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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 19 de novembro de 2012

Narcotráfico: história e reflexões

postado por Thadeu Brandao

Do Gedev.blogspot.com.br

Por Thadeu de Sousa Brandão, Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais e professor de sociologia da UFERSA.

Os EUA e o Histórico do Narcotráfico
A história do narcotráfico, ou seja, a história da proibição às drogas e do crime organizado que se forma em torno dessas substâncias tornadas ilegais passa, de certa maneira por, necessariamente, ter de reparar nas forças que moldam o tráfico de drogas e nos poderes que buscam reprimi-lo.
Em toda  discussão sobre o tema, percebe-se que há uma evitação nas discussões fármaco-químicas, assu­mindo-se, assim, que a motivação para o uso de uma droga não é sua composição em si, mas as sensações que tende a provocar.
Segundo Rodrigues, o sistema médico internacional:
“divide as drogas que agem sobre o sistema nervo­so central causando mudanças de comportamento ou de percepção em três grupos: as apaziguado­ras, as estimulantes e asalucinógenas. Drogas apaziguadoras são o ópio e derivados (morfina, heroína, codeína, metadona), os opiáceos sintéticos (barbitúricos), clorofórmio, éter e o álcool. Es­ses compostos têm propriedades analgésicas e anestésicas, provocam sono e torpor e podem criar hábito ou adição. As estimulantes agem como excitantes, dando disposição e ânimo. Não causam adição, ainda que possam criar certas relações psico­lógicas de dependências. São drogas estimulantes o mate, a folha de coca, o café, o chocolate, o tabaco (estimulantes vegetais), a cocaína (ou cloridrato de coca produzido a partir do processamento quí­mico das folhas de coca), o crack, as anfetaminas e a cafeína. Por fim, alucinógenas são as que oferecem poucos riscos à saúde (apresentam baixos teo­res de toxicidade e não causam adição) e produ­zem experiências sensoriais e visionárias mais ou menos poderosas. São drogas alucinógenas subs­tâncias quimicamente tão distintas quanto o MDMA ou ecstasy,maconha (ou seu princípio ativo o THC), skunk (maconha geneticamente manipulada com grande concentração de THC), haxixe, mescalina, LSD ou ácido lisérgico, ayahuasca, iboga, kawa, peyote, entre outras.” (RODRIGUES, 2003, p.19-20).
Historicamente, foi em 1906, o primeiro instituto jurídico vindo do Food and Drug Act (Lei Federal sobre Alimentos e Drogas) nos EUA. Essa lei não instituía a proibição efetiva de qualquer droga psicoativa, mas regulamentava sua produ­ção e venda: exigia. Ou seja, a dita lei inaugurava a inter­venção governamental num campo ainda inexistente.
Finalmente, em 1909, por incentivo do governo estadunidense, foi organizada  uma conferência em Xangai que reuniu as potências coloniais da época (Inglater­ra, Alemanha, França, Holanda e Portugal), repre­sentantes do imperador Chinês e dos EUA para discutir limites à produção e ao comércio de ópio e seus derivados. “Mesmo contrariados, os Estados euro­peus aceitaram formalmente a proposta do gover­no dos Estados Unidos de restringir o negócio do ópio apenas para prover as necessidades mundiais para uso médico dos opiáceos” (RODRIGUES, 2003, p.28).
Desta feita, a Confe­rência de Xangai inaugura a prática de encontros diplomáticos internacionais para o controle de drogas psicoativas motivados basicamente pelo ímpeto proibicionista do governo dos Estados Unidos. Já em 1912, tem lugar em Haia, na Holanda, uma nova conferência, mais uma vez incentivada pelos EUA e que redundou num docu­mento de maior impacto e mais explícito na exigência em se limitar a produção e venda de ópio, opiáceos e também cocaína.
Finalmente, temos em 1914, também nos EUA, de iniciativa do Harrison Narcotic Act, lei mais complexa e severa que os acordos internacionais já assinados e que investia na proibição explícita de qualquer uso de psicoativos considerado sem finalidades médicas.
Mesmo assim, as drogas psicoativas não deixaram de fazer parte do cotidiano dos norte-americanos, porém a relação dos indivíduos comas drogas regulamenta­das pela Lei Harrison mudou sensivelmente: o acesso só seria possível por meio de uma receita emitida por um médico. O consumo, apesar da lei, não se restringiu aos tratamentos médicos, persistindo uso hedonistas e a automedicação. Todo esse volume de transações e de usos de psicoativos passou a ser, a partir de então, ilícito. Estava legalmente inaugurado o mercado ilícito de drogas; delineavam-se os primeiros passos da economia do tráfico de drogas.
Finalmente, segundo Rodrigues:
“A proibição das drogas psicoativas, aliada aos estereótipos que as vinculavam às elasses conside­radas perigosas por seus hábitos e sua pobreza, colocava sob suspeita toda essa faixa da popula­ção que costuma ser vigiada e controlada pelos apara­tos repressivos do Estado. (…) os grupos percebidos como anormais passaram a ser alvo de políticas específicas de controle. (…) assediadas pelos braços policiais do Estado, sob a justificativa de combate ao tráfico.” (2003, p.32).
Com a 18ª Emenda à Constituição norte-americana, foi  insti­tuído a proibição total da produção, circulação, estocagem, importação, exportação e venda de bebidas alcoólicas em território estadunidense. Desta forma, surge a abertura de um campo fértil no qual brotaram inúmeras organizações ilegais que se dedicaram a suprir o mercado ilícito criado em conseqüência da Lei Seca. Floresceram as máfias, como a chefiada pelo lendário Al Capone, e as agências governamentais dos EUA, elaboradas para perseguir o tráfico de álcool. Até ser revogada em 1933, a Lei Seca foi responsá­vel pelo fortalecimento do crime nos Estados Unidos e pelo crescimento dessas agências e da burocracia estatal de coerção.
Inevitavelmente, dada a influência dos EUA e sua política externa, evidencia-se uma aceitação internacional do modelo de repressão norteamericano como o mais “adequado” para enfrentar a produção e o comércio ilícito de drogas psicoativas.
Internamente, alguns anos depois, a revogação da Lei Seca, em 1933, não significou um retrocesso nas políti­cas repressoras de governo. Ao contrário, a relegalização do álcool foi acompanhada pelo endurecimento das medidas legais sobre psicoativos já proibidos (como a cocaína) e outros que ainda não sofriam restrições diretas (como a maconha). Na década de 1960, o gradativo aumento do uso de heroína entre a população afro-americana foi o estopim para uma nova e ampla associação entre depravação moral e a degradação física.
Em 1972, o então presidente dos EUA, Richard Nixon passou aidentificar os psicoativos ilícitos como inimigos nº da América e, em conseqüência, uma ­ampla guerra às drogas.Sua intenção foi aprofundar as medidas coercitivas por meio do cres­cimento das ações policiais de busca e apreensão de drogas ilegais e do combate aos grupos clandesti­nos e às redes de tráfico. Passou a se aceitar, de forma oficial a existência de países produtores de drogas ilícitas e países consumidores, atitude que se enquadrava no papel de exteriorizar o problema do tráfico de drogas, colocando Estados e regiões do então Terceiro Mundo comoagressores e os EUA na posição de vítima: criminosos asiáticos e latino-­americanos levariam heroína, cocaína, maconha e LSD para corromper a juventude norte-americana. Surge daí uma deflagração da guerra explícita ao tráfico de dro­gas, indústria que crescia mundialmente tomando o rosto do contemporâneo narcotráfico, que signi­ficava repressão interna e operações internacionais de alcance cada vez maior.
Mesmo assim, a proibição internacional dos psicoativos não havia coibido a produção, comercialização e uso dessas substâncias; muito pelo con­trário, possibilitou o crescimento contínuo de um gigantesco mercado ilegal que motivava, por sua vez, o fortale­cimento das agências e das leis destinadas a perse­guir essa economia ilícita.
Das penumbras da ilegalidade de inúmeros psicoativos verificou-se o surgimento de um promissor negócio de proporções globais. O narcotráfico na América, com suas características de importante empreendimento ilícito, começava a tomar forma. Conexões surgiam, aproxi­mando máfias há muito estabelecidas nos EUA, gru­pos clandestinos que passavam a operar desde as comunidades de imigrantes latino-americanos e caribenhos na Flórida e em outros estados e organizações traficantes sediadas em países da América Latina.
Segundo Rodrigues, o sistema se dava através de cinco elementos:
“a) Os centros de consumo: (…) junto às metrópoles dos Estados Unidos estavam as principais cidades lati­no-americanas que, com suas características cosmo­politas, estavam sintonizadas com os movimentos da cultura jovem internacional e com o consumo de substâncias psicoativas.” (2003, p.50).
“b) A sedução econômica: para faixas pauperizadas das populações latino-americanas, os lucros prove­nientes do narcotráfico, um negócio em franca ex­pansão, eram atraentes e, para muitos, a única oportunidade de elevação do padrão de vida.” (2003, p.51).
“c) As vantagens latino-americanas: (…) questões geográfico-climáticas propícias, (…) cultivo (…) existência de práticas sociais já desenvolvidas, (…) a cultura milenar das folhas de coca nos Andes (…) tradicionais circuitos de ilegalidade (como o contrabando e o tráfico de pedras preciosas) que consti­tuíram know-how para as organizações narcotraficante que se formaram.” (2003, p.51).
“d) O proibicionismo: o fato de a maioria dos Estados latino-americanos haverem se comprome­tido com a tônica legal internacional da proibição aos psicoativos produziu um poderoso negócio ile­gal, de repressão inviável e imensamente lucrativo.” (2003, p.51).
“e) A tecnologia bancária: há uma ligação indissociável entre a economia clandestina das dro­gas psicoativas e a economia legal no planeta.” (2003, p.51).
Tuda essa rede e estrutura possibilitou que os cahamdos “narcodólares”, cuja origem ilegal se apaga após serem feitos de­pósitos e transações financeiras que envolvem gran­des bancos e paraísos fiscais, tomam-se legais, sendo reaplicados em negócios clandestinos e não-clandes­tinos.
Deste modo, passa-se a estruturar a rede do narcotráfico em duas “teias”: a competitiva e aoligopólica. teia competi­tiva, dividida em duas etapas, compreenderia, num extremo, as fases de produção da folha de coca e da pasta base, e noutro, a distribuição e venda ao consumidor. Aqui, em ambas as pontas, há muitos pequenos grupos em constante e acirrada disputa pelo mercado, o que redunda em grande violência. A teia oligopólica, por sua vez, se comporia de um reduzido número de grupos fortemen­te hierarquizados e enxutos, que evitam o choque direto entre si e controlam a fase mais rentável do negócio – a transformação da pasta base em cocaína pura para posterior venda aos grupos atacadistas. Isso, devamos lembrar, numa situação de oligopólio, onde os atores não são muitos. Mas, isso não impli­ca, efetivamente, a existência de um acordo para a manutenção de preços.
Os narcotraficantes e seus recursos:
“a) Recursos financeiros: uma organização narcotraficante, especialmente do setor oligopólico, deve ter acesso a abundantes recursos financeiros para reinvestir no negócio (em infra-estrutura, sa­-lários, subornos, compra de produtos químicos para o refino da cocaína, reservas para suportar possí­veis confiscos). (…) As organizações mantêm uma estreita relação com a economia legal, o que implica comumente a abertura de ne­gócios lícitos que servem de fachada e instrumento para a lavagem de dinheiro , ou seja, a incorporação dosnarcodólares à esfera legal da economia. As operações financeiras de mercado de capitais e os depósitos em bancos de paraísos fiscais são alternativas muito utilizadas pelas empresas narcotraficantes para escamotear a origem do dinheiro.” (RODRIGUES, 2003, p. 58-59).
“b) Recursos coercitivos: (…) Quando há problemas entre dois gru­pos narcotraficantes, pode haver uma negociação direta que evite o conflito ou, senão, um embate que defina o vencedor. Dentro de cada organização, por sua vez, existem códigos de conduta muito rígidos que visam evitar o vazamento de informa­ções; uma traição significa punição rápida e severa (em geral, a morte do traidor).” (RODRIGUES, 2003, p.59).
“c) Recurso a serviços fundamentais: uma em­presa narcotraficante deve contar com o apoio de funcionários qualificados (advogados, administra; dores de empresas, químicos, financistas, pilotos de avião) e não-qualificados (mulas, trabalhadores dos laboratórios, motoristas, seguranças pessoais, vigilantes privados), que, com suas habilidades, con­tribuem para a manutenção dos negócios.” (RODRIGUES, 2003, p.60).
“d) Recurso “Evitar a repressão”: um grupo narcotraficante deve se preocupar em estar livre dos ataques das forças repressoras do Estado. (…) 1) subornos e corrupção: 2)assistencialismo e conquista de confiança (…) Formam-se verdadeiros bolsões de poder nos quais o Estado não entra, a não ser eventualmente. (…) esses bolsões surgem comoEstados simbióticos, que vivem da proibição das drogas psicoativas e crescem mediante o fracasso das investidas estatais em combatê-los. Além disso, es­ses Estados tecem relações com as instituições pú­blicas, por meio do apoio a deputados, senadores (as narcobancadas)e candidatos a cargos majori­tários (prefeitos, governadores e presidentes) que defendem interesses dos narcotraficantes. (…) Mais do que filantropia, as obras dos chefes narcotraficantes têm como objetivo conquistar a simpatia e a dependência da população, comprando assim sua fidelidade. (RODRIGUES, 2003, p.60-62).
Chegando cronologicamente no início dos anos 1980, as confe­rências entre os então emergentes narcotraficantes colombianos se deram com o objetivo específico de criar algo como uma força comum de resistência aos seqües­tros promovidos pelo grupo guerrilheiro M-19 e que ameaçavam parentes dos novos-ricos ilegais.
Os chefes das organizações narcotraficantes (principalmente bolivianos, no período) co­mandavam grupos com as características das em­presas ilícitas do setor econômico oligopólico. A frente de estruturas muito enxutas, esses chefes eram os únicos a conhecer todos os detalhes de seus negócios, preservando um dos mais importantes recursos em um negócio ilícito: o se­gredo. Cercado de poucos assessores diretos (em geral parentes e amigos íntimos), os capos concentravam em si as informações que acessavam os con­tatos e as redes de distribuição internacional de psicoativos, tornando-se eles próprios vitais para o funcionamento da empresa. Em geral, esses homens, antes de se dedicarem ao tráfico de drogas, acumularam experiência em outras atividades ilícitas.
Os empresários narcotraficantes construíram suas próprias organizações, desenvolvendo maior ou menor solidariedade en­tre si, mas nunca constituindo os cartéis municipais de Calí e deMedellín. O desmantelamento das organizações assediadas em Medellín após as mortes de Escobar e Rodríguez Gacha (ainda em 1989) e da prisão de Fabio e Jor­ge Ochoa (respectivamente em 1990 e 1991) não significou um grande abalo na economia ilegal do narcotráfico colombiano.
O tema do comba­te às drogas, há muito presente na sociedade estadunidense, consolidou a posição de questão de segurança nacional nos anos 1980, reforçando as políticas de combate frontal ao tráfico em paí­ses considerados produtores e influenciando eco­nomias narcotraficantes de diversas regiões do continente.
O Brasil e o Narcotráfico
No caso tupiniquim, o narcotráfico finca suas bases no sistema peni­tenciário e de lá para os morros, favelas e periferias, passando nos anos 1990 a influenciar instituições públicas através de ligações com políticos profissio­nais, funcionários públicos, juízes, policiais e mili­tares.
Inicialmente, nossa primeira lei sobre controle drogas psicoativas foi editada em 1921.  Após a lei de 1921, uma seqüência de pequenas reformas (1922, 1932, 1936, 1938) atualiza as normas do proibicionismo brasileiro perante as inovações das conferências internacionais.
Foi somente a partir de 1967, ano em que as decisões da Convenção Única da ONU, de 1961, são incorporadas na lei brasileira, que em dois no­s textos, um de 1968, outro de 1971, aprimoram as normas repressivas, destacando-se o encrudescimento nas penas para traficantes e usuários (que são tratados como viciados ou toxicâmanos). A efetiva consolidação do proibicimismo de narcóticos no Brasil vem somente com a aprovação da Lei nº 6.368, de 1976, conhecida como Lei de Tóxicos. Esta institui, definitivamente, as figuras dotrafi­cante, criminoso que deve ser punido com rigidez, e do usuário, indivíduo incapaz que deve ser encaminhado para tratamento. O enfoque é marcadamente repressor.
O Brasil, nas transformações que ocorriam no mer­cado ilegal de drogas, pautava-se nesse processo com uma normatização destinada ao combate direto à economia do narcotráfico. Porém, a posição do país nos fluxos internacionais do tráfico de psicoativos era ainda extremamente discreta. A Lei de Tóxicos era mais severa do que as práticas efetivas envolvendo drogas ilícitas no Brasil daquele momento, exagero que pode ser visto não comoerro de avaliação, tampouco como antecipação aos fatos, mas como um endurecimento legal que contribuía (pelo lado da proibição às dro­gas) para o conjunto de leis repressivas do regime militar, as quais, auxiliaram na própria construção do narcotráfico contemporâneo no Brasil. Exemplo disso é a histó­ria do Comando Vermelho, grupo que se destaca a partir dos anos 1980 como a grande empresa narcotraficante do setor competitivo (varejista) no Rio de Janeiro.
Em 1969, com a Lei de Segurança Nacional, tem-se a estratégia de nivelar por baixo as ações dos militantes de es­querda. Os atos da esquerda passaram a ser tratados como crimes de alta periculosidade que afrontavam a segurança e a ordem nacional. Os guerrilheiros não seriam tratados como presos políticos, mas como criminosos comuns. Neste interregno, surge o Comando Vermelho.
Entre fugas e prisões, os principais líderes do Comando Vermelho consolidaram redes de influência compostas por duas faces; de um lado, o domínio do sistema penitenciário (celeiro que garantia a sobrevivência da organização); de outro, os espaços de poder criados nos morros. A partir de 1988, com o aumento da repressão po­licial e a construção da penitenciária de Bangu I, figuras de destaque do Comando Vermelho passa­ram a ser enclausuradas, fato que não desestruturou a organização ou o mercado de drogas ilegais no Rio de Janeiro. O ataque ao Comando Vermelho foi precioso – assim Gomo a guerra do Estado co­lombiano aos narcotraficantes de Medellín – para que outros grupos nascessem e crescessem, ocu­pando brechas deixadas pelo CV.
Os enfrentamentos entre grupos como o Co­mando Vermelho e o ‘Terceiro Comando, que vi­sam a conquista de favelas – e, conseqüentemente, de mercado – dá ao negócio dos psicoativos ilegais no Rio de Janeiro características marcantes: a competição leva às guerras de quadrilhas (entre si e delas com a polícia), que ocasionam inúmeras mortes entre soldados do tráfico, soldados das for­ças repressivas e moradores das favelas. Por sua vez a atração econômica exercida pelo tráfico so­bre jovens favelados con­duz ao conflito indivíduos destinados às engrenagens das fundações para menores, à prisão (caso sobrevi­vam até a maioridade) ou à morte violenta.
Com o tempo, grupos narcotraficantes ganham ou perdem poder, novos bandos surgem, velhas quadrilhas desaparecem, mas a força do mercado ilegal per­manece protegida sob as asas da Proibição mantida como guerra às drogas. A permanência da repressão policial convive com a permanência do tráfico de drogas.
A CPI de 1999, sobre o narcotráfico foi pautada pelas persegui­ções internas levadas a cabo pelos parlamentares chamam a atenção para os novos contornos que o tráfico de drogas ilegais no Brasil tomou nos anos 1990: o país não era mais apenas um corredor de passagemda cocaína andina para a Europa e para os EUA, mas um relevante processador de pasta base, que contava com centros de consumo im­portantes e organizações narcotraficantes de perfil oligopólico e competitivo que erguiam seus espa­ços de autoridade e teciam suas redes de influência junto às instituições estatais.
Para Rodrigues:
“Em cada Estado existem grupos que influenciam tomadas de decisão e que, povoando as institui­ções políticas, operam instrumentos de força para garantir seus interesses. Assim, a lei, que se apre­senta como válida para todos, não é uma expressão imparcial da justiça verdadeira, mas a consolida­ção histórica de vontades políticas de certos grupos e forças sociais. A Justiça, desse modo, não é cega, mas enxerga perfeitamente alvos específicos. Historicamente podemos notar uma preocupação com o controle de certos estratos da população considerados ameaçadores ao modelo político-so­cial e econômico existente. Em geral, essas supos­tas classes perigosas são formadas pelos pobres, estrangeiros e subversivos: aqueles que defendem uma postura de vida dissonante, projetos políticos distintos ou simplesmente sustentam hábitos consi­derados inapropriados ou imorais pelos grupos da ordem. Assim, por meio de instrumentos legais de­terminados vão sendo construídas redes especiais destinadas a capturar esses grupos perigosos.” (2003, p. 107-108).
Ou seja, colocadas em movimento pelas leis, as políticas de controle social são, portanto, medidas de contenção dos indivíduos e gru­pos que podem desestabilizar a ordem.
Ao longo do século XX, o conjunto de políticas de controle social foi enriquecido com um tipo particular de intervenção: os crimes relacionados às substâncias psicoativas. Ao serem proibidos, os psicoativos passaram a alimentar um grande negócio que colocou sob a mira dos aparatos repressi­vos dos Estados proibicionistas aqueles que produziam e comercializavam tais substâncias e aqueles que as consumiam, Classificados pelas leis penais como traficantesusuários, respectivamen­te, esses indivíduos ficaram à mercê das iniciativas antidrogas. Desde os momentos mais antigos da proibição às drogas, as atividades de produção e venda de psicoativos ficaram a cargo de indivíduos postos à margem do sistema econômi­co-social dominante. Na ilegalidade, a economia das drogas convocou os indivíduos que não tinham espaço no mundo legal: analfabetos, pobres e mar­ginalizados foram recrutados pelo nascente narcotráfico. Essa mesma classe de indivíduos já era alvo das políticas de contenção social; eles já eram os principais corpos a superlotarem os sistemas pe­nitenciários. Capturados por ameaçarem os costu­mes e a propriedade privada dos homens de bem, esses indivíduos, tidos como desviantes, passaram a ser rastreados também por negociarem perigosos venenos.
A guerra às drogas elege alvo nada brancos. A proibição, portanto, não cria a perseguição seleta de indivíduos perigosos, mas torna essa persegui­ção mais sofisticada e potente. Como estratégia de controle social, a Proibição é um grande sucesso.
A incapacidade da guerra às drogas em alcançar seu objetivo declarado (acabar com o tráfico e o consumo de psicoativos) faz com que esse conflito seja constante, adiando indefinidamente seu fim. Com a meta cada vez mais distante, a guerra às drogas segue seu caminho, buscando uma impro­vável eliminação da produção e do consumo de psicoativos. Todavia, nesse percurso em busca do inatingível, o proibicionismo vai alcançando metas bem palpáveis: hábitos privados são devassados e indivíduos perigosos são capturados. A impotência da guerra às drogas mostra, assim, um outro lado vitorioso.

O usuário 

E o usuário? O desenvolvimento das políticas internacionais de proibição às drogas psicoativas não descuidaram daqueles que consumiam essas substâncias, tratan­do-os por vezes como criminosos (equiparáveis aos traficantes), por vezes como doentes que precisa­vam ser tratados, ainda que compulsoriamente. A tendência legal contemporânea é ver o usuário como um alienado, um doente que não sabe con­duzir sua própria vida, um escravo das drogas. Sen­do um incapaz, esse indivíduo deve ser assistido pelo Estado.
O que se tem perce­bido é que, em Estados que revisam suas políticas repressivas no sentido da descriminalização, os usuários não deixam de ser controlados. O fato de não serem mais presos não abole o controle estatal sobre o indivíduo, mas o torna mais sutil. Estigma­tizado socialmente, o sujeito considerado pela lei como usuário terá para sempre em seus registros sua passagem pela polícia, encontrando dificulda­des em sua vida profissional e permanecendo sob o olhar vigilante dos aparatos estatais responsáveis pela aplicação das leis antidrogas.
Enfim, a efetiva descriminalização das drogas não é um relaxamento significativo nas leis ou nos costumes, mas uma pequena correção de rumos den­tro do proibicionismo. A Proibição ativa circuitos clandesti­nos que reproduzem violências intoleráveis a atin­gir classes perigosas, usuários, proibicionistas ativos e passivos. A quebra da ilegalidade, por seu lado, não promete o fim da violência social, mas a desar­ticulação de um dos mais significativos campos de conflito de hoje, o narcotráfico.
Bibliografia citada e consultada:
RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003.

Thadeu Brandao

Sociólogo, Professor de Sociologia da UFERSA.

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