Rio Grande do Norte, quarta-feira, 01 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 5 de novembro de 2016

Manifesto em defesa de uma Escola reflexiva

postado por Carta Potiguar

Prof. Dr. Flávio Ferreira

Todos nós que um dia cursamos o ensino básico temos a grata lembrança de um professor que marcou a nossa trajetória. Isso ocorre porque é próprio da dinâmica escolar a vivencia coletiva, imprescindível para a formação do sujeito. Como não lembrar aquelas aulas que, em um determinado momento da vida, despertou em você o desejo de seguir um caminho? Não fosse o momento atual que atravessamos, essa pergunta seria respondida com a mais absoluta franqueza, através da memória de situações vividas, sem o fantasma nomeado, “doutrinação na escola”.

A escola é o espaço do aprendizado coletivo, onde deve prevalecer a transmissão do saber teórico-prático, através do estimulo à curiosidade ou como diria o sábio educador Rubem Alves, o professor deve provocar o pensamento.
O saber teórico-cientifico necessariamente produz um contraponto e, consequentemente, o debate de ideias. Proporcionando assim, avanços nos degraus do conhecimento. As teorias podem ser refutadas e modificadas. Quem opera essas mudanças são os mesmos sujeitos, que produzem conhecimento, e um dia vivenciaram o ambiente escolar. Por isso, a escola deve ter por diretriz a formação teórica e, sobretudo cidadã de seus educandos.

Em outra vertente se encontra o pensamento doutrinário, que remete a um fundamento determinado com dogmas tradicionalmente estabelecidos. A doutrinação produz um posicionamento inconteste, baseado em alicerces rígidos e geralmente, pouco mutáveis. Um doutrinador é responsável por criar seguidores, discípulos, pois essa é a função da doutrina.

paulo-freirePara o mundialmente respeitado, teórico da educação, Paulo Freire, a educação é um ato eminentemente político! Com essa afirmação, Freire demonstra que a política está presente em todas as ações humanas. Logo, uma escola sem política se torna vazia, escassa do elemento fundamental da vida em sociedade, porque “escola é, sobretudo, gente, gente que se alegra, se conhece, se estima […]”.

Deste modo, se faz necessário compreender que, no Estado democrático de direito, o processo de educação formal, representado pela instituição escola, jamais foi propriedade de qualquer agremiação partidária. O processo formativo ocorre pela emissão da palavra que se posiciona. É assim que o estudante aprende a aprender, e assim, formar sua própria opinião. O exercício de comparar e relacionar situações, estabelecendo semelhanças e diferenças, deve ser considerado fundamental na práxis educativa .

Na escola em que não se discute política, como um estudante poderá desenvolver um argumento analítico, por exemplo, durante a escrita de uma redação sobre o problema da violência urbana ou sobre a seca do nordeste? Como, limitando o pensamento sob o rótulo da neutralidade, poderão surgir seres pensantes capazes de criar, questionar, problematizar, criticar? A escola não produz máquinas! Democracia no espaço escolar significa a convivência com a diversidade, ou seja, com diversas percepções de mundo.

Fazendo uso das lentes da sociologia, com o objetivo de nos aproximarmos ao máximo da realidade, remontemos as origens desse debate, sobre doutrinação na escola no Brasil. Vamos ao relato. O ponto de partida do debate que hora realizamos, tem inicio quando no ano de 2004, na cidade de São Paulo, uma jovem estudante chegou da escola dizendo que o professor de história havia comparado Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, a São Francisco de Assis, um dos santos mais populares da Igreja Católica. O pai da estudante, um procurador do estado de São Paulo, se sentindo incomodado resolveu denunciar o caso . Importante observar que a atitude primeira diante da situação é o antidialogo, ou seja, partir para a judicialização, exercitar a intolerância, jogando a família contra a escola. Sob a égide da lei, se propõe criar mecanismos de controle que irão resultar no silêncio do pensar. A ideologia serve para esconder e falsear a realidade. É ideológico apresentar casos isolados como representando toda a complexidade educacional brasileira.

Em um sistema educacional, casos isolados não devem ser tomados como parâmetro de julgamento, sob o risco de incorrer na solução amarga de tornar a escola um espaço vazio de atitude reflexiva perante o mundo.
Entendamos a realização desse debate, assim como, a tentativa de aprovação de um projeto de lei chamado “escola sem partido”, como produto do contexto social que vivemos, pois a escola não é uma ilha, isolada da vida social, alheia aos problemas sociais. Como pontuou o sociólogo francês Alain Touraine, em seu livro Em defesa da Sociologia: só é possível se dar conta do conflito vivendo na contradição. Estamos no meio da contradição e tensão declarada, porque o discurso conservador inventou um inimigo para impor medo à população.

Defender o silêncio de cátedra, sob o frágil argumento de “doutrinação” é perigoso, pois representará a negação civilizatória da Política (Representada pela máxima aristotélica de que “O homem é um animal político”). Negar a política é abrir espaço para a obscuridade, para elogios à ignorância. É caminhar pelas atitudes que recusam a reflexão e tendem a negação do dialogo (Fundamento primeiro da vida democrática). A história nos mostra que a ascensão de líderes autoritários ocorreu em momentos de crise social e política, ou seja, aonde germinou o silenciamento, prevaleceu à incivilidade.

debA acusação sobre a existência de doutrinação nas escolas ao ser encabeçado, no campo da política profissional , torna-se politicamente interessada, pois resulta de uma vontade ideologicamente situada. Nesses termos, o projeto “escola sem partido”, ganha clara intenção partidária e substitui o pluralismo de fato que existe nas escolas país a fora, pela ideologia perigosa da uniformidade do silêncio. É a substituição de uma concepção de escola pluralista, por uma ideologia, que interfere nas concepções pedagógicas e na liberdade de cátedra.

Para concluir, afirmo com a experiência de quem está diariamente vivenciando educação, que escola é espaço de reflexão, construído através da relação com o outro, onde a teoria é a peça fundamental para compreender da realidade em que vivemos. Assim, doutrinação não cabe no espaço educacional, pois a escola é o local onde se deve reconhecer, de fato: a diversidade humana; o pluralismo de ideias; o exercício da autonomia do pensamento; e a formação cidadã para a vida!

PS: Jamais imaginei que veria perseguição contra ideias contidas em livros, como presenciei durante o debate. Esse projeto é um atentado à liberdade!

____________________________________

Texto base utilizado em intervenção no debate “DOUTRINAÇÃO NA ESCOLA: EXISTE?”, realizado em 04 de novembro de 2016 no IFRN campus – Natal Zona Norte.

Flávio Ferreira é Cientista social e antropólogo. Professor do IFRN – campus Canguaretama

Carta Potiguar

Conselho Editorial

Comments are closed.

Sociedade e Cultura

Sobre os movimentos de ocupação nas escolas e universidades: quais os horizontes normativos de suas lutas?

Sociedade e Cultura

Quando ouço a palavra "cultura", saco o meu revólver