Rio Grande do Norte, terça-feira, 07 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 27 de maio de 2014

Sobre Pastor Eurico, Xuxa e Livia Marine

postado por Carta Potiguar

Emanuel Freitas

Doutorando em Sociologia (UFC)

Professor de Sociologia (UFERSA)

 Na última semana a apresentadora Xuxa Meneghel fez, involuntariamente, um grande serviço à nação: mostrou-nos como funciona o fundamentalismo religioso cristão em nosso meio. Foi à votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal, no último dia 21, o Projeto de Lei 7672/10 que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente e assegura a esses cidadãos o direito de serem educados sem a utilização de castigos corporais ou tratamento cruel, o que ficou conhecido como “Lei da Palmada”.

Mas, por quê Xuxa estava ali? Simples: foi ela a responsável pela divulgação e campanha nacional em favor da aprovação dessa lei. A “rainha dos baixinhos” foi a “madrinha contra a palmada”. Nada mais legítimo do que convocá-la para se fazer ali presente. Contudo, Xuxa não poderia fazer uso da palavra, conforme diz o regimento. Não era uma Audiência Pública, como já houve tantas em que ouvimos pastores (como Silas Malafaia) e lideranças religiosas (como Marisa Lobo e Padre Roger) a pronunciarem suas diatribes, pondo em xeque nossa laicidade.

Pois bem, a bancada evangélica foi, durante todo o processo, sistematicamente contra. Alegou-se que o projeto interferia na forma como os pais deveriam educar seus filhos. Na verdade, que o Estado não deveria intervir no espaço da família (Ressalte-se que são esses mesmos parlamentares que estão à caça da aprovação do “Estatuto da família”, que faz o Estado legitimar e dizer o que deve ser uma família. Ou seja, para seus interesses, é bom que o Estado intervenha, mas não para os interesses da coletividade. Entenderam?). O fato é que reiteradas vezes a bancada conseguiu adiar a votação do projeto.

Mas, veio a votação. Xuxa estava ali como convidada. Pastor Eurico também, mas como membro da comissão. Um pernambucano da mesma agremiação partidária de Eduardo Campos. Pois bem, o deputado tomou a palavra e disse ser Xuxa indigna de ali estar por ter cometido “a maior violência contra crianças em um filme pornográfico”. Referia-se ele ao filme “Amor, estranho amor”, em que a apresentadora aparece em cena com um adolescente. Os deputados, em uníssono, sufocaram a voz do deputado-pastor, em protesto contra sua truculência, contra seu despropósito.

Dias antes, Pastor Eurico havia protocolado a nova versão do projeto da “Cura Gay”, na mesma semana em que Marisa Lobo tivera seu registro de psicóloga cassado por operar a “cura gay” numa”‘psicologia cristã”, ferindo o código profissional da Psicologia. Pastor Eurico foi destituído da comissão pelo deputado Beto Albuquerque. Bom mesmo seria se o povo pernambucano o destituísse do Parlamento.

Mas, o que podemos tirar disso? Eurico foi atrás de algo no passado de Xuxa que a desabonasse. Não foi tratar dos problemas do projeto, de seus méritos, mas sim de “problemas” (segundo ele, claro) na vida da apresentadora que, segundo a moral que diz seguir, a desabonariam. Em 2012, a bancada, na pessoa do senador Magno Malta, utilizou-se do mesmo mecanismo para desabonar a escolha de Dilma para a Secretaria de Mulheres: para eles, Eleonora Menicucci não poderia ocupar o cargo por ser “sodomita e abortista”. Nada técnico que a desabonasse, apenas discordância com seu credo cristão.

Pois bem, mas o que vemos nas igrejas evangélicas? Assaltantes, traficantes, drogados, adulteros, sonegadores, adeptos de outras religiões e uma série de categorias que não caem na aprovação da moral cristã e que são plenamente bem-vindos. Basta a esses sujeitos “aceitarem Jesus” para terem seu passado negado, para se tornarem homens de bem. Basta ver aqui (https://www.youtube.com/watch?v=9hHgseSYVzA) uma parte do “testemunho” de Micarla de Souza, ex-prefeita de Natal, quando em 2011 foi enunciada por Ana Paula Valadão, líder do grupo gospel Diante do Trono, como a “prefeita dos sonhos de deus”. Isso depois de Micarla bancar a gravação de um dos dvd’s do grupo na cidade de Natal. O vídeo completo foi retirado. Mas, ali, ouvia-se Ana Paula afirmar que as perseguições à Micarla eram “obras dos espíritos ruins”.

