Rio Grande do Norte, sexta-feira, 26 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 27 de julho de 2012

Ficção Científica na História

postado por Felix Maranganha

Eu, particularmente, sou fã do subgênero de Ficção Científica, apesar de estar lendo pouco nos últimos tempos. Não é nenhuma novidade que a Ficção Científica apresenta temas e formatos mais ou menos identificáveis, sejam quais forem os meios de sua divulgação. Encontramos Ficção Científica na literatura, no teatro, no cinema, nos quadrinhos, na propaganda, nas artes plásticas, na música e na televisão. De grandes obras da literatura universal até as novelas da Globo, de bandas de Rock até quadros de Space Art, a Ficção Científica chegou para conquistar. ¿Mas, o que é esse subgênero? ¿Como ele surgiu?

A Ficção Científica pode ser considerada uma história que trata a ciência ou a tecnologia como pretextos para conflitos de suas personagens. Todos os demais elementos presentes na literatura como um todo estão lá, como a ficcionalidade, a singularização, a densidade, a desautomatização etc. A única diferença é o tema e os clichês comuns presentes nos mais variados tipos de produção do gênero. A ficção científica é puramente especulativa, não se pretende realmente científica. Procura somente respeitar algumas normas gerais de concisão e verossimilhança, acrescentar um “fato” científico e trabalhar com o conflito.

Nos dizeres de Bráulio Tavares:

A ciência parece ser uma fonte de inspiração; mas não encontraremos ─ a não ser numa minoria de casos ─ a presença de racionalizações científicas convincentes. O autor de fc sente-se à vontade para imaginar os fenômenos mais extravagantes, “teorizar” sua existência com duas ou três frases, e estamos conversados. Grande parte da fc está mais voltada para a magia do que para a ciência: todo o aparato tecnológico que a reveste não consegue disfarçar o caráter não-científico da maioria de suas visões. As coisas acontecem magicamente: aperta-se um botão e um personagem é desintegrado, ou é remitido para outra galáxia, ou vira planta. Como acontece isso? O autor não dá muitas explicações: ele diz que é o “raio X-26”, ou é um “teleportador”, ou é um “conversor molecular” ─ e fim de papo. Nesse tipo de história, a ciência é um mero pretexto: é de fantasia que se trata. (Bráulio Tavares, O que é ficção científica, página 8)

Ou seja, os mesmos elementos aventurescos, ficcionais e fantasiosos estão nos livros de ficção científica, e a última coisa que os livros no subgênero pretendem é a exatidão científica, mas apenas o entretenimento (¿Estamos conversados? Fãs de Dan Brown). Logo, é a presença temática de um ou outro elemento que a classifica, e não propriamente sua estrutura, que simplesmente adequa-se ao formato de todas as outras obras da literatura.

Os primórdios

Os primeiros textos escritos em formato semelhante ao da Ficção Científica surgiram ainda na Antiguidade. Não apenas o Mahabharata e obras de Homero apresentam elementos similares ao gênero, como também Lucano, poeta romano, pode ser considerado um precursor. Porém, antes do século XVIII, só podemos falar em casos isolados e não-intencionais, presentes em não mais que poucas páginas ou poemas. Desde os demônios de metal do Mahabharata até as máquinas da saga de Perseu, a antiguidade encheu-se de admiração pelas descobertas que íamos fazendo.

Primeiramente, se prestarmos atenção, veremos que existem inúmeros mitos “tecnológicos”. Prometeu é um deles, os nhambiquaras tem outro (cujo nome não lembro). A própria Arca de Noé é um mito “tecnológico”. ¿Por quê? Porque esses mitos tratam de uma supremacia do homem sobre os deuses ou sobre a natureza. Enquanto Prometeu nos dá o fogo do conhecimento (assim como o mito nhambiquara), Noé constrói uma arca para se livrar do Dilúvio (Noé é a versão hebraica de Uta-Napishtin, que construiu um barco e se livrou do fim do mundo). Ou seja, a supremacia tecnológica humana era tema até mesmo dos mitos na tradição oral.

