Rio Grande do Norte, segunda-feira, 20 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 20 de maio de 2021

A história se repete como looping eterno

postado por Joao Paulo Rodrigues

Quando criança, eu via o mundo por imagens. Das muitas lembranças imagéticas que tenho, duas nunca saíam da minha cabeça: a poliomielite e a fome.  Essa doença infectocontagiosa fazia parte da paisagem das pessoas como o vento que sobra, como o céu sobre nossas cabeças.

Eu via pessoas paralíticas em fila de banco, nas feiras e na vizinhança. Apesar de não se afirmar que houve uma epidemia dessa doença aqui no Brasil, a impressão que eu tenho é que a maioria dos casos se concentrou em minha região, tamanha a quantidade de pessoas que eu via acometidas por este mau. Se por falta de saneamento eu não sei, se por percepção enganosa também não sei. Sei apenas que a erradicação da pólio, em 1989, não obrou milagre, desfazendo o mau que atingiu as crianças e adultos da época.

Ah, sei também que eu sou do tempo em que se tinham latrinas nos banheiros, ao invés de vasos sanitários, havendo uma disputa entre os seres humanos e as baratas sobre a quem pertencia o lugar. Aliás, me lembro que nomeei um inseto de Governanta. No fim das contas, nos tornamos quase amigos, mas, como criança perversa que eu era e em nome de meu instinto de sobrevivência – eis a desculpinha! -, a esmaguei na primeira bobeira que ela deu.

A fome, bem, a fome eu conheci de perto. Porém, eu nunca fui um privilegiado. A cada dez pessoas na minha rua, oito passavam fome. Mas, não se engane o leitor, eu não estou fazendo um uso figurado ou ‘poético’ ao me referir à fome. Nós éramos miseráveis. Não só minha família, todavia, a cidade inteira. Eu não entendia muito bem a dinâmica à época, contudo, até onde puder perceber, parece que havia um tipo de rodízio entre os pedintes.

Como praticamente todos passavam fome, havia uma escala implícita que assegurava que uma família saía para pedir esmola em outras cidades, enquanto as outras ficavam tentando se arranjar como podiam. Me lembro que toda semana uma família saía de uma cidade a outra pedindo alimentos, enquanto as outras sobreviviam como dava. Quando umas famílias voltavam de sua saga, era a vez das famílias que ficaram na cidade irem á luta.

O pessoal não dividia a alimentação arrecada em partes iguais, não oficialmente. Porém, na prática, todos comiam tudo, de um jeito ou de outro, pois, sempre se fazia uma sopa que dava pra dividir com o vizinho mais próximo. Entre uma sopa com gosto de fumaça e um “chafé” bem-passado, muitas relações sólidas e solidárias surgiram e algumas permanecem até hoje. Afinal, estou me referindo aos anos de 1990.

Ainda que aquela fosse minha realidade, pelos dados que temos acesso, posso concluir, sem medo, que essa era a realidade da maioria maciça da população brasileira. Digo, o cenário, a paisagem da época era falta de saneamento, que adoentava as pessoas, e fome, muita fome, fome pra caralho, que assolava a quase todos.

Não cheguei a pedir comida, como era comum à minha época, mas, com certeza passei fome. Se não fosse a rede de solidariedade existe entre nós, com certeza nós, uma família privilegiada – pois, afinal, só passávamos fome, sem pedir mendicantemnte -, estaríamos também no rodízio.

A célebre frase de Marx, que afirma, tentando dar um passo adiante em relação a Hegel, que os grandes acontecimentos históricos (fatos e personagens) são encenados duas vezes, está cheia de poesia e carente de concretude. O primeiro fala dos grandes acontecimentos, o segundo predica-os, afirmando que inicialmente ocorrem como tragédia e depois como farsa.

Alguns, a fim de inovar, dizem que à farsa acresce-se o cinismo. Bem, eu gosto de pensar que os grandes acontecimentos históricos, temperados pela tragédia, pelo cinismo e, se bobear, até pelo destino (que é um um efeito decorrente de causa), se repetem quantas vezes as pessoas quiserem, contrariando Hegel e Marx. As mesmas falas, as mesmas estruturas. O que muda, claro, são as pessoas – e, às vezes nem isso.