Eis aí o problema de Xuxa, sua indignidade: ela não aceitou Jesus, ela não pagou o dizimo. Se tivesse pago, nunca teria feito filme pornográfico. Estaria limpa. Anos atrás a jornalista Eliane Brum nos presenteou com um excelente texto que pode ser visto aqui (http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/11/dura-vida-dos-ateus-em-um-brasil-cada-vez-mais-evangelico.html). Como é difícil viver num país cada vez mais evangélico.

Antes de encerrar esse texto, gostaria de voltar no tempo. À 2012, precisamente. A autora Glória Perez sofria uma campanha de difamação por parte de evangélicos porque, segundo eles, sua novela, ‘Salve Jorge”, era uma apologia ao orixá Ogum. A Rede Record fez uma reportagem, repetindo-a por uma semana, sobre as apologias de Rede Globo ao candomblé, afirmando que “salve” era uma saudação ao orixá. E se fosse?  Mas a autora soube responder à altura.

No capítulo final, conversam as personagens Livia Marine e Wanda. Estavam no presídio depois de terem passado toda a trama traficando mulheres. Wanda, de forma dissimulada, recebe uma biblía e convida Livia para ir a um culto. “Culto?”, pergunta Livia, assustada, como quem diz: você, uma traficante de mulheres? Você que só fez o mal? Wanda responde: “sim, eu aceitei jesus!”. Isso apaga tudo!!! Isso me tira da obrigação de pagar pelo meu crime, Como ela, muitos, milhões… A resposta de Livia: “Wanda, realmente, você é como um inseto, que se adapta a qualquer ambiente, a qualquer coisa”.

Como Maquiavel, importa “parecer ser”, como fizera Micarla. Xuxa não se importou com isso. Que bom. Que venham outras xuxas. O laicismo agradece.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

2 Responses

  1. Lucas disse:

    Deixando de lado essa questao religiosa que ja esta enchendo o saco, e atentando-se á lei, sou totalmente contra esse projeto.
    Primeiro, nao cabe ao estado dizer como um pai deve criar um filho, se um adulto espanca uma criança, seja ele filho ou nao, isso ja é crime previsto e deve ser tratado com tal, interferir dizendo como se deve ou nao criar uma criança isso nao existe.
    No futuro, essa lei, que hoje aos olhos desses fundamentalistas que se acham do bem, pode ser usada para destituir o patrio poder de inimigos politicos, de pessoas pobres, de pessoas que nao comunguem com as praticas desses ditadores da sociedade.
    Fiquei imaginando aquele caso, onde um juiz no interior da Bahia, retirou o patrio poder de pais pobres, para doar os filhos a adoção de familias abastadas de sao paulo, tai uma lei que pode ser usada para aumentar exponencialmente esses casos, e ai quero ver esses puritanos serem questionados, inclusive a xuxa. Outra, em caso de rigorosidade da aplicação desse absurdo, se o estado resolver tomar conta de todas as crianças que forem espalmadas pelos pais, de onde vai sair o orçamento para construir tanto orfanato no brasil.
    Segundo, quem acha que pode dizer como se deve criar um filho, daqui a pouco vai querer definir como uma criança deve ser alimentada, quais roupas elas podem usar, qual o corte de cabelo ideal, veja que todos esses topicos, de uma forma ou de outra, ja chegaram a ser debatidas, e nao vai demorar a tentarem transformar isso em lei, com o tempo, tudo e qualquer coisa, pode e vai ser alvo de legislação por parte desses ditadores, e ainda tem a cara de pau de chamar os evangelicos de extremistas.
    O brasil vive um momento perigoso, estamos cercados por extremistas por todos os lados, e as vezes para se proteger de um extremismo de um lado, a população esta correndo para se proteger com o extremista do outro lado, nao vejo um futuro muito claro para a sociedade, se continuar nesse ritmo de atuação

    • Luzia disse:

      Muito bem colocado Lucas. Estão focando muito nessa “briga” entre a Xuxa e o Pastor Eurico e deixando de falar no que realmente importa que é esse projeto de lei.Também não concordo com a aprovação dessa lei porque ela tira totalmente a autonomia dos pais na educação dos seus filhos e já existem leis que punem a violência contra a criança.

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