O subgênero como o que conhecemos hoje é bastante recente e ainda muito pouco estudado. Apesar de hoje estar bastante difundida e diversificada, seus precursores intencionais podem ser encontrados perdidos por aí, no meio do século XVIII, em pleno auge do Iluminismo. Alguns autores vem de bem antes, numa lista que engloba Cyrano de Bergerac, Johannes Kepler, Dante Alighieri e Francis Bacon.

Dos mais influentes, portanto, podemos citar primeiramente Utopia, de Thomas Morus, que bem poderia ser considerado o Admirável Mundo Novo do Século XVI ao lado da Nova Atlântida de Francis Bacon. Apesar de considerarmos uma obra filosófica, é patente de que temos aí um livro similar aos textos do século XX e XXI.

Essas obras adequavam-se ao espírito de sua época. No século XVI estávamos ainda com ideologias Renascentistas em voga, e era o surgimento da filosofia Humanista. Com a priorização do humano, a literatura começou a olhar também o que era produzido por esse humano, e tomou dois rumos distintos: tratar filosoficamente do humano (a exemplo de William Shakespeare, John Milton, Nicolau Maquiavel, François Rabelais) ou de suas conquistas (Francis Bacon, Luís de Camões, Thomas Morus). Assim, tivemos um terreno propício, que se repetiu novamente no século XVIII, com o Iluminismo (também conhecido como Segundo Renascimento).

Depois de Morus, tivemos um hiato a ser preenchido depois por Jonathan Swift, no século XVIII, e seu livro As Viagens de Gulliver. Pela primeira vez temos, aí, eventos em que se exaltam a razão e a tecnologia (como na viagem a Laputa, Balnibarbi , Luggnagg, Glubbdubdrib e ao País dos Houyhnhms). Poucos anos depois de Swift, na França, um escritor maçom chamado François Marie Arouet, vulgo Voltaire, publicou um livro chamado Micromégas, o primeiro livro rigidamente no formato do subgênero de Ficção Científica.

O espírito Iluminista era o da supremacia da Razão sobre as tradições religiosas, o que levou muitos de seus autores a seguir três vertentes nesse período. A primeira vertente era a exaltação do homem natural e da natureza que o gerou, ao qual denominamos Arcadismo. A segunda vertente era o tratamento do homem dentro de sua visão não somente filosófica, como também física (Marquês de Sade, Voltaire, Alain-René Lesage, Pierre Chonderlos de Laclos, Molière, Jean-Jacques Rousseau). A terceira vertente, assim como ocorreu no Renascimento, tratou das conquistas do homem (Daniel Defoe, Jonathan Swift, William Goldwin).

A ficção científica encontra-se no universo da segunda vertente do Renascimento e da terceira do Iluminismo.

Romantismo

Anos depois, no século XIX, tivemos o advento de uma verdadeira explosão de pessimismo racional-científico dentro da literatura e, ao mesmo tempo, um sentimento generalizado de pessimismo social. Com filosofias idealistas de Hegel e Schopenhauer, o pensamento da época começou a se afastar do racionalismo iluminista. No início do século tivemos o surgimento do Romantismo e, com ele, a Sehnsucht alemã, que criou todo um novo modo de vida. No Romantismo tínhamos, portanto, uma maior atenção dada ao sentimentalismo e à imaginação. Foi o momento em que as artes chutaram o balde da mimese e criaram ao mesmo tempo belíssimos quadros sombrios e grandes obras literárias.

Nesse período, como ocorre a toda produção cultural que se preze, tivemos a ficção científica adaptada a esse meio. Mary Shelley, para ganhar um desafio proposto por Lord Byron, escreveu Frankestein. Nos EUA, Edgar Allan Poe respondeu literariamente às tecnologias emergentes em sua época. Não apenas eles, como também Robert Louis Stevenson (O Médico e o Monstro) tratou de temáticas limítrofes entre o científico e o filosófico.

Devido à grande complexidade do século XIX, não podemos precisar claramente as tendências, mas dá para saber quais eram os principais temas das obras de Ficção Científica de então: os perigos das conquistas do homem. Como uma forma de reafirmar a evasão temporal para a Idade Média (quando as novas tecnologias não eram ainda usadas), os escritores de ficção científica do Romantismo demonizavam o conhecimento para exaltar a imaginação.

