Natal não está de fora do fenômeno. Nos últimos dias, o Midway Mall tomou medidas semelhantes para “reforçar a segurança”, vigiando de perto e mesmo impedindo “jovens de comportamento e vestuário suspeito”, os chamados “pintas” – jovens da periferia de Natal que possuem um estilo bem peculiar de se vestir com  bermudões largos, camisas folgadas e sandálias de marcas específicas entre outros gostos especificadores desta quase tribo urbana da capital potiguar.

Em comum com outros casos, temos um investimento segregador, higienista e discriminatório contra jovens de origem popular, contra os seus estilos musicais, seu jeito de vestir, andar, falar, enfim, uma estigmatização completa de sua sociabilidade. Esta estigmatização consiste em relacionar previamente seus hábitos, seus gostos e estilos de consumo a comportamentos antissociais e infratores, os quais, sem maiores justificativas, colocariam em risco os bens, os consumidores e a propriedade em geral.

A combinação entre a melhora relativa nas condições de vida das classes populares nos últimos anos, apelo consumista generalizado e desigualdade social produz uma síntese perversa e contraditória. Somos todos constantemente coagidos e seduzidos para enxergar no consumo a receita infalível para uma boa vida, para o reconhecimento social e a autorrealização individual. A sedução do consumo que transforma o ato de comprar em condição indispensável para a felicidade e, sobretudo, para a dignidade social produz o desejo irrefreável e cada vez mais generalizado entre as classes sociais de fazer parte desse universo de fantasia e realização. De modo que, os antes economicamente excluídos do consumo de lazer começam a reivindicar o seu quinhão nesse mundo da ostentação e da fruição consumista, pois enxergam nele, tal como as classes estabelecidas, um meio indispensável para alcançar um lugar no mundo, quer dizer, dar sentido a vida. O mercado convoca todos, inclusive os classificados como “indesejáveis”.

Dessa maneira, os “indesejáveis sociais” passam a adentrar e se situar cada vez mais perto dos que antes acreditavam-se por sua condição “privilegiados” e “distintos”. De repente, lugares antes tão exclusivos e socialmente homogêneos tornam-se, na visão indignada e exaltada da classe média estabelecida, lugares muito “misturados”, repleto de “pessoas feias, estranhas”. Os conflitos e os clamores para retomar a ordem natural das coisas são inevitáveis.

É preciso então uma maneira de lidar com esses “indesejáveis sociais” cuja presença, no caso dos shoppings centers e outros espaços de lazer e consumo, é vista como uma ameaça de contaminação do clima de família, de “consumidores de bem” que só querem relaxar e gastar tranquilamente o seu suado dinheiro. Nesse sentido, o que temos visto nos shoppings centers, e o Midway tem adotado estratégia semelhante, é uma política de limpeza social e de classe que visa controlar jovens classificados previamente como suspeitos, ou mesmo previamente culpados. Nem mesmo o flagrante impedimento de direitos fundamentais como de ir e vir, ao lazer e ser tratado com igualdade parecem ser obstáculos ou razões suficientes para as direções desses estabelecimentos, assim como para os que aplaudem tais medidas repensarem suas posições e estratégias generalizadoras e abusivas.  Barrar uma classe de pessoas e impedir o exercício de direitos por causa de esteriótipos generalizadores e previamente a qualquer atitude ilícita cometida é uma arbitrariedade, uma discriminação, uma violência. O que a administração do Midway está fazendo é pressupor comportamentos, caráter, condutas com base em vestimentas, cor de pele, jeito de andar e falar. Isto é inaceitável.

Não se trata de negar a existência de infrações e ilícitos cometidos no interior do shopping; brigas, correrias, badernas ocorrem, certamente. Trata-se sim de questionar e criticar o tratamento e a “solução” dada ao problema. Ora, sobre os jovens de periferia já pesam os olhares reprovadores, a desconfiança, o medo e a indiferença social. A atitude do shopping somente reforça os estigmas já cotidiana e duramente vivenciados por esses jovens. Fazer uso da criminalização antecipada e condenatória e generalizar todos os “pintas” como potencialmente perigosos e danosos só trarão mais conflitos e problemas para a administração.

Engana-se quem pensa que tais medidas de controle e contenção do acesso dos jovens da periferia aos shoppings centers são estratégias isoladas. Não, muito pelo contrário. Elas integram e reforçam todo um conjunto de práticas sociais e discursos que visam exatamente segregar e estigmatizar esses jovens. Tais práticas vão desde políticas públicas que asseguram o desinvestimento social do Estado gerando a ausência de espaços de lazer e consumo e garantido a exclusão dos existentes até programas policiais que constroem e reforçam cotidianamente a percepção social das periferias como áreas problemáticas, tomadas pelo crime e que não passam de depósitos de pobres, anormais, desajustados e de jovens selvagens que integram grupos violentos e criminosos como torcidas organizadas, galeras de baile funk, gangues , etc..

