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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de junho de 2012

Chaplin: “os ricos compram o barulho”

postado por Wilson Ferreira

Ao contar a história da transição do cinema mudo para o falado, ironicamente por meio da estética em preto e brancob e sem som,  o filme “The Artist” (indicado ao Oscar de melhor filme) faz diversas referências ao mais famoso resistente à sonorização:  Charlie Chaplin. Ele acreditava que tal inovação destruiria a “abstração cômica” forma que, segundo ele, universalizaria o cinema. Mas havia uma dimensão política por trás dessa resistência: atacado pelas elites culturais na década de 1920 pelo “baixo nível” dos seus filmes voltados para trabalhadores, imigrantes e desempregados via na sonorização o enquadramento político e moral decisivo dos cinema pelos grandes estúdios: “os ricos compram o barulho”, denunciava. 

Ao assistir ao filme “The Artist” (que concorrerá ao Oscar de Melhor Filme, Ator, Roteiro, entre outras indicações) não há como não deixar de lembrar de Charlie Chaplin pelas diversas referências que a narrativa faz, principalmente as sequências do protagonista empobrecido vagando pelas ruas com o fiel terrier Uggie o acompanhando. As referências a Chaplin são propositais já que, assim como ele, o protagonista George Valentim resiste o quanto pode à tecnologia da sonorização dos filmes. Mas se em “The Artist” a resistência de Valentim é por narcisismo e orgulho (quintessência do galã dos filmes mudos), na História real a resistência de Chaplin foi principalmente por motivos estéticos e políticos.

Isso ficou claro nas informações expostas ao público em uma mostra chamada “Chaplin e sua Imagem” no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no ano passado. Com 200 fotografias, cartazes, documentos inéditos a Mostra apresentava a trajetória dos 54 anos de carreira do cineasta inglês Charlie Chaplin, desde os primeiros filmes pela Keystone de Nova York em 1914. Caminhando pelas quatro salas cedidas pelo Instituto para a Mostra, logo de cara fomos surpreendidos com a gênese do personagem Carlitos nos estúdios da Keystone: mais rude, agressivo e amargo, bem diferente da imagem do “adorável vagabundo”, idealista, romântico e nobre dos filmes da fase da United Artists (1919 a 1939).

No meio do trajeto, encontramos todo um painel dedicado ao filme “Luzes da Cidade”, um filme ainda mudo realizado quatro anos após o primeiro filme sonorizado da história (“The Jazz Singer”, 1927). Chaplin era um grande resistente à introdução do som no cinema e “Luzes da Cidade” foi uma resposta com uma produção de interessantes aperfeiçoamentos técnicos, tornando-o um dos dez melhores filmes na história do cinema para diretores como Orson Welles e Stanley Kubrick.

Dentro desse painel referente a esse filme e à resistência de Chaplin à sincronização sonora das falas no cinema encontramos esse interessante texto que transcreve seu depoimento à época:

“O silêncio – algo que não pode ser comprado – quantos de nós saberíamos defrontá-lo? Os ricos compram o barulho. No entanto, nosso espírito se realiza quando estamos mergulhados no silêncio natural – esse silêncio que jamais recusa aqueles que o procuram. O som aniquila a grande beleza do silêncio (…) Não creio que minha voz possa contribuir com as minhas comédias. Pelo contrário, ela destruiria a ilusão que venho tentando criar, a ilusão de uma pequena silhueta que simboliza a graça… não uma pessoa real, mas uma ideia bem humorada, uma abstração cômica” (Chaplin contre le filme parlant, Cinée, 15 de julho de 1929).

Muitos críticos na época acreditavam que a sonorização do cinema seria uma regressão estética. Primeiro porque acreditavam que depois de Griffith e Eisenstein o cinema já havia adquirido uma autonomia estética ao construir uma narrativa própria, visual. O som faria regredir o cinema ao “teatro filmado”. Segundo, que o cinema era dotado de uma riqueza formal tão grande que deveria ser libertado da obrigação de contar histórias. Essa discussão demonstrava que o cinema tinha nascido dividido entre a vocação documental e realismo dos Lumiere e o ilusionismo e formalismo de Méliès com os seus delírios barrocos e trucagens em “Viagem à Lua”(Le Voyage dans La Lune, 1902).

Para Chaplin, a questão tinha um caráter mais humanista: ele temia no cinema falado as pretensões universalistas do meio fossem perdidas. Achava que a linguagem visual era universal, rompendo com as restrições linguísticas dos idiomas. O que ele denominava de “abstração cômica” era a busca de uma linguagem universal baseada na comédia corporal e nas gags visuais, um humor que transcendesse a própria linguagem.

Porém, havia algo mais na desconfiança de Chaplin em relação à sonorização do cinema. Quando afirmou que “os milionários compram o barulho” ele vislumbrou uma dimensão sócio-política: por trás do advento da sincronização das falas estava o início da concentração econômico-financeira dos grandes estúdios, o rígido controle centralizado da linha de produção (e principalmente dos roteiristas) que a nova tecnologia traria e o enquadramento moral e temático dos filmes que culminou com o chamado “Código Hays” em 1934.

Chaplin: o inimigo público número um

Em meados da década de 1920 o jornal “Detroit News” estampava uma escandalosa manchete: “Pessoas de Baixo Nível Só Gostam de Charles Chaplin e Mary Pickford, Diz Pastor”. Não é à toa. Na segunda década do século vinte, o humor “slapstick” chega à maturidade e impacto com Chaplin, Harold Loyd e Buster Keaton. As travessuras e anarquia do vagabundo provocador atraíram a ira dos Reformistas da classe média. O chamado “humor-pastelão” era nitidamente urbano, sempre girando em torno de operários, imigrantes desempregados, gente que vivia no limite entre a legalidade e contravenção para sobreviver.

Eram os heróis da classe trabalhadora. Como afirmava Mack Sennett, os filmes ridicularizavam as elites e autoridades: “Eu gostava sobretudo da redução da autoridade ao absurdo, da noção de que sexo podia ser divertido e dos insultos ousados atirados contra a pretensão”, dizia sobre os seus curtas da Keystone. No slapstick o herói é sempre perseguido, chutado, molhado, surrado, desancado e maltratado. Expressava o cotidiano das mal educadas e grosseiras classes baixas que lotavam os quentes e esfumaçados Nickelodeons (salas de cinema cujo nome veio do preço popular das entradas, um níquel).

Segundo estudos por cinéfilos de Nova York de 1911, 72% do público era da classe trabalhadora e aqueles que trabalhavam mais horas eram os que mais frequentavam. Apenas 3% eram considerados de classes mais abastadas.

“Nos cinemas, essa sensação democrática era palpável. O cinema emancipou o poleiro e criou uma grande plateia, que era nada mais, nada menos do que o povo sem distinção de classe”, opinou a Motion Picture World” E o articulista da publicação alertava: “os filmes tornar-se-ão cada vez mais um poderoso fator no crescimento da consciência de classe” (Veja GABLER, Neal. Vida-O Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 52).

Pronto! Esse era o subtexto por trás do humor anárquico de Chaplin e de toda sua geração que passou a preocupar as elites culturais.

Do Blog “Cinema Secreto: Cinegnose” 

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Wilson Ferreira

Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi/São Paulo na área de Estudos da Semiótica. Pesquisador CNPQ do grupo de pesquisas "Cinema e Sagrado no Cinema e Audiovisual e autor dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus. Editor do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" sobre confluências entre Gnosticismo e Sagrado no Cinema, Audiovisual e Cultura Pop em geral.

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