Realismo/Naturalismo

A estética e os ideias do Romantismo se mesclaram anos depois com uma nova onda de otimismo racional-científico. Na filosofia, escolas como o Espiritismo (Allan Kardec), Determinismo (Hippolyte Taine), o Positivismo (Augusto Comte), o Materialismo Histórico (Karl Marx), o Socialismo Utópico (Saint-Simon), o Evolucionismo (Charles Darwin) e o Experimentalismo (Claude Bernard) fizeram os escritores acreditarem que uma nova era de avanços se aproximava e, com isso, muitos lançaram-se na criação de personagens e obras que retratassem esse otimismo. Podemos citar Sir Arthur Conan Doyle (ao criar o metódico Sherlock Holmes), Júlio Verne & H.G. Wells (que agregaram o otimismo nos formatos aventurescos do Romantismo), Aluísio de Azevedo (romances de tese de análise social), Guy de Maupassant (um realismo mais naïf).

esprit de la belle époque era de que a ciência e a razão haviam chegado para ficar e para garantir, por si mesmas, a felicidade humana. Daí, os escritores dividiram-se entre tematizá-las (no caso, na Ficção Científica) ou demonstrar a degradação do homem quando elas estão em falta (como ocorreu com a maioria dos escritores).

Século XX

O século XX assistiu a grande explosão do subgênero, a tal ponto que a própria Literatura de Fantasia deu uma desacelerada (apesar, é claro, de preservar muitos autores importantes após os anos 1950). A belle époque entrou em crise nas duas primeiras décadas do século XX, gerando um pessimismo momentâneo em relação à razão e à ciência. O uso crescente dos conhecimentos acumulados dos séculos anteriores para matar outros seres humanos causou uma série de fugas da racionalidade científica para o absurdo, culminando no abandono total do espírito otimista com a I Guerra Mundial. Logo, nesse período, tivemos a memória involuntária de Marcel Proust, o absurdo de Franz Kafka, o misticismo científico de Augusto dos Anjos, a ciência sombria de H. P. Lovecraft, a fragmentação humana de James Joyce, a sociedade bélica de Euclides da Cunha, a especulação social de Monteiro Lobato.

Na Ficção Científica, porém, tivemos uma série de autores que se valiam ainda de um certo otimismo, mas, em vez de tratarem de temas filosóficos profundos ou das conquistas humanas, como anteriormente, valiam-se em descrever apenas romances técnicos ou de tratar de simples aventuras fantásticas em que a razão e a ciência eram nada mais que um pano de fundo, mero pretexto. Tivemos, então, e ao mesmo tempo, o advento da Space Opera (aventuras espaciais, similares a histórias de piratas ou navegadores) e do termo Ficção Científica (Science Fiction, corruptela do termo scientifiction criado por Hugo Gernsback).

Após os anos 1920, o mundo mudou as caras. Cada país passou a dar mais atenção à sua própria produção cultural, e o Modernismo finalmente guinou. Autores do mundo inteiro começaram a escrever de forma mais livre, e para o objetivo que quisessem, sem se prenderem tanto às regras de uma escola literária. No pensamento, nos tornamos mais relativistas, principalmente depois de filósofos e pensadores como Allan Watts, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, tivemos um questionamento sobre os limites da razão, da verdade e das capacidades humanas. A ciência tornou-se, muitas vezes, não apenas pretexto, mas a própria personagem. Grandes escritores voltaram a tratar de temas comuns à sua época, e o subgênero ganhou força, e dividiu-se em três vertentes: Hard Science Fiction (mais técnica, voltada para o racionalismo e para a ciência exata), Soft Science Fiction (com mais atenção para o humano e para as concepções filosóficas do homem) e a Space Opera (absorvida pelo veio principal, era a mais leve e voltada para o entretenimento). São dessa época autores como John Robinson Pierce, Edgar Rice Burroughs, Edmond Hamilton, Frank Richard Stockton, Stanley G. Weinbaum, Berilo Neves, Didier de Chousy, Gustave Le Rouge, Maurice Renard, Jerônymo Monteiro, dentre outros.

Um pouco antes e após a II Guerra Mundial, os escritores começaram a debandar para vieses mais sociais ou fantásticos. Com um mundo esfacelado às portas, não era de se surpreender que tivéssemos um ressurgimento da Literatura Fantasia e do Fantástico como saídas mais frequentes. Ionesco e Beckett lançaram as bases do teatro do absurdo. Jorge Luís Borges, Guimarães Rosa, Ray Bradbury, Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Robert Heinlein, Aldous Huxley, Brian Aldiss, C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien, Kurt Vonnegut, Stanislaw Lem, Frank Herbert, Philip Dick, Bernard Weber, Michael Ende etc. Todos esses autores têm em comum o fato de seu foco ser o humano enquanto ser individual, o que somos, e o que nos faz ser o que somos. Abundam as utopias, distopias, ucronias, o enfrentamento homem-máquina, o contato com outras civilizações. Assim é o Homem Positrônico, de Isaac Asimov, ou O caçador de andróides, de Philip Dick. ¿O que nos faz humanos? ¿Quais os limites entre o homem, a máquina e o ET.

Nessa perspectiva de questionamentos, porém, o mundo mudou. Guerra Fria, Pós-Modernismo, Concretismo e Praxismo, avanços na eletrônica, computadores. Logo depois, a literatura diversificou-se tanto que é difícil saber como classificá-la, e esse estado perdura até hoje. Começam a surgir as literaturas de cunho mais sombrio ou pessimista mais recentemente: cyberpunk, vampirismo, realismo urbano social. Assim, na Ficção Científica, começaram a se destacar as figuras de William Gibson, a segunda e terceira ondas da Ficção Científica Brasileira e os movimentos derivados do cyberpunk (steampunk, dieselpunk, clockpunk etc). Aqui escreveram Orson Scott Card, William Gibson, David Brin, Bruce Sterling. No Brasil, porém, podemos destacar escritores como Jorge Luis Calife, Fausto Cunha, Hugo Vera, Clinton Davisson Fialho, Gerson Lodi-Ribeiro, Bráulio Tavares e Antônio Luiz M. C. da Costa.

 Conclusão: o preconceito

O preconceito que a Academia tem em relação à Ficção Científica deriva basicamente da visão que ela tem de gêneros menores. Ao meu ver, em vez de um curso de Letras dedicar-se à literatura como um todo, dá atenção apenas aqueles já consagrados autores de suas épocas. Quando estudamos literatura brasileira, por exemplo, não temos uma visão geral do que foi o século XVIII, mas apenas um foco no Arcadismo, apesar de não ter sido a única coisa produzida naqueles tempos.

Assim, subgêneros como Ficção Científica, Literatura Fantástica, Fantasia, Policial, Terror, Filosófico e Guerra ficam de fora única e exclusivamente por causa do ranço contra os best sellers, como se tudo o que fosse best seller fosse ruim a priori (claro que há muita coisa ruim, mas nem tudo o que é best seller pode ser considerado ruim). O que precisamos é de um olhar mais global, mais holístico, e ter a consciência de que muita coisa boa está sendo negligenciado somente por causa desse preconceito formal por parte da Academia.

Que fiquem os autores aqui citados como dicas de leitura.

Felix Maranganha

Licenciado em Letras, especialista em Educação a Distância e mestrando em Ciências das Religiões, Felix Maranganha é Linguista, Filólogo, Escritor, Filósofo, Defensor dos Direitos Humanos e Libertarianista. Pratica o Zen-Budismo, é ateu, joga sinuca e poker e adora pimenta. Alguns o confundiriam com um anti-marxista, mas ele não liga muito para essas coisas. É autor do blogue http://ocalangoabstrato.blogspot.com

2 Responses

  1. Dinix11 disse:

    Excelente texto! Faz um scaneamento bem completo sobre o tema. Parece que a visão preconceituosa da academia está mudando em relação a ficção científica. A Universidade de Michingan está oferecendo um curso online gratuito sobre fantasia e sci-fi na literatura, que até agora se apresentou muito interessante:

    https://class.coursera.org/fantasysf-2012-001/auth/auth_redirector?type=login&subtype=normal

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