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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de maio de 2012

Por que as Cotas Raciais são importantes?

postado por Alyson Freire

Imagem: DonkeyHotey

Nos últimos anos, as políticas de ação afirmativa ocupam mais do que nunca, no Brasil, o cerne da visibilidade pública. O recente julgamento do STF com respeito a constitucionalidade da política de cotas e a atenção com que a opinião pública, partidos, intelectuais e as redes sociais acompanharam e se envolveram é um forte indicador nesse sentido. A pressão política que movimentos sociais exercem sobre a cena pública brasileira, sobretudo, por meio da reivindicação por políticas afirmativas no tocante a inclusão de novos agentes sociais em espaços e funções socialmente valorizados, coloca em xeque a composição social e étnica das instituições e suas respectivas formas de convivência.

De um modo geral, podemos destacar diversos pontos pelos quais a implantação da política de cotas, num país como o Brasil, mostra-se como relevante e necessária. Em primeiro lugar, para contrabalancear as disparidades entre as oportunidades sociais de diversos grupos sociais e étnicos mediante medidas de apoio e favorecimento que garantam uma consistência mais real nas condições de igualdade de competição no que tange ao acesso à recursos escassos para populações historicamente relegadas ao segundo plano do interesse do Estado e discriminadas pela sociedade. Em segundo lugar, pode-se enxergar na política de cotas uma ação institucional direta contra a cultura de desigualdades e da discriminação, isto é, contra a concepção segundo a qual estas últimas são toleráveis, legítimas e naturais. Por último, destaque-se, ainda, a reivindicação de justiça social e reparação histórica que a políticas de cotas possibilita efetivar.

Todos esses pontos constituem, com efeito, boas razões para defender a política de cotas. Eles se somam à razão primeira das políticas de cotas, qual seja: o reconhecimento institucional da existência de barreiras socioeconômicas e raciais na luta pela conquista de um “lugar ao sol” e da condição de ser “gente”. Isso por si só é um avanço sem precedentes, pois permite que a própria sociedade se dê conta e discuta acerca dos seus desequilíbrios e injustiças. Se tomarmos as cotais raciais, temos um desdobramento desconcertante cujo efeito acerta em cheio a autoimagem do Brasil como nação e cultura. O reconhecimento institucional de obstáculos e desvantagens sustentadas em relações raciais de preconceito e discriminação coloca em suspeita aquilo que muitos consideram a principal e singular contribuição do Brasil à humanidade e ao mundo, qual seja: a democracia racial, a convivência harmônica entre as raças.

Entretanto, embora pertinentes nas razões que apresentam, esses argumentos mais gerais acerca da importância e contribuição das cotas para à sociedade, demandam a bem dizer certo tempo para se concretizarem. O estreitamento do abismo nas oportunidades sociais, o fim da discriminação e da cultura de desigualdades e atingir a tão almejada justiça social são processos cujos resultados, em seus traços mais sólidos, somente aparecerão a médio e longo prazo. Por isso, quero aqui destacar um outro ponto com respeito a importância da política de cotas, tomando, no âmbito das universidades, a política de cotas raciais como objeto.

A meu ver, a maior admissão de estudantes negros, proporcionado pelas cotas, transforma o modo de se perceber e viver a universidade. Os negros trazem pra dentro das universidades mais do que sua presença e a simbologia de sua cor – o que, aliás, por si só suscita debate ao alterar as cores quases unívocas da paisagem. Sua presença produz algo de mais significativo e poderoso.  Com o seu ingresso, adentra nas salas de aula, corredores e auditórios das universidades parte expressiva da experiência social dos negros numa sociedade como a brasileira: a memória histórica da escravidão, a lida diária com o preconceito, a consciência acerca de ser alguém estigmatizado e o decorrente ponto de vista com respeito a sua posição de subordinação na sociedade.

