Rio Grande do Norte, quarta-feira, 08 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 9 de setembro de 2016

O restabelecimento do bem viver original dos povos: participação do Estado e do Direito no processo de avanço social.

postado por Carta Potiguar

Por Adson Maia (Profissional da segurança pública e mestrando em Direito Constitucional)

“As coisas transformam-se mais que evoluem.”

Murilo Mendes, poeta brasileiro.

 

hrO bem viver é um conceito político, econômico e social que surgiu do resgate, como referência, da visão dos povos originários da América do Sul: Sumak Kawsai em quéchua; Suma Qamaña em aymara; Tekó Porã, em guarani. Trata-se de uma filosofia de raiz antropológica que pode ser identificada em qualquer comunidade, independente de raça, religião ou de qualquer fator de localização no tempo e no espaço. De acordo com sua essência somos parte da natureza e, para nossa própria sobrevivência, há que romper de uma vez por todas com a ideia de que podemos continuar vivendo eticamente separados da natureza e limitados a apenas esgotar os seus recursos. A racionalidade e o pensamento cartesiano afastaram o ser humano dessa percepção originária de interação com a natureza, mas os graves riscos, facilidades, benefícios e frustrações trazidas pela globalização fez crescer uma visão holística de humanidade que tenta apreender toda sua complexidade em benefício da sustentabilidade.

Os sistemas sócio-políticos organizados naturalmente se esgotam quando cumprem a sua função histórica. Na sociedade moderna esses sistemas foram estruturados juridicamente nas constituições através de processos constituintes, logo o esgotamento de um sistema leva a ruptura de parte dos preceitos constitucionais vigentes, notadamente aqueles não protegidos pelo esforço universalista da proteção internacional dos direitos humanos, dando-se início a um processo de revisão constitucional ou até mesmo de elaboração coletiva de nova constituição.

Na América Latina o direito tradicional foi construído com base na ideia de uma suposta neutralidade que hoje se sabe inexistente. Ao invés de insistir na tese da neutralidade, o pensamento jurídico evoluiu do positivismo da neutralidade fictícia para o pós-positivismo da alteridade da vida prática. A busca de alternativas que possam ser imparciais, como a normatização de princípios, haja vista o papel mediador do Direito, é uma constante nos meios acadêmicos e objeto de discussão de vários autores como Habermas, seus discípulos e críticos.

Dentro desse contexto o bem viver foi transformado em princípio constitucional nos processos constituintes da Bolívia e do Equador a partir do processo democrático de participação popular e também da assessoria de juristas locais e de renome internacional como Rubén Martinez Dalmau, professor de direito constitucional da Universidade de Valencia na Espanha.

O direito ao bem viver passou a ser um direito fundamental nesses países e quando da elaboração de um novo código penal no Equador (2014), voltado para a proteção dos direitos constitucionais de todos os cidadãos naquele país, incluindo as vítimas de quaisquer crimes (que ganharam um rol de direitos), estrangeiros legalmente de passagem a negócios ou turismo, novos tipos penais foram incorporados, como exemplo, a manipulação genética para fins escusos, a invasão de reservas ecológicas, dentre outros.

A sociedade de riscos, apontada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, traz essa característica de expansão do direito penal para novas modalidades criminosas em todo mundo, mas diferentemente do que ocorreria num modelo político representativo clássico ou totalitário, a expansão as normas penais não se fez acompanhar da mitigação de direitos humanos já consagrados. As políticas públicas de menor intervenção do direito penal são direcionadas para outros aspectos, principalmente de natureza procedimental, como para a simplificação do processo penal, sem prejudicar o contraditório e a ampla defesa; para a modernização e ressocialização dentro da execução penal; para os crimes de menor potencial ofensivo; e também para a redução dos tipos penais que se tornaram anacrônicos, a exemplo da sedução de mulheres virgens ou o curandeirismo no Brasil (possibilitando a exclusão dos tipos ou a transferência do problema para o campo cível e administrativo). O direito penal se expande, mas toma um caráter pedagógico indispensável em sociedades desiguais e complexas. Por ter uma natureza pedagógica necessita de uma constante evolução modernizante.

O processo modernizante referido acima, apesar de suas características regionais, acompanha a evolução dos tratados internacionais de direitos humanos não apresentando conflitos ou incompatibilidades com estes. Ao contrário dos preceitos fechados, dogmáticos e rígidos de doutrinas que geraram o autoritarismo político da direita à esquerda, o princípio do bem viver é um princípio aberto para uma sociedade aberta. Uma sociedade aberta que tem apenas o povo através do Estado como regulador das relações sociais, políticas e econômicas. Não precisa ser um Estado grande e dispendioso, como de fato nunca puderam ser desde que surgiram, mas precisa ser um Estado forte diante da responsabilidade e da complexidade de sua atuação.

O emergente direito penal constitucional do bem viver é uma integração do direito material e processual à realidade prática das pessoas interagindo entre si e com a natureza. Deve servir precipuamente as pessoas e não ao Estado que fiscaliza.

Enquanto isso, no Brasil, se permanece um Código Penal da década de 40 e toda uma legislação confusa, espalhada, solta, por vezes contraditória, não integrada e pouco revisada no decorrer dos anos que se passaram. Os conflitos (antinomias) jurídicos se tornam mais comuns, além dos conflitos sociais decorrentes da falta de proteção jurídica e isso tudo se torna parte do problema maior de segurança pública e do crescimento da criminalidade. A ausência de um rol explícito, taxativo e eficaz de direitos das vítimas de crimes provoca hoje a contraditória distorção da real mensagem de universalização dos direitos humanos. Se estes direitos servem para proteção de todas e de todos porque se esquece das vítimas quando da reivindicação de novas leis? A resposta provavelmente está na cultura reducionista do pensamento político nacional que enfrenta as desigualdades e conflitos sociais com a polarização conveniente de interesses de pessoas e grupos. Infelizmente até mesmo a efetividade dos direitos humanos em nossa sociedade restou prejudicada por essa cultura.

Somente um processo verdadeiramente democrático de construção de um Estado forte (com papel mediador e dignificante) poderá restabelecer o bem viver original há tempos perdido, restabelecer o respeito às instituições públicas e às relações privadas que estão em crescente processo de degradação sempre onde e quando há o crescimento da desigualdade no Mundo.

_________________

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010.

DALMAU, Rubén Martinez; SILVA JÚNIOR, Gladstone Leonel. O novo constitucionalismo latino-americano e as possibilidades da constituinte no Brasil. In: RIBAS, Luiz Otávio (org.). Constituinte Exclusiva: um outro sistema político é possível. Editora Expressão Popular, 2014. P. 20 a 26.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista de Ciências Sociais n. 48, junho de 1997.

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