Ontem, passou uma pessoa aqui em casa pedindo ajuda, vulgo esmola. Era algo em torno das 13h. Veja, esse é o horário da penitência! Vi que, na verdade, eram duas senhoras, cada uma responsável por cobrir um lado da rua. Hoje, por volta das 7:30 da manhã, um senhor passou pedindo ajuda. Imediatamente me lembrei de minha infância.

Me lembrei que já tem um tempo que estamos vivendo os mesmos casos paisagísticos, no pior dos sentidos, dos anos de 1990. Outro dia foi um profissional circense, um palhaço, que passou pedindo qualquer tipo de ajuda para auxiliar o pessoal do circo a se manter vivo, haja vista que não havia mais espetáculos e não tinham outra fonte de renda.

Senti um calafrio na espinha. Me sentei para escrever essa coluna a fim de registrar e afastar, simultaneamente, a agonia que senti. Pensei sobre o rodízio de mendicância que se fazia nos anos de 1990. Pensei também que nesse momento não sou eu quem está na fila para pedir ajuda e até posso ajudar a um ou a outro. Pensei também que amanhã pode ser eu. Pensei, pensei, pensei tantas coisas nesse átimo de tempo.

Minha irmã, entre uma reflexão e outra, sempre me diz que tem medo de voltarmos à época das vacas famintas. Eu sempre digo que esse tempo passou. Digo que por mais que tenhamos dificuldades e o país tenha voltado a registrar casos de miséria e pobreza extrema, os tempos são outros.

Eu realmente acreditava que tínhamos superado essa época, afinal, se os grandes eventos históricos são recorrentes, cria eu, são só duas vezes, ainda que como tragédia e farsa. Porém, tudo indica que eu estava muito errado. A história tem se repetido mais de dez vezes, com toda sorte de adjetivos e predicados, permanecendo seus fatos e estruturas, bem como permanecendo seus fenômenos e, em alguns casos, até a mesmas pessoas como já o disse.

Tenho desconfiado que a história se repete o tempo todo, todo o tempo – em contramão ao pensamento refinadamente científico, que insiste em se opor a esse meu senso comum. Tinha essa suspeita quando me indaguei sobre o desenvolvimento histórico, ou espiritual da humanidade, e cheguei à conclusão de que sempre precisaremos educar as pessoas de uma nova geração, como se a geração anterior não tivesse recebido conhecimento algum, nem tivesse passando informações aos seus rebentos e parentes.

Já tem algum tempo que vemos manifestações fascistas e racistas pelo país. Um dia desses, até com vestimentas dos membros da Ku Klux Klux saíram às ruas, sob pretexto de combaterem um comunismo no Brasil.  

Outro dia foi a vez de Bolsonaro – que não se furta a aclamar e participar dessas manifestações fascistas e autoritárias (quase pleonasmo), sempre que lhe é possível –, dizer que, se for o caso, acionará as Forças Armadas para, veja o absurdo, acabar com o Lockdown e garantir a liberdade de ir e vir das pessoas e de morrer também, claro.

Veja, o país começou a passar mais fome que o “normal” – sim, chegamos ao ponto de normalizar a fome –, apesar de ser um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, ao passo que teve gente que voltou a insistir que os comunistas querem dominar o país.

Não estou insinuando que as mesmíssimas coisas voltarão a acontecer, apenas porque os mesmíssimos espantalhos, distorções e caricaturas têm sido usado. O que gosto de pensar é que além da tragédia, da farsa e do cinismo, a depender das pessoas e do tempo histórico, os fenômenos se parecem um looping eterno, que não nos dá perspectiva de rompimento para o surgimento de algo novo.

Mas, de modo algum, quero pensar como resignado.  Não. Todavia, também não quero arrancar meus olhos em nome de teorias. O que vejo é que as coisas têm se repetido, como se fossem as mesmas comidas e bebidas, mudando apenas o tempero. Nessa metáfora, nós somos a alimentação, os donos dos poderes são os chefes de cozinha e os donos dos donos dos poderes são a quem seremos servidos.

Como mais ou menos disse Winnicott, em algum lugar, o trauma é a não aceitação da realidade, que insiste em contradizer as nossas vontades.

É isso, a repetição da história (atos humanos) me deixa traumatizado.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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