A atitude do Midway é mais um dos mecanismos para assegurar a exclusão urbana dos mais pobres, privando-os da sociabilidade, do interagir e do fruir que os shoppings centers proporcionam. Ora, e a maneira de garantir tal objetivo é apelar aos estereótipos generalizadores que criminalizam os jovens de periferia, suas roupas, seu andar, seu vocabulário, seu corpo, sua estética e ethos. E, assim, garantir que eles continuem a estar onde devem estar, quer dizer, longe das “boas famílias” e dos jovens asseados que deslizam candidamente sobre o piso reluzente dos largos corredores das catedrais do consumo moderno, os shoppings. Que continuem como párias do consumo, mesmo que para isso se tenha que lesar e impedir sua cidadania. Aliás, situações como a que estamos a assistir no Midway Mall mostram como a cidadania, o direito a ter direitos e exercê-los sem impedimentos não é uma condição adquirida ou garantida de uma vez por todas e para todos, mas um “processo instituído” tenso e desigual, que precisa ser continuamente conquistado e reassegurado. Nesse sentido, é imprescindível os protestos e a crítica social.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

13 Responses

  1. Thanatos O-Yama disse:

    Aumentando ainda mais essa clivagem acham que vão resolver? Apagar incêncio com gasolina é uma ideia tão inteligente por parte desses gestores…

  2. Jorivan Silva disse:

    Me deu náuseas ler este artigo! Até tu brutos ?! Carta Potiguar no meu ponto de vista foi extremamente infeliz em publicar isso, e mais, expondo a imagem dos agentes de segurança. Esses pseudos educadores, mestrandos, doutores e afins que compõe e editora este meio de comunicação livre, esquece que os seguranças estão enquadrados quase que no geral, na mesma classe social deste delinquentes que não vão a shopping consumir ao menos um refrigerante em lata, os mesmo são figuras carimbadas, darão e dão problemas sempre, no capitalismo no qual vivemos ir ao um shopping equivale, a ter e pagar por serviços, muitas vezes extremamente caros, entretanto, existe o lojista que paga caro também para ter sua loja lá, tem a cliente-lá que não só quer, mas exigi segurança, limpeza, e que os serviços ofertados estejam sempre a disposição com qualidade e agilidade. É AQUELA COISA… Tu paga cara por um serviço, e não faz exigências ? Deixa a bangu ? Só quem sabe é quem está dentro, antes de criticar, procure saber as peças que vocês estão levantando a bandeira.

    • Olá, Jorivan

      A “bandeira” que aqui levanto é da igualdade de tratamento e da não-criminalização da juventude. No meu texto, a crítica é direcionada a administração do shopping, e não aos seguranças. Estes cumprem ordens, e, até acho que se a administração os escutassem mais poderia ter adotado uma estratégia de segurança mais inteligente e particularizada – como você disse, “as figuras carimbadas”. O que critico é a generalização, nem todo adolescente/jovem de cyclone, boné baixo, etc. está ali pra causar transtorno ou praticar infrações. Isso é absurdo. Que a segurança realiza as medidas cabíveis em cima das “figuras carimbadas”, já identificadas e com histórico em vez de punir e condenar previamente com base em esteriótipos que só reforçam os estigmas sobre a periferia.

      Alyson Freire

  3. Luygi Medeiros disse:

    Cara… Concordo planamente com as atitudes que tem sido feitas! Claro, é uma “discriminação” de certa forma, mas os tais “pintas” não são pessoas aceitáveis em lugares como já citado acima, lugares de família, onde “pessoas normais e de bem” querem passar o tempo tranquilamente, e não com “delinquentes” perturbando de certa forma… Espero que tais atitudes também sirvam para os próprios “pintas”, para que eles enxerguem o que são, enxerguem suas atitudes e seus jeitos de “vagabundo” e deixam de ser isso… Não sei se alguém pensa como mas essa é minha opinião. Agradeço caso alguém tenha lido. PS: Espero que tais atitudes de Shoppings continuem e, que se for possível, sejam até mais “severas”.

  4. Luciano disse:

    Os seguranças CONHECEM muito bem a cara de cada indivíduo do grupo denominado “pintas” pela sociedade, pelos seus atos de agressão tanto diretamente e indiretamente dos demais que estão ali em busca de arranjar briga num local público, mas acima de tudo é PRIVADO. Portanto, o setor de segurança do shopping pode muito bem intervir da melhor maneria necessária para inibir as INEVITÁVEIS brigas em dias de sábado. Ora, se os seguranças não deixaram eles entrarem é porque nos sábados anteriores, tantos os pintas que brigaram, tanto os que tiram fotos de gestos de torcida organizada (coisa que não é permitido dentro do shopping), deve ficar do lado de fora do estabelecimento. Resumindo, todos ali que estão sendo barrados a entrar, são conhecidos já dos seguranças por seus maus atos dentro do shopping.

  5. Concita alves disse:

    Que vergonha dessas “pessoas de Bem”…elas são a favor da limpeza etnica….preconceito é crime, e o direito de ir e vir tá previsto na constituição….alguém aí que condena “os Pinta” acha bom ser escroteado?°

  6. Nestor Burlamaqui disse:

    Eu admiro a mentalidade que consegue encontrar virtude em pessoas que, publicamente, cantam a banalização ao sexo, desvalorização feminina, a ostentação de bens materiais e a apologia ao crime e à violência. Não seja segregador. Levem eles pra tomar uma na sua casa, com sua família. 😉

  7. Pablo disse:

    Atos como esse do Midway e aqueles que concordam e defendem isso, mostram o quanto a sociedade daqui do RN é conservadora, preconceituosa e retrógrada. Higienização social: A gente vê por aqui

  8. Rogério Costa disse:

    Concordo em número e grau o comentário de Nestor Burlamaqui. O nobre professor deveria convidar os que fazem parte das “tribos urbanas” para jantar com sua família em sua residência, ou participar de algumas aulas de sociologia…

  9. carol disse:

    Qual seria mesmo a diferença de nós “cidadão de bem” e os nossos amigos de anos atrás?

    Antes uma limpeza étnica, agora uma limpeza de classes???

  10. carol disse:

    corrigindo

    qual seria a diferença mesmo , entre nós “cidadão de bem” e os nazistas???

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