Esses elementos, a meu ver, são igualmente importantes, pois ao ganharem as salas, corredores e auditórios das universidades, serão trocados e compartilhados com outros sujeitos sociais cujas consciências e perspectivas, muitas vezes, desconhecem tais facetas e ângulos acerca da própria sociedade em que vivem. Temas como preconceito, racismo e discriminação, mas, também, literatura, filosofia e história “das culturas negras” serão, mais do que antes, temas de conversas, seminários e palestras. Nesse sentido, de um lado, é a formação das pessoas, no sentido amplo e genérico do termo, que se enriquece e se diversifica, e, de outro, em última análise, a própria universidade no tipo de vivências e pontos de vistas que ela passa a oferecer.

O escopo de ação e a importância da política de cotas raciais não residem em sua capacidade de reparar injustiças e opressões do passado. Sem esquecer a história, não é a lógica da dívida simplesmente que a move. A questão racial é uma questão que diz respeito ao presente e ao futuro. Como, certa vez, escreveu o sociólogo Florestan Fernandes, que desde os anos quarenta pesquisava acerca da desigualdade racial no Brasil, “o negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira”.

A vitalidade democrática das políticas de combate ao preconceito e à desigualdade vai muito mais além da reserva de vagas ou bônus nas notas para minorias e/ou “classes desfavorecidas”. Ela provoca uma redefinição não apenas numérica, estatística e hierárquica dos espaços. A política de cotas raciais abre o espaço, redefinindo-o qualitativamente, para sujeitos e diferenças outrora escamoteadas, tornando-os visíveis e audíveis enquanto seres políticos capazes de falar, intervir e atuar em conjunto a propósito dos costumes e possibilidades do espaço social em que estão inseridos. Ou seja, cria no espaço da universidade um novo espaço a partir do qual pode-se discutir, sob novos ponto de vistas, a instituição, suas formas de convivência e seus hábitos políticos, culturais, pedagógicos, etc..

Nesse sentido, novos conflitos são criados. A criação de conflitos, a manifestação do dissenso, é o alimento, a energia vital da democracia; a condição mesma para que esta não se torne apenas um conceito vago ou uma coisa da qual simplesmente falamos para defender, profetizar, elogiar, justificar.

Então, não basta reservar vagas e auxiliar a entrada das minorias. Isso não seria política, mas, antes, o que o filósofo francês Jacques Racière define como polícia: a distribuição das posições, da visibilidade dos sujeitos em termos de suas propriedades – as semelhanças e as diferenças étnicas, culturais, religiosas, biológicas, classe etc..

Visto desse ângulo, o problema não se esgota, com efeito, na configuração étnica/racial do espaço social – quem está presente? Quem está fora? – mas, na mesma medida, toma como problemático a configuração hierárquica e desigual do espaço epistemológico que os currículos e as bibliografias dos cursos superiores fabricam – qual o lugar nesses currículos reservado aos autores (as) negros e de outras minorias? A recusa e o esquecimento das produções intelectuais e artísticas dos negros, das mulheres, dos povos colonizados, enfim, dos subalternos em geral, não é de modo algum uma seleção intelectual com base exclusiva no mérito de cada qual, mas um operação que envolve relações de poder, silenciamento, preconceitos.

A maior presença de estudantes negros redunda numa maior força política para reivindicação e promoção da experimentação e conhecimento de outras tradições intelectuais, artísticas e filosóficas – que não as que se convencionou intitular de cânone Ocidental, o que não significa abolir ou negligenciar este.

A política de cotas raciais não coloca apenas a questão da presença dos “sem parte” e “excluídos”, mas, igualmente, introduz a perspectiva dos “ausentes da história e da cultura”, por meio de suas próprias produções culturais e intelectuais, como vemos nos livros de W. E. B. Du Bois ou Frantz Fanon. De sorte que a ótica e as produções dos excluídos dos espaços consagrados ao argumento e ao espírito façam-se visível e audível. E, desse modo, por meio dos conflitos, dos desentendimentos, das idéias e óticas distintas, novas relações com as diferenças sejam instituídas. A políticas de cotas raciais é um passo à frente em direção a esse novo horizonte de igualdade e pluralidade nas instituições acadêmicas.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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