Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 9 de agosto de 2012

Ética, aborto, pena de morte e outras amenidades

postado por Felix Maranganha

Esses dias escrevendo um artigo, me deparei com um ótimo livro de Jürgen Habermas, intitulado O futuro da natureza humana. Habermas afirma que faltam hoje em dia critérios precisos a serem usados para definir a base ética humana no futuro (um robô consciente, ou um alienígena autoconsciente, seriam considerados humanos e inseridos no escopo ético humano?).

O maior problema ético da espécie humana ocorre porque todos queremos uma ética que sirva à nossa conveniência. Logicamente, porém, tudo o que se imputar a um ser humano deve ser imputado a todos os seres humanos em quaisquer situações ou condições em que estejam, e toda condição ou situação em que um ser humano esteja deve ser levado servir de critério para definir a humanidade dos demais seres. Os critérios utilizados nas discussões sobre o aborto, a pena de morte, a tortura, a liberdade e a proteção legal, por exemplo, deveriam ser estendidas a toda e qualquer criatura à qual o caráter humano é atribuído e que esteja dentro dos mesmos critérios.

Se um ser não-humano aparece dotado de pessoalidade e sentimentos, de inteligência e consciência moral, o que fazer? Não há um conceito universal para definir a humanidade, e muito menos para definir o mais específico, que é a pessoalidade, pois basta que outro ser não humano tenha as mesmas características, ou que um ser humano seja destituído arbitrariamente desse valor de humanidade, e dois problemas surgem imediatamente:

1) ou o outro não-humano ganha o status de humanidade,

2) ou o status de humanidade perde o sentido ontológico.

A crise conceitual dos questionamentos éticos da atualidade é que eles servem mais à conveniência que à coerência. Um exemplo é o aborto: define-se como humano aquele ser que é 99,99% similar aos demais seres humanos, mas cujo código genético é centrado no organismo. Nesse critério, o embrião é humano. Porém, para defender o aborto, contradiz-se essa definição e busca-se outra. Um deles é afirmar que um embrião não é uma pessoa. Porém, quem assim o faz, negligencia a própria definição clássica de pessoa (que inclui seu aspecto potencial) para reverter a condição humana do feto, desconsiderando o caráter “pessoa” em sua plenitude somente para suprir às suas conveniências. Filosoficamente, “pessoa” não é um atributo acabado, mas em processo, inclusive de formação, o que implica que um feto é uma “pessoa” no começo de sua formação. Daí, afirmam que para ser humano, deve ser uma pessoa, mas insistem, por exemplo, em comer seres dotados de pessoalidade (polvos, mamíferos, aves etc.).

A incoerência não é que os conceitos de humanidade e pessoalidade não estejam definidos, mas que os conceitos não são movidos de acordo com a lógica. Sem uma justificativa clara, explica-se que seres sob as mesmas condições não devem ser tratados da mesma forma. Os questionamentos éticos da atualidade não contemplam a definição de humano, mas até que ponto essa definição serve às conveniências pessoais? A partir de que ponto esse conceito deve ser abandonado? Surgem, portanto, cinco esferas ético-ontológicas nesse raciocínio.

1) Extensão positiva:

Todos os humanos devem ser considerados humanos em todas as situações em que a humanidade utilizada for aplicável.

Exemplo: Se o que define um humano é uma entidade biológica (possuir código genético humano), então todos os que forem biologicamente humanos deverão ser protegidos, o que implica na proibição do aborto, da pena de morte e a proteção até mesmo dos chimpanzés.

2) Extensão negativa:

Todas as condições em que a definição para humano não puder ser usada não deverá ser usada para nenhum outro ser que estiver nas mesmas condições.

Exemplo: Se uma criança indígena e pobre com morte cerebral não é mais considerada um humano, um homem branco riquíssimo com morte cerebral terá de automaticamente também perder seu status enquanto humano.

3) Inviolabilidade do critério:

Uma definição qualquer sobre a natureza humana não pode ser arbitrariamente retirada de outro ser no qual se aplique a mesma definição.

Exemplo: Se um determinado critério que faz de um idoso um humano está presente também em um homem negro, nada justificará que um seja considerado humano e outro não, visto ambos estarem debaixo da mesma definição.

4) Não Contradição:

É um princípio lógico. Duas definições contraditórias para o ser humano não podem coexistir.

Exemplo: Uma pessoa dizer que o que define a humanidade é a alma, e afirmar que mulheres não têm alma (Aristóteles) e depois afirmar que o que define o ser humano é a consciência da ausência de alma (Sartre), e depois justificar que os homens não têm alma. Ou afirmar que humano é todo aquele ser com um código genético único e indiferenciado e depois defender o aborto por afirmar que um feto ainda não é um humano. Pior ainda, afirmar que a lei deve proteger a mulher contra a violência por elas serem humanas, e depois negar a mesma proteção aos homens, que estão no mesmo critério de humanidade. Esse é o ponto mais problemático na discussão ética, principalmente dentro dos Direitos Humanos: a não contradição nos critérios de definição.

5) Irreversibilidade e cumulatividade:

A humanidade é irreversível e cumulativa, pois uma vez que o caráter humano é conferido a um ser, esse caráter não poderá mais ser retirado (irreversibilidade), e deverá ser imputado irreversivelmente a todos os seres que se encontrem debaixo das mesmas condições ou apresentem os mesmos aspectos (cumulatividade).

Exemplo: uma vez que o caráter humano for dado às mulheres, as mesmas deverão para sempre ser consideradas humanas, e isso não poderá ser retirado delas. O mesmo se diz de fetos, embriões, chimpanzés, negros, pobres, ricos, anencéfalos etc. Uma vez imputada a humanidade a um feto, a noção de humanidade deve ser estendida a todos os fetos ou pessoas nas mesmas condições. Uma vez um chimpanzé considerado dotado de humanidade através de critérios precisos, essa definição deverá ser estendida para todos os seres nas mesmas condições que o chimpanzé (bonobos, gorilas, orangotangos etc.).

Assim, creio eu, nada é mais hipócrita hoje em dia que gente que fala do quanto sofre um humano para justificar o sofrimento de outro humano. Nada é mais incoerente que defender uma pessoa por causa de um critério no mesmo momento em que se deixa de definir a outra pessoa sob as mesmas condições apenas porque, na atual situação, a definição de pessoa me deixará com crise na consciência. Quem tem medo de crise, tem medo de ser humano, e logo deveria perder seu status de humanidade. Ou não?

Felix Maranganha

Licenciado em Letras, especialista em Educação a Distância e mestrando em Ciências das Religiões, Felix Maranganha é Linguista, Filólogo, Escritor, Filósofo, Defensor dos Direitos Humanos e Libertarianista. Pratica o Zen-Budismo, é ateu, joga sinuca e poker e adora pimenta. Alguns o confundiriam com um anti-marxista, mas ele não liga muito para essas coisas. É autor do blogue http://ocalangoabstrato.blogspot.com

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