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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 25 de maio de 2012

O Assédio Sexual nas Universidades Brasileiras

postado por Carta Potiguar

Outras Universidades do mundo,  têm atentado para o tema, seja por meio da produção de pesquisas, seja por meio da regulamentação de códigos de conduta. E no Brasil?

Por Cynthia Hamlin

(Socióloga e professora do Dep. de Ciências Sociais – UFPE)

Publicado no Blog Que Cazzo  é Esse

Nenhuma atividade humana ocorre em um vácuo social. O que pode parecer um truísmo – e um especialmente redundante depois que a última pá de cal foi lançada sobre a concepção positivista de objetividade – tende a ser esquecido quando a atividade em questão diz respeito à produção de conhecimento.

Universidades e demais instituições de ensino são formadas por pessoas de carne e osso que trazem para seu ambiente de trabalho crenças, valores e sistemas simbólicos de classificação e compreensão do mundo: preconceitos, no sentido Gadameriano do termo. Tais preconceitos afetam profundamente a forma como os objetos de pesquisa são construídos, assim como as relações humanas que estão na base do processo de construção do conhecimento. Neste sentido, também é fácil entender que as ações e interações que ocorrem nos laboratórios, corredores e salas de aulas tendem – exceto quando diretamente questionadas – a reproduzir a estrutura social mais ampla em que estão inseridas. No caso brasileiro, nunca é demais lembrar, essa estrutura  é marcada por enormes desigualdades de classe, de raça e de gênero.

Alguns mecanismos dessa reprodução são bem conhecidos. Especificamente no que diz respeito às relações de gênero, sabe-se, por exemplo, que a socialização a que meninos e meninas são submetidos pelos diversos agentes tem um impacto direto na formação dos chamados “guetos sexuais” na academia (cf. Rosemberg, 2000; Eccles, Jacobs e Harold, 1990; Hoschild e Machung, 1989). Também são bem conhecidos os impactos da divisão desigual e naturalizada do trabalho doméstico nas carreiras femininas; ou dos estereótipos de gênero no “efeito teto” que descreve a menor participação das mulheres nos cargos mais elevados da hierarquia universitária e de outras organizações (cf. Araújo e Scalon, 2006; Tannen, 1994; Nogueira, 2011; Boyd, 1997; Mahony, 1995).

Não me interessa detalhar seu funcionamento aqui, mas chamar atenção para um outro tipo de mecanismo reprodutor de desigualdade de gênero em instituições de ensino e em outras organizações que não tem recebido a atenção necessária entre nós: o assédio sexual.

O termo “assédio sexual” foi cunhado pela jurista e cientista política Catharine MacKinnon, na década de 1970. Seu livro “Assédio Sexual de Mulheres Trabalhadoras”, de 1978, baseou-se em uma série de casos de assédio contra estudantes e funcionárias de Universidades americanas. Lá, ela argumentava que, de acordo com o Código dos Direitos Civis de 1964, o assédio sexual deveria ser caracterizado como uma forma de discriminação sexual. Ao estabelecer uma teoria que relacionava diretamente comportamentos sexuais e discriminação sexual (ou de gênero), MacKinnon enfatizava que o assédio sexual ocorria como expressão do status desigual de homens e mulheres (Dinner, 2006).

O trabalho de MacKinnon serviu de base não apenas para o desenvolvimento das leis americanas sobre discriminação sexual, mas também para o estabelecimento de códigos e programas contra o assédio sexual em Universidades e outras organizações. Hoje em dia, qualquer universidade dos EUA, Canadá, Reino Unido, e (a partir dos anos 2000) França, distribui entre professores, alunos e funcionários uma espécie de manual que regulamenta o que constitui assédio sexual, estabelece comissões internas para julgar denúncias e informa o que fazer caso se suspeite ter sido vítima do assédio sexual.

Outras Universidades do mundo, como ocorre na Colômbia, Zâmbia, Austrália, África do Sul e Malásia, também têm atentado para o tema, seja por meio da produção de pesquisas, seja por meio da regulamentação de códigos de conduta, programas educativos etc. (Smit e Du Plessis, 2011;  Ismail et al. 2007; Menon et al. 2009; Moreno-Cubillos, 2007).

E no Brasil? Uma rápida pesquisa em inglês, francês, português e espanhol no portal de periódicos da Capes não gerou um trabalho sequer sobre assédio sexual nas Universidades e demais instituições de ensino no país. A invisibilidade das pesquisas, associada à ausência de qualquer política contra assédio sexual nas Universidades Brasileiras, gera a impressão de que “uma das formas mais comuns de discriminação sexual no mundo inteiro” (Menon et al. 2009) não ocorre entre nós.

Isso é estranho, considerando que as mulheres, em particular as mulheres negras, aparecem na base do sistema de estratificação social no Brasil para a maioria dos indicadores de desenvolvimento humano.

E, no entanto, isso não procede. Como atesta um caso recente, no qual um professor da Universidade Federal de Pernambuco foi condenado em primeira instância pelo crime de assédio sexual, o problema também ocorre entre nós. E o caso é instrutivo, por uma série de razões. Em primeiro lugar, questões relativas a gênero não foram mencionadas na sentença. Segundo, deixa claro que, ao contrário do que ocorre em diversos lugares do mundo, o sistema de justiça é a única alternativa a que supostas vítimas de assédio podem recorrer. Isso, obviamente, tem seu preço. Vejamos.

De acordo com convenções internacionais das quais o Brasil é signatário (como a CEDAW ou a Convenção de Belém do Pará), a violência sexual ou de gênero deve ser combatida por meio de leis e políticas públicas integrais que de fato previnam, punam e erradiquem a violência contra mulheres, e que acolham de forma humanizada a quem sofreu a agressão.  De um ponto de vista jurídico, algumas iniciativas podem ser mencionadas, como a Lei Maria da Penha e a recente mudança no Código Penal, em 2009, da caracterização de assédio sexual como crime contra os costumes para crime contra a liberdade sexual. Mas enquanto a primeira baseia-se integralmente numa perspectiva de gênero, este ainda não é o caso em relação ao Código Penal. De fato, tratar o assédio sexual a partir de um viés de gênero permitiria, por exemplo, caracterizar como assédio formas de discriminação sexual nas quais o agressor ou agressora não é caracterizado em função de “sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (Art. 216 A do Código Penal).

Um estudo australiano (citado em Smit e du Plessis, 2011) ajuda a ilustrar este ponto. Enquanto que no ensino superior a forma mais comum de assédio sexual ocorre entre professores e alunas, caracterizando uma desigualdade de poder facilmente enquadrada como superioridade hierárquica ou “ ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”, no nível médio, a situação se inverte: a forma mais comum de assédio sexual é de alunos em relação a professoras. Isto aponta para uma questão de gênero segundo a qual a autoridade das professoras está claramente subordinada à sua autoridade como mulheres (o que tende a ser neutralizado ou minimizado no ensino superior). Prevalecem, neste caso, as relações de poder características da estrutura social mais ampla (patriarcal), o que, de um ponto de vista teórico e conceitual, está de acordo com a concepção relacional do gênero.

A escassez de políticas públicas integrais que constituam alternativas e/ou complementos ao sistema de Justiça também ficou evidente no caso em pauta. Enquanto grande parte das Universidades do mundo têm códigos internos de assédio sexual e mecanismos que ajudam a informar e coibir tais práticas, as Universidades brasileiras não têm nada neste sentido. De fato, ainda que tenha sido criada uma comissão interna para avaliar o caso, até o momento, a mesma não se pronunciou publicamente. Além disso, dado que não existe nada que regulamente a forma como esses casos devem ser tratados no âmbito da Universidade, não é claro que esta comissão possa ter alguma eficácia ou mesmo utilidade.

Assim como ocorreu em relação à criação de comissões de ética que regulamentam as pesquisas nas Universidades, talvez esteja na hora de pensarmos algo semelhante em relação ao assédio sexual.

Referências

Araújo, Clara; Scalon, Celi (2006). Gênero e a Distância entre a Intenção e o Gesto. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 21, n. 62, p. 45-68.

Boyd, Monica (1997) Feminizing Paid Work. Current Sociology, no. 45, p. 49-73.

Dinner, Deborah (2006) A Firebrand Flickers. Legal Affairs, Mar/abr. Disponível em: http://www.legalaffairs.org/issues/March-April-2006/review_Dinner_marapr06.msp

Rosemberg, Fúlvia (2000). Educação Infantil, Gênero e Raça. In: Antonio Sérgio Guimarães e Lynn Huntley (orgs), Tirando a Máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra.

Eccles, J.S.; Jacobs, J.E.; Harold, R. D. (1990) Gender Role Stereotypes, Expectancy Effects and Parents’ Socialization of Gender Differences. Journal of Social Issues, no. 46, p. 183-201.

Hoschild, Arlie R.; Machung, Anne (1989). The Second Shift: working parents and the revolution at home. Nova York: Viking.

Ismail, Mohd Nazari et al. (2007) Factors Influencing Sexual Harassment in the Malaysian Workplace. Asian Academy of Management Journal, Vol. 12, No. 2, Jul. p. 15–31

Tannen, Deborah (1994). Talking from 9 to 5: How women’s and men’s conversational styles affect who gets heard, who gets credit, and what gets done at work. Nova York: William Morrow.

Mahony, Rhona (1995). Kidding Ourselves: breadwinning, babies and bargaining power. Nova York: Basic Books.

Menon, A et. Al (2009) University Students’ Perspective of Sexual Harassment:A Case Study of the University of Zambia. Medical Journal of Zambia, vol. 36 n. 2, p.

Moreno-Cubillos, Carmen et al. (2007). Violencia Sexual contra las Estudiantes de la Universidad de Caldas (Colombia): Estudo de Corte Transversal. Revista Colombiana de Obstetricia y Ginecología, Vol 58, n. 2, p. 115-128.

Nogueira, Pablo (2011). A Ciência das Mulheres. Unespciência, março, p. 18-25.

Smit, D; du Plessis, V (2011). Sexual Harassment in the Education Sector.Potchefstroom Electronic Law Journal, África do Sul,  vol 14, no 6, p. 173-217. Disponível em: http://www.ajol.info/index.php/pelj/article/view/73